TV nostalgia

A aposta em releituras na TV e no streaming de Pantanal, Renascer e Dona Beja parece apontar para uma garantia de sucesso, mas também serve para atualizar histórias, além de resgatar uma bem-vinda dose de memória.

Pantanal. Elas por elasRenascer. Em breve, Vale tudo e Dona Beja. A televisão brasileira vem investindo nos últimos anos nas refilmagens de telenovelas de sucesso do passado. Mas por que isso está acontecendo?

“Na verdade, não é novidade ter remake de novela”, diz o crítico de televisão e colunista da Folha de S.Paulo Mauricio Stycer. De fato, ao longo de sua história, a TV Globo recorreu a versões atualizadas de sucessos antigos diversas vezes. Em 1995, estreou Irmãos Coragem, cujo original foi ao ar em 1970. Também fez segundas adaptações de Pecado capitalSinhá MoçaMeu pedacinho de chãoTi ti tiGuerra dos sexos e A gata comeu

“Produzimos e exibimos releituras desde a década de 1980. Então, o remake para a TV Globo não é uma tendência, e sim uma tradição, um recurso que sempre fez e fará parte do nosso portfólio. Foram 26 remakes nos últimos 40 anos, distribuídos nos três horários de novelas”, disse a emissora em comunicado. 

Mas há uma novidade, sim. “É menos comum ter novas versões na faixa das 21 horas”, afirma Stycer. De fato, desde que ela foi oficialmente instaurada, em 2011 – antes, era a novela das 8 –, nenhuma releitura foi exibida na Globo até Pantanal. A produção, exibida entre março e outubro de 2022, é um remake da novela de Benedito Ruy Barbosa, que foi ao ar na TV Manchete em 1990. 

Dois anos depois, em janeiro passado, estreou Renascer, nova versão de outro folhetim do mesmo autor, originalmente apresentada em 1993. As duas novas adaptações são escritas por Bruno Luperi, neto de Benedito Ruy Barbosa. Renascer será substituída por uma inédita, Mania de você, de João Emanuel Carneiro, mas, na sequência, vem outro remake: Vale tudo, com versão de Manuela Dias sobre o texto de Gilberto Braga, chega em 2025. A novela, originalmente exibida entre maio de 1988 e janeiro de 1989, é considerada uma das maiores de todos os tempos e fará parte da comemoração de 60 anos da TV Globo.

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Marcos Palmeira como José Inocêncio em Renascer Foto: Globo/Fabio Rocha


O papel da pandemia

Para Maria Immacolata Vassallo de Lopes, professora titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e coordenadora do Centro de Estudos de Telenovela, é importante considerar a pandemia nesse contexto. “As produções foram interrompidas em 2020, com um recomeço ainda lento em 2021 por causa das medidas sanitárias”, lembra ela. 

Na faixa das 21 horas, por exemplo, Amor de mãe foi suspensa em 21 de março de 2020 e só foi encerrada em 9 de abril de 2021, com sua substituição pelas reprises de Fina estampa e A força do querer, enquanto novos capítulos não podiam ser gravados. Uma reexibição de Império tapou o buraco antes da estreia de Um lugar ao sol, em novembro de 2021, já que a produção estava atrasada.

Se não foram um estouro de audiência, algumas dessas reprises não fizeram feio. Fina estampa, que foi reexibida entre março e setembro de 2020, período em que muitos estavam em casa por causa do distanciamento social, terminou com média de 33,6 pontos. A força do querer, que veio depois, marcou 29,9, e a inédita Amor de mãe fez média de 30,9. Império foi mal, com 27,3. Mas a sucessora (e inédita) Um lugar ao sol foi ainda pior, com 22,3. 

A estreia de Pantanal foi um alento, finalizando com uma média de 29,6 pontos. Não havia por que não acreditar em Renascer. No primeiro mês, a novela registrou 26 pontos e 44% de participação, um aumento em relação às anteriores. Segundo reportagem do F5, com dados do Kantar Ibope, nas duas primeiras semanas de exibição, foram consumidas mais de 311 milhões de horas de Renascer, o que é 40% a mais que a quantidade de horas consumidas, em todo o mundo, pela série mais vista da Netflix no mesmo período, O agente noturno. Mesmo assim, por enquanto, não chega a ser um arrasa-quarteirão: no dia 13 de março, a novela teve 24,9 pontos. 

A verdade é que não há garantia de sucesso, mesmo refazendo uma novela que teve audiência no passado. O remake Elas por elas, exibido na faixa das 18 horas, por exemplo, fez apenas 14,1 pontos no mesmo dia 13 de março, não muito distante de Cheias de charme (12,8), Mulheres de areia (13,5) e Paraíso tropical (12,1), que estão sendo reprisadas nas faixas vespertinas Edição especial e Vale a pena ver de novo

Mas é de pensar que apostar em um sucesso do passado parece uma tentativa de redução de riscos. “Nunca a produção de teledramaturgia esteve tão conturbada nesses tempos de polarização e cancelamento”, diz Mauro Alencar, doutor em teledramaturgia pela Universidade de São Paulo e autor de A Hollywood brasileira – Panorama da telenovela no Brasil. “A estratégia do remake, que são velhos temas com novas identidades e registros, se tornou, de certo modo, a tábua de salvação da indústria audiovisual brasileira, uma vez que lida com o clássico. É um recurso de acomodação dentro do medo de arriscar.”

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Jove (Jesuita Barbosa), Juma (Alanis Guillen) e Tadeu (José Loreto) em Pantanal Foto: Globo/Divulgação


Em Hollywood é assim

Não que isso seja uma exclusividade brasileira. No cinema estadunidense, fazer remakes, reboots (que traz uma nova história em um universo já conhecido), continuações e filmes baseados em obras conhecidas – quadrinhos, livros, videogames – virou praticamente lei. A televisão, que custa um pouco menos em geral, ainda tem mais obras originais, mas frequentemente trilha o mesmo caminho. É só olhar as listas de mais vistos da Netflix na primeira semana de março, dominada por Magnatas do crime (spin-off do longa de mesmo nome, de 2019), Avatar: o último mestre do ar (quadrinhos, livros, videogame, série animada e filme) e Um dia (baseada no livro de 2009 adaptada para o cinema em 2011). 

Mas um remake ou continuação é também uma chance de atualizar a obra querida do passado. Em Renascer, Buba (Gabriela Medeiros, capa desta edição) é transexual, assim como sua atriz – na versão original, a personagem era intersexo (e descrita por um termo pouco correto, que não se usa mais) e vivida por uma atriz cis. O elenco negro é bem maior do que na novela da década de 1990. “Há uma atenuação dos aspectos mais polêmicos também”, diz Stycer, referindo-se ao machismo, por exemplo.

É essa a razão pela qual a Max, serviço de streaming antes chamado HBO Max, aposta em Dona Beja, remake da obra exibida na Manchete em 1986, como uma de suas primeiras telenovelas, ainda sem data de estreia. “A história central é muito atual: uma mulher em busca da sua liberdade, da sua autonomia, dona do próprio destino, empreendedora e que teve de lutar muito para chegar a essa posição”, diz Monica Albuquerque, diretora de gestão de talentos e desenvolvimento de produções de ficção da plataforma, sobre a personagem que vive no século 19. 

Segundo ela, a ideia é ter apelo tanto para quem assistiu à versão estrelada por Maitê Proença quanto para novas gerações, que conhecem melhor Grazi Massafera, a protagonista na nova versão. “O maior desafio de selecionar um remake é escolher histórias que mantenham a conexão com a memória afetiva da audiência, mas tenham espaço para outras camadas contemporâneas”, completa.

Não foi muito diferente com Cidade de Deus, que vira série também na Max em breve, com direção de Aly Muritiba (Cangaço novo). Não se trata de remake, porém, e sim de uma continuação, segundo Andrea Barata Ribeiro, produtora e sócia da O2 Filmes, que fez o longa de 2002, dirigido por Fernando Meirelles e Katia Lund. “Surgiu a ideia de usarmos alguns dos mesmos personagens e entender o que teria acontecido com eles 20 anos depois”, diz. “Uma das grandes diferenças é que a comunidade começava a ter voz, se organizava e fortalecia seus cidadãos e instituições. E isso conversava muito com os dias de hoje. Achamos importante contar sobre as pessoas comuns que moram na favela e sofrem com a falta de todo o tipo de estrutura, mas que se encontram fortalecidas enquanto grupo”, completa ela. 

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Deborah Evelyn, Grazi Massafera e David Junior no remake inédito de Dona Beja Foto: Divulgação/Victor Frad



Memória

O fato é que, mesmo sem ser garantia de sucesso, o público gosta de rever uma história conhecida. Não é à toa que séries como Friends (1994-2004), The office (2005-2013) e How I met your mother (2005-2014) são favoritas mesmo tendo à disposição centenas e centenas de produções originais novas. 

Ou que o canal Viva, que reprisa novelas antigas na TV paga, tenha visto sua audiência saltar 14% em 2023. Ou que a Globo tenha agora duas faixas de reprise nas suas tardes, as já citadas Vale a pena ver de novo e Edição especial, com audiências que são as maiores do canal até o início do horário nobre, que começa com a novela das 18h. 

Um remake também impulsiona o consumo no Globoplay. A Renascer de 1993 está na plataforma desde 2021, mas foi alçada ao top cinco de novelas do serviço desde a estreia da releitura, que, por sua vez, ocupa o primeiro lugar no ranking. 

Rever é uma escolha confortável em um tempo de aceleração, incerteza e excesso da contemporaneidade. Em vez de ter de escolher uma série ou novela nova entre milhares e investir seu tempo em algo que talvez não valha a pena, é mais fácil recorrer a algo que lembra a comida da sua mãe, em vez do prato desconhecido de um restaurante. 

Diferentemente do que se pensa, querer rever coisas antigas não é uma questão de nostalgia, como afirma Cristel Russell, a professora de marketing da Universidade Pepperdine, em Los Angeles, em entrevista ao site Vox. Para ela, não tem a ver com o passado.

Maria Immacolata concorda. “Existe a questão da memória nesse rever aquela novela. Esse rever é diferente, pois você está em outro momento da sua vida. E, quando você assiste, não há como você não lembrar: o que eu estava fazendo, passando naquela época?” Não se trata de saudosismo, e sim de memória. Para as novas gerações, um remake é uma chance também de assistir às novelas de que sua mãe, seu pai, sua avó falavam. E assim criar as suas próprias memórias e um sentido de pertencimento à brasilidade que as novelas refletem e representam.