A moda por todos e cada um por si

A fragmentação da indústria da moda no Brasil se tornou um obstáculo para toda a cadeia produtiva. Entre mergulhos históricos e conversas sobre coletividade, sobram entraves e faltam respostas.

Se tem uma coisa que é rara de encontrar na moda, é a unanimidade. Dez profissionais diante de um mesmo desfile, por exemplo, dificilmente vão ter a mesma opinião sobre o que viram. O que causa frisson em alguns faz revirar os olhos de outros. Mas agora, falando de Brasil, alguns temas parecem provocar reações semelhantes. Isso fica perceptível ao colocar as palavras “união” e “estilistas brasileiros” na mesma frase. Quase sempre, a resposta imediata é um meio sorriso debochado, cheio de descrença. Sabe quando a pessoa mais festeira do nosso círculo de amigos diz que nunca mais vai beber? Pois é. Com o mesmo ceticismo que se recebe a ressaca, se encara a perspectiva de uma organização coletiva ‒ porém essa dor de cabeça é imune aos analgésicos. 

“A falta de senso coletivo é falada há anos, e nada muda. Não tenho muita paciência mais”, comenta uma estilista, que preferiu não participar da matéria. O cansaço da pauta é compreensível. A falta de coletividade na moda é tão profunda, se relaciona com tantos fatores, que é difícil resumir a coisa toda. Aqui cabem diversas perguntas. Por onde anda a Associação Brasileira dos Estilistas (Abest)? Por que a Academia Brasileira da Moda fez sua última cerimônia de posse em 2017? Cadê os incentivos fiscais do poder público? E as outras semanas de moda com repercussão internacional no Brasil, fora o São Paulo Fashion Week? Haja fôlego, e esse é só um lado da discussão.

Para além do panorama geral, a relação histórica que estilistas e marcas mantêm entre si também cabe na reflexão. O ego, o drama, os carões, tudo isso faz parte do fino trato dos fashionistas. É assim no mundo inteiro. Cada um quer a sua estrelinha brilhando e, se a do colega estiver apagada, não é problema seu.

Unir para resistir

Em alguns momentos, não foi assim. Nos anos 1970, o Rio de Janeiro era a capital da moda no Brasil. A lendária costureira mineira Zuzu Angel, na época dona de um ateliê na cidade, repercutia a moda brasileira internacionalmente (ao mesmo tempo que lutava contra a ditadura). O mercado de consumo estava em plena ascensão. Vários estilistas surgiram, sobravam butiques à beira-mar. Não demorou para a euforia colidir com a repressão do regime ditatorial. A coisa foi apertando e, em 1978, surgiu o grupo Moda Rio, o primeiro coletivo de moda do Brasil, formado por Marília Valls, Luís de Freitas, José Augusto Bicalho, Teresa Gureg, Beth Brício, Sônia Mureb, Marco Rica, Ana Gasparini e Suely Sampaio. Foi um dos movimentos de moda mais emblemáticos do país, mas só resistiu cinco anos. 

Depois surgiram outras associações, como os grupos Mineiro e Cearense de Moda e o Núcleo Paulista. Arte Bijoux, voltado para o mercado de acessórios, e Moda Praia Rio, para atender as marcas cariocas de beachwear. Nenhum dos coletivos sobreviveu por muito tempo.

Antes disso, a Rhodia, grupo francês que estava dominando a indústria têxtil com a fibra sintética, criou a Feira Nacional da Indústria Têxtil, a Fenit. A primeira edição foi realizada em 1958, no Ibirapuera, e foi um fiasco. Na tentativa de atrair o público, as confecções começaram a organizar desfiles, tornar a decoração mais atraente e o clima menos sisudo.

“O ego, o drama, os carões, tudo isso faz parte do fino trato dos fashionistas.”

Deu certo e, em 1962, a Fenit deixou de ser uma feira para virar um acontecimento, o assunto do momento. A coleção Brazilian Nature, que uniu costureiros e pintores, foi a responsável pela glória. Os tecidos, desenvolvidos artesanalmente, ganharam manchetes internacionais. O evento chegou a vender mais de 20 milhões em 15 dias, e o que era uma feira virou um grande baile. Shows fervidos, artistas en passant, Paco Rabanne e Pierre Cardin na lista de convidados.

Tudo isso teve um impacto gigantesco no mercado da moda, impulsionou o surgimento da imprensa especializada e fortaleceu o trabalho dos modelos. A consistência permaneceu, e a feira foi realizada ao longo de 50 anos, um tempo recorde de sobrevivência. A última edição aconteceu em 2008. Aos poucos, o mundo foi trocando de lugar.

“Nos anos 1980, nove jovens estilistas criaram a Cooperativa de Moda. Foi um laboratório, mas, dos nove, só três emplacaram: Conrado Segretto, Jum Nakao e Walter Rodrigues. Normalmente uma associação precisa ter presidente, tesoureiro, regimento. Existem regras. Aí, surge a vaidade da disputa”, explica João Braga, professor de história da moda da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), em São Paulo. Ao lado do jornalista e escritor Luís André do Prado, João é autor do livro História da moda no Brasil, um dos mais completos estudos já realizados sobre a moda brasileira.

A descontinuidade histórica

Entre os anos 1950 e 80, muitas articulações foram feitas. Em 1955, houve o Festival da Moda, que passou a premiar os costureiros com a Agulha de Ouro (Clodovil Hernandes levou uma) e a Agulha de Platina. Manequins recebiam o Sapatinho de Cristal. A Associação Brasileira da Indústria Têxtil (Abit) foi fundada em 1957. Falando em tempos mais próximos, a Academia Brasileira da Moda veio em 1995, e a Associação Brasileira dos Estilistas (Abest), em 2003. Os exemplos de iniciativa são muitos. O problema, nos tempos atuais, parece ser a continuidade. A maioria desses projetos se dissolveu. E os que sobraram parecem capengar. 

“Existe uma descontinuidade dessas associações e parcerias, e os motivos são muitos. A moda no Brasil é muito mais iniciativa privada do que uma política pública. Não existe apoio do governo, e não temos a cultura de olhar para a moda como uma tradição. Esse é um problema. Mas o pior de todos, penso eu, é a vaidade. Quem vai ser mais visto nessa associação? O que cada um vai ganhar com isso? A coisa desanda antes mesmo de ter um regimento próprio. Lindas ideias surgem, mas rapidamente debandam”, reflete João Braga.

Atualmente, a Abest conta com 123 associados. Uma pechincha se comparado ao número de estilistas ativos no Brasil. De acordo com as notícias publicadas no site oficial, é possível perceber que há pouco espaço para ações efetivas que visam a organização coletiva. Sobram workshops sobre o mercado internacional, incentivo à exportação e notas sobre a abertura de lojas conceito em bairros nobres. É o luxo do luxo, o Brazil do Brasil. Há quem ache uau, há quem ache uó e há quem não ache nada. Cada um tem seus motivos.

“A moda é criação, domínio técnico, linguagem coletiva? Sim, mas não se pode negar em hipótese alguma que moda é business. A moda é negócio. E, às vezes, o negócio não está indo bem”, pontua João.

Por causa da colonização, do cenário político historicamente caótico do Brasil, da desigualdade social ou da conjunção astral do Big Bang, o Brasil é carente dos dois lados. Falta a moda ser incentivada enquanto cultura, e também falta articulação política para financiar o mercado. Um problema antigo, de resolução duramente utópica, acontecendo constantemente em tempo real.

 

Só quem vive sabe

A pandemia (sim, mais uma vez) movimentou a pauta sobre a coletividade, especialmente no Brasil. Se já estava difícil para os grandes conglomerados, que bateram recordes de venda com seus e-commerces gigantes e ligeiros (a exemplo da Farfetch, que arrematou 2 milhões de clientes em 2020, enquanto o mundo virava poeira), imaginemos para os pequenos designers à frente de marcas independentes. A fonte, que já não jorrava tanta água assim, secou para muitos. Unir-se virou uma emergência.

Motivados pelas discussões recentes sobre o mercado e principalmente pela precarização constante de estilistas racializados, o designer paulistano Rafael Silvério e a modelo carioca Natasha Soares criaram o projeto Sankofa, uma iniciativa que incluiu sete marcas, comandadas por profissionais negros no line-up do SPFW em 2021. Foi uma das poucas movimentações recentes cujo impacto realmente chacoalhou o cenário, mas resistiu duas temporadas.

“Todo mundo precisa vender, colocar suas peças na mídia, aparecer. É um caminho solitário ser uma marca pequena no Brasil. Estamos todos adoecendo, atrás de ter uma estabilidade mínima. Quem sou eu para dizer a alguém que está com fome que ela precisa dividir o pão?”, questiona Silvério.

Até a dimensão geográfica do Brasil entra no jogo. O Reino Unido cabe inteiro dentro de São Paulo. A Bahia é do tamanho da França. Organizar uma casa com tantos moradores exige jogo de cintura, disponibilidade emocional, saúde mental, esperança de futuro. Quem se habilita?

“Quanto maior é o grupo, mais difícil é convergir e chegar a um ponto em comum. A depender do grupo, pessoas racializadas, mulheres, LGBTQIAPN+ ou qualquer outro grupo em desvantagem social, as demandas são diferentes. Esse individualismo tem várias facetas. É um processo histórico e profundo, difícil de resumir, complexo. Falar sobre isso exige prudência”, analisa Silvério. “Você sai de casa, encontra outro estilista, fala de suas dificuldades. Ele fala das dele. E todo mundo volta para casa depois.”

A falta de um grupo forte e duradouro reduz muitas possibilidades. Um calendário unificado de lançamentos, vendas e desfiles, por exemplo, parece um sonho. “Já pensou uma compra de tecidos coletiva, com os mesmos fornecedores? Sem dinheiro, não tem passarela. O investimento é muito difícil, mas, para alguns grupos, é difícil em dobro”, ressalta Mônica Sampaio, à frente da Santa Resistência, marca que integrou o Sankofa.

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Santa Resistência. Foto: Divulgação

“Quem sou eu para dizer a alguém que está com fome que ela precisa dividir o pão?”
Rafael Silvério

Natural do Rio de Janeiro, Mônica era engenheira elétrica e só começou a estreitar relações com a moda em 2015. Assim que começou, participou dos Afrocriadores, o primeiro coletivo de moda voltado para pessoas negras no estado. “Abrimos uma loja colaborativa, mas não deu certo. Não havia união. Todo mundo queria garantir o seu espaço e o funil era muito apertado. Fomos ensinados a competir e acreditar que só há espaço para um brilhar”, lembra a designer, sem poupar agradecimentos à amiga Angela Brito, estilista cabo-verdiana radicada no Brasil há mais de 30 anos.  “Ela é minha madrinha. Para tudo o que eu preciso, para qualquer dúvida que eu tenha, conto com ela. Fui amadurecendo na moda e percebi que precisamos escolher as pessoas que caminham ao nosso lado.”

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Look da marca Silvério e o estilista Rafael Silvério. Foto: Divulgação

E como faz?

O tal funil apertado que Mônica citou é algo para pensar. De fato, é indiscutível o quanto o ego inflado e a vaidade podem ser nocivos, mas, na vida real, com os boletos chegando 24 horas por e-mail e não mais debaixo da porta, não dá para achar que tudo é como um episódio de O Diabo veste Prada. Se tratando de Brasil, a logística operante da moda precisa ser considerada. Dá para entender a necessidade da organização coletiva, sem desmerecer os motivos por trás do vácuo. Sim, é tudo muito difícil de amarrar mesmo.

Saindo do Sudeste e indo para a Bahia, a técnica manual de crochetagem da Ateliê Mão de Mãe, dos diretores criativos Vinicius Santanna e Patrick Fortuna, virou febre em Salvador. Desde 2021, quando a marca fez sua primeira aparição no SPFW, a marca só expande. Inaugurou este ano, inclusive, a primeira loja física em Salvador. Até aí, tudo bem. O problema é que outros profissionais enxergaram o sucesso da dupla como oportunidade e passaram a copiar. Vinicius tem um acervo de plágios milimétricos printados no celular. Nem todo mundo se importa com acabamentos malfeitos e materiais de baixa qualidade.

“Fomos ensinados a competir e acreditar que só há espaço para um brilhar”
Mônica Sampaio

“Tem influenciadoras locais que procuram cópias, pagam mais barato e não consomem direto com a gente porque acham caro. Reclamam de um top feito à mão que custa 700 reais, mas pagam 50 mil em qualquer grife internacional”, revela Vinicius. Apesar dos transtornos, ele parece compreender. “Fomos ensinados a viver de forma muito escassa artisticamente aqui, no Nordeste. Desde sempre, fazem a gente acreditar que existe apenas um espaço. Isso traz rivalidade, fica cada um por si. Tenho esperanças de que um dia a gente consiga formar um coletivo.”

A rara unanimidade, de um jeito contraditório, também se estende para a esperança de Vinicius. Os designers estão cansados. Os pequenos designers, exaustos. A busca pelo patrocínio segue sendo motivo de insônia para muitos. A angústia é compartilhada. A vontade de ver as mudanças acontecerem ainda nessa vida também. Nem todo mundo está no mesmo barco, mas a correnteza da navegação é a mesma. Na ausência de respostas, a reflexão é tudo o que se tem. João Braga deixou escapar uma frase que resume bem o sentimento: “Eu trabalho com história. E não existe história do futuro. Só do passado”.

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Look da marca Ateliê Mão de Mãe e o estilista Vinícius Santana. Foto: Divulgação