Alquimia tropical

Mesmo diante de um cenário dominado por conglomerados enormes, a perfumaria autoral brasileira ganha cada vez mais corpo.

O Brasil é o segundo maior mercado de perfumaria do mundo, mas, de acordo com Renata Ashcar, autora do Guia de perfumes, uma publicação bianual que cataloga lançamentos e clássicos do segmento, se engana quem tem a impressão de que os importados são os grandes hits. “Noventa por cento do que se vende por aqui são perfumes nacionais”, assegura. 

Boa parte dessa larga fatia está representada por dois gigantes: Natura e O Boticário – a primeira com mais de 1 milhão de revendedoras e o segundo com 4 mil lojas físicas. “Por isso, é um desafio enorme para qualquer marca independente se inserir nesse cenário. Além disso, em um país tão grande como o nosso, tudo acaba esbarrando na questão da distribuição”, continua.

A saída para as pequenas empresas é apostar em algo que somente um mercado como o da perfumaria é capaz de oferecer: um imaginário suscitado por narrativas olfativas refinadas. E, claro, a internet como o veículo para essas histórias. Se parece estranha a ideia de comprar um perfume sem cheirá-lo antes, vale olhar para a resolução que a Amyi – criada por Luciana Guidi e Larissa Mota no final de 2019 – encontrou.

A Experiência Amyi consiste em um questionário dedicado à descoberta do seu perfil olfativo. Depois de escolher um dos dois planos disponíveis, você recebe em casa seis versões pequenas de diferentes fragrâncias da marca. Nos dois casos, o valor é o mesmo de um frasco em tamanho grande (100 ml). Algo similar, inclusive, acontece na Lenvie – outro expoente da perfumaria autoral brasileira, fundado por Fabio Ottaiano e pela dupla (e casal) de perfumistas Fanny Grau e Isaac Sinclair. No site da marca, você encontra um Discovery Kit, repleto de amostras para teste, à venda. “Uma fragrância não é como uma peça de roupa. Ela evolui, vai se fundir ao seu tipo de pele e terá outra performance dependendo do clima”, explica Helen Augusto, especialista em perfumaria há 30 anos.

Feito no Brasil

O nome Amyi vem do tupi (“amýi”) e significa “ao lado, juntos, entrelaçados”. A escolha reflete um de seus principais propósitos: a parceria com profissionais exclusivamente do Brasil. “Sabe a frase clássica da perfumaria sobre existirem no mundo mais astronautas do que perfumistas? A nós interessa a outra parte da informação: a de que entre 15 e 20% deles são brasileiros”, conta Luciana. “A gente aposta muito no trabalho de quem tem a bagagem das casas internacionais, mas que sabe juntar isso ao seu próprio repertório de ser daqui, ter nascido aqui, ter memórias aqui.” Hoje são eles: Cleber Bozzi, Hernan Figoli, Leandro Petit, Maria Fernanda Faigle, Samuel Moraes e Sandra Casagrande. 

“Eles não têm briefing. É 100% de liberdade criativa. Nós investimos muito na criação de um perfume e queremos que ele reflita totalmente a paixão e inspiração de quem o criou”, diz Luciana. 

Foi assim que, seis meses depois do lançamento das nove fragrâncias iniciais, em uma indicação inédita na perfumaria brasileira, o Amyi VIII, de Samuel Moraes, foi finalista na categoria Perfumaria Independente do prêmio internacional The Art and Olfaction Awards. “Tudo na Amyi é uma aposta que a gente banca. Fomos muito felizes com essa escolha, porque era o auge da pandemia e o nosso estoque, que estava meio parado e estimado para durar um ano e meio, esgotou em seis dias depois da notícia da indicação.”

Daí em diante, a marca não parou de crescer – já está no segundo ano em que dobra de tamanho. 

amyi

Um dos fatores que fazem essa conta fechar é que a Amyi é uma empresa DNVB (Digitally Native Vertical Brand), o que quer dizer que a operação já nasce dentro do online e a venda é feita através de um e-commerce próprio. “Não ter o custo do varejo nesse início é o que permitiu que mantivéssemos um produto com tanta qualidade e investimento com um valor mais acessível”, explica Luciana. Hoje todas as 18 opções de eaux de parfum de 100 ml do portfólio saem por 615 reais. 

A Lenvie, por sua vez, começou em outro segmento, o de perfumaria para a casa – e no modelo clássico de varejo e atacado. “Até soa estranho para nós agora, mas há 12 anos as pessoas não tinham nem o hábito de acender velas e quase nenhuma empresa operava apenas no online”, lembra Fabio.

A insistência nas velas valeu a pena. O mercado ganhou tração inédita durante a covid-19 e a perfumaria de casa da marca, até hoje, representa quase 85% de seu faturamento. Foi isso que permitiu que houvesse espaço e fôlego para, a partir de 2019, realizar o sonho dos fundadores: uma linha autoral de eaux de parfum

“É um mercado que vem crescendo cada vez mais. E, como começamos com casa, temos o desafio de comunicar para a nossa clientela, que já nos conhece, que também fazemos uma linha para o corpo. Estamos muito dedicados a alcançar um equilíbrio entre as duas áreas”, continua o fundador. “É comum que a necessidade de um produto venha do marketing. Na Lenvie, isso não acontece. O ponto de partida é sempre o criativo. Não à toa, o nosso posicionamento é o da perfumaria autoral. Temos a liberdade absoluta na criação de uma fragrância. Aliás, até o final do ano, teremos mais dois lançamentos”, adianta ele, antes de revelar que, possivelmente, a primeira loja física da marca está chegando. 

“Não é porque o produto internacional é mais caro que ele é melhor”
Fabio Ottaiano

Fabio também aproveita para destacar que, muitas vezes, o consumidor faz uma associação perigosa entre o custo e a qualidade. “Não é porque o produto internacional é mais caro que ele é melhor”, defende. “Na verdade, os nossos perfumes são feitos com ingredientes que se equiparam às linhas de alta perfumaria internacionais, cujo preço médio fica na faixa dos 2 mil reais. O nosso custa quatro vezes menos, mas não perde em nada.”

lenvie

Fernanda Elisa, empresária que, depois de trabalhar por duas décadas radicada fora do Brasil para grifes internacionais e grandes grupos multinacionais especializados em fragrâncias, lançou sua marca própria, em 2023, a Felisa, endossa: “Quero romper a barreira do preconceito com o produto brasileiro de luxo. Queria fazer algo espetacular, inquestionavelmente luxuoso. Por isso, trabalhamos com matérias-primas muito especiais. Lavanda francesa, sândalo australiano, baunilha madagascarense… São ingredientes do mundo inteiro”.

E todos eles são usados para criar combinações que fogem a todas as regras. “Não é para qualquer pessoa mesmo. A Felisa – e a perfumaria de nicho de modo geral – é para quem procura algo diferente. O público brasileiro está mais antenado, e esse debate vem se desenvolvendo, se aprofundando”, diz. 

Também nativa digital, a marca possui hoje 35 pontos de venda espalhados pelo país. “Ainda assim, 20% do faturamento vem do nosso e-commerce.”

felisa

Nicho verde e amarelo

O fato é que, nos últimos cinco anos, o interesse do brasileiro por perfumaria alternativa, exclusiva, luxuosa, fora da caixa, de fato vem aumentando. Em 2019, a Neeche abriu a sua primeira loja no país, no Shopping Iguatemi, em São Paulo. Trata-se de uma multimarcas que vende frascos de marcas como Maison Margiela, Montale, Mancera e Roja – 100% autorais.

Com o sucesso da primeira investida, uma filial surgiu no JK Iguatemi, no ano passado. Além disso, a Opaque – uma multimarcas de importados presente em vários shoppings ao redor do país – também passou a vender marcas nichadas, como Creed, Parfums de Marly e Xerjoff, entre outras.

“Ainda assim, quando falamos desse mercado em perfumaria brasileira, estamos em um lugar diferente”, finaliza Renata Ashcar. “Tudo aponta para uma consolidação, para um amadurecimento desse cenário. Mas ele ainda é muito incipiente. De novo, se 90% dos perfumes comprados no Brasil são brasileiros, com o crescimento do segmento nichado, não deve demorar para que a fatia de interessados pelo perfume autoral brasileiro cresça”, aposta. Marcas determinadas a fazer essa virada acontecer não faltam.