Você está em 1992. Os fones de ouvido eram discmen. A caixinha de som, pesada tal qual um tijolo, precisava ser conectada na tomada. Spotify se chamava MP3. E quem ouvia rap só queria saber de Kriss Kross. O duo estadunidense virou uma febre absoluta no mundo inteiro com a música “Jump”, mas o hit era apenas uma parte do sucesso. Os artistas vestiam diversas peças de roupa ao contrário e logo começaram a chamar a atenção pelos looks. O que gerou estranheza inicial virou tendência. Um monte de gente começou a sair por aí com o casaco do avesso. O DJ KL Jay, integrante do Racionais MC’s, foi um que entrou na onda. A comoção desse momento, que costuma ser lembrado até hoje como um marco da relação entre o hip-hop e a moda, ia muito além da estética. Existia o desejo de fugir da norma, encontrar seus pares. Pode-se até chamar de rebeldia. Nesse caso, era pouco sobre as roupas e mais sobre a música, a cultura, o comportamento. É meio por aí que caminha o tal do streetwear.
Já faz algum tempo que traduzir streetwear como “moda de rua” soa vago. Sendo a rua um espaço público, como delimitar quando a moda passa por ela? Aliás, de quais ruas estamos falando? Enfim, questões. Para além dos problemas com o termo em si, as circunstâncias atuais ‒ e aqui estamos pensando em movimentações de mercado e transformações sociais ‒ dificultam a clareza desse significado. “Roupa casual” também não contempla. Será que um tênis que custa 10 mil dólares pode ser considerado streetwear? Depende do contexto. A linha é tênue, se é que ainda há alguma linha.
A pergunta em relação ao tênis não é em vão. Fruto da collab lançada entre a Nike e a Off-White de Virgil Abloh, em 2017, a coleção de dez calçados esgotou em minutos. Compreensível: Virgil, também diretor artístico da Louis Vuitton na época, é uma lenda. Foi o grande responsável por estabelecer o streetwear no topo da moda de luxo e um dos poucos homens negros a dirigir uma maison. E a Nike… Bom, é a Nike. Em 2021, Virgil faleceu, vítima de um câncer agressivo no coração. A perda irreparável elevou o valor agregado dos produtos e fez o Air Jordan 1 Chicago ser comercializado por mais de 50 mil reais. Em vida, o estilista já tinha declarado, algumas vezes, a sua visão sobre o streetwear. Acreditava que o termo iria desaparecer, pois moda de rua e mercado de luxo estavam se confundindo cada vez mais. Disso, não dá para discordar.
“Outro bom exemplo de como algo sai das ruas e vai parar no mainstream são as calças largas. Houve até uma marca chamada Prison Blues, fundada por detentos estadunidenses, que bombou na época. “Feitas na detenção para serem usadas em liberdade” era o slogan.
Já faz bastante tempo que o streetwear e o luxo se aproximaram. Os motivos são facilmente compreendidos quando pensamos em origens e jogos de interesse. O significado do streetwear, por essência, é para lá de ideológico. Não se reduz à moda, mas compreende diversos grupos ‒ em geral, marginalizados ‒ e surge da necessidade de valorizar o que o padrão rejeita. Acontece que ninguém quer viver na sombra para sempre, especialmente quem já conviveu muito com a penumbra.
Voltando aos anos 1990, o hip-hop explodiu nos Estados Unidos, e os rappers começaram a cantar sobre dinheiro. Em paralelo, a cena artística como um todo se tornava menos branca, ao mesmo tempo que os esportes vistos com maus olhos, como o surfe e o skate, se profissionalizavam. Os ídolos estavam mudando de figura.
No Brasil, os Racionais já estavam entre nós. O funk vivia uma época de ascensão. MC Marcinho tocava em todas as rádios, com “Garota nota 100”, ao mesmo tempo que Claudinho e Buchecha e Tati Quebra Barraco brilhavam na mesma safra. Manifestar vivências pessoais por meio da arte, além de fortalecer conexões, era cool. O interesse das grifes consolidadas pelo streetwear parece ter muito a ver com isso.
“O luxo tem a necessidade de criar comunidades. Isso atrai novos consumidores, números e muitas vendas. Vejo o streetwear como uma comunidade que consegue reunir referências diversas e se unir através de ramos diferentes”, comenta Bruno Luciano, fundador do NOTTHESAMO, uma multiplataforma brasileira que há dez anos viabiliza projetos voltados para a comunicação e o fortalecimento da cena urbana de moda e comportamento.
Bruno Luciano. Foto: Fernando Mendes
“Muitos elementos de estilo nascidos na rua estão hoje no mainstream, e esse movimento é uma via de mão dupla entre o streetwear e o luxo. A Yellow Boot, da Timberland, é um clássico que teve diversas releituras no mercado de luxo. Inclusive uma collab recente com a Louis Vuitton”, lembra Bruno, acrescentando também suas memórias sobre os conjuntos de moletom, zip hoodie e calças jogger. “É normal a gente ver isso nas passarelas hoje. Virou algo recorrente nos desfiles. Não era assim.”
De fato, os moletons, assim como os tênis, surgiram do utilitarismo. Eram peças voltadas especificamente para a prática de esportes, com foco em conforto e boa performance.
“Houve um aumento dos contratos assinados entre jogadores de basquete e marcas esportivas nos anos 1990, o que permitiu a produção de silhuetas exclusivas. Elas ficaram popularmente conhecidas como PE’s (Player Editions, edições especiais desenvolvidas para jogadores). Esse movimento não só contribuiu com a comercialização de modelos que antes só eram vistos em quadras, como também resultou em colaborações entre marcas e atletas. O combo perfeito”, explica Victor Santo, idealizador do Papo de Tênis, um evento gratuito que promove rodas de conversa sobre a relação do tênis com a moda e a cultura. Os encontros acontecem presencialmente em São Paulo, mas são gravados e disponibilizados nas redes para quem quiser assistir.
Victor Santo. Foto: Gabriel Pires
Outro bom exemplo de como algo sai das ruas e vai parar no mainstream são as calças largas. Hoje, existe uma infinidade de modelos e silhuetas polidas que cabem no aesthetic das redes sociais, mas as versões primogênitas (com direito à cueca aparecendo e barra suja de tanto arrastar no chão) foram inspiradas no uniforme usado por presidiários. “A cultura da prisão vira moda entre jovens”, diz o título de uma matéria publicada pela Folha de S.Paulo, em 1995. O texto ainda está disponível online e vale a leitura. Houve até uma marca chamada Prison Blues, fundada por detentos estadunidenses, que bombou na época. “Feitas na detenção para serem usadas em liberdade” era o slogan.
Collabs estratégicas
Falar em streetwear começou a ser mais comum com a chegada da californiana Stüssy, em 1980. Originalmente uma marca de surfwear, a etiqueta foi adotada por outras cenas e logo se tornou a primeira marca de streetwear mundialmente conhecida. Hoje, a Stüssy é um império ‒ e um bom exemplo de como a aproximação do luxo pode dar certo. A label tem lojas em quatro continentes e lançou collabs com Dior e Dries van Noten, ambas em 2019.
A Supreme, que chegou em 1994 com uma proposta similar, foi o assunto de 2017 ao assinar uma coleção com a Louis Vuitton, dirigida na época por Kim Jones. A parceria é um assunto recorrente até hoje e foi responsável pelo crescimento de 23% nos lucros do conglomerado de luxo LVMH. Ao mesmo tempo, a Supreme se tornou cada vez mais desejada e conseguiu expandir seu nicho. Após disputas judiciais e uma série de entraves, que quase inviabilizaram o lançamento, uma mão lavou a outra.
A Adidas colaborou com a Gucci e a Prada, em 2022. Em 2018, Ralph Lauren e Palace também se juntaram. A mais recente veio em abril deste ano, entre a marca de tênis Skechers e a sofisticada Diane von Furstenberg.
Em todas essas colaborações, os lançamentos acontecem nos chamados drops, ou seja: estoque limitadíssimo e sem reposição. Gerar desejo e senso de urgência é o objetivo, e a fórmula funciona. A marca lucra, e quem compra também. Por causa da exclusividade, artigos vendidos em drops costumam triplicar de preço em poucos meses (e podem sempre ficar mais caros, a depender das movimentações das marcas). Se alguém quiser vender, haverá gente querendo comprar. O fenômeno de consumo é baseado no hype, na busca pelo que é a coisa do momento. E existe até um nome para o ofício: são os “hyperbeasts”, colecionadores desses produtos seletos.
“A dinâmica de consumo é gerar a procura por meio da sensação de ter algo que poucos podem possuir”, pontua Victor Santo.
“A relação com o futebol, o clima tropical, a desigualdade econômica, a qualidade do transporte público, tudo influenciou a forma com que os grupos socialmente marginalizados no Brasil aprenderam a consumir.”
No Brasil, o fenômeno também é perceptível, mas parece ser mais horizontal. Marcas do mesmo segmento, porém com estruturas bem diferentes, têm lançado coleções recentes com estoque limitado. Como Oakley e PIET, Kenner e Baw, Levi’s e Martins.
É do Brasil
Os grandes elementos de moda nativos do streetwear global são consolidados há bastante tempo no Brasil, mas, como é repetido incansavelmente por aí, a moda não caminha sozinha e reflete o que acontece ao redor. A relação com o futebol, o clima tropical, a desigualdade econômica, a qualidade do transporte público, tudo influenciou a forma com que os grupos socialmente marginalizados no Brasil aprenderam a consumir. Algumas tendências são só nossas. E basta centralizar o olhar nas periferias para perceber isso.
Dona de um acervo especializado em peças dos anos 2000 e pesquisadora de moda, TriXXie tem 25 anos. Com metade deles, já se interessava por moda e recorria a animes, mangás e bandas ‒ como a alemã Tokio Hotel ‒ para se inspirar. Ela era apaixonada pelas plataformas de Vivienne Westwood e pelos saltos das Spice Girls. No entanto, as referências gringas foram adaptadas à realidade brasileira. Marcas como Dijean, LuiLui, Pulo do Gato e Goofy eram suas favoritas. O seriado do momento era a novela Malhação, da TV Globo.
“O acesso à internet me colocou mais próxima das movimentações que aconteceram no mundo durante os anos 2000 e que foram pontuais para o meu desenvolvimento hoje. Apesar de me sentir ligada a esse mundo, a pobreza sempre me assustou. Eu não queria ter a mesma dor dos meus pais. Era só um hobby. Gostar de moda era um luxo a que eu não podia me dar na época. Hoje uso o meu trabalho para mostrar que a moda pode ser para todo mundo”, relata.
TriXXie. Fotos: Divulgação e Tauana Sofia
À frente da Mile Lab há seis anos, Milena Nascimento começou seu trabalho na moda como estilista. Desfilou no SPFW em 2021 e lançou algumas coleções, mas expandiu seus horizontes para além do design. A marca, que continua existindo, virou um laboratório de criação e pesquisa de moda. Cria do Grajaú, periferia do extremo sul da capital paulista, Milena assumiu o posto de diretora criativa multidisciplinar. A convite da NTS Radio, de Londres, assinou a direção do disco Funk.BR São Paulo, a primeira compilação internacional de funk paulistano. O projeto viralizou, bateu milhares de visualizações e foi compartilhado até pelo ator Will Smith.
“A moda de rua no Brasil é diversa. Existem várias periferias, inúmeros grupos que compõem esse movimento. Não existe nada homogêneo. Essa busca pela delimitação quase sempre resulta em fortalecimento de estereótipos. O funk não é a representação máxima do que é a periferia. Não para todas as pessoas que estão nesses espaços. O rock está aí, o reggae, o pagode. Moda de rua é mistura. O Brasil é imenso. Meu propósito é justamente contribuir com a legitimação dessas identidades negras e marginais, que são plurais”, diz Milena, que encerra a reflexão citando uma frase do poeta piauiense Nêgo Bispo: “Enquanto a sociedade se faz com os iguais, a comunidade se faz com os diversos”.
Laboratório Criativo de Moda Margina, projeto da Mile Lab, para a NTS Radio. Fotos: @ladeirra