Tamanho continental

Como o mercado de moda brasileiro tem falhado ‒ e acertado ‒ com as medidas dos corpos das mulheres.

Kledir Salgado, professor da graduação em design de moda do Senac, certa vez passou por apuros ao sair de casa com um macacão feminino. Ele estava no banheiro do bar Funilaria Bixiga, no centro de São Paulo, e precisava usar o mictório. O macacão tinha o zíper em sua parte de trás e Salgado não conseguia abri-lo. “Dois caras tiveram que me ajudar. Fiquei praticamente pelado para usar o mictório, pois o macacão teve que ficar à altura dos joelhos”, lembra.

Em outra ocasião, o professor, que mora sozinho, precisou pedir ajuda ao porteiro do prédio para conseguir abrir o tal zíper. “Aí eu percebi por que a mulher demora para ir ao banheiro”, diz, rindo.

Os episódios são apenas alguns dos perrengues desde que Salgado passou a usar roupas femininas, além das masculinas. Ele chegou à conclusão, por exemplo, de que projetos de roupas para mulheres tendem a não ter a praticidade priorizada.

No entanto, bolsos rasos demais e sutiãs feitos para apenas o homem desabotoar com certeza não são os únicos problemas. “Digo sempre para os meus alunos: nós estamos em 2024 e a modelagem não é revista”, conclui.

Pois é. A falta de diversidade dos corpos das brasileiras, somada à cultura machista do mercado, cujos padrões de modelagem tendem a não ser realistas, é motivo de queixas por parte das consumidoras há anos.

SIZE BR

Em 2021, a ABNT (Associação Brasileiras de Normas Técnicas) deu um passo na tentativa de resolver esse problema ao aprovar a NBR 16933, uma norma para as tabelas de medidas que abrange dos tamanhos 34 ao 62 e os biótipos colher e retangular.

Trata-se de uma iniciativa liderada pelo Comitê Brasileiro de Têxteis e Vestuário, da ABNT, realizada com o apoio do Senai-Cetiqt, cuja pesquisa “SizeBR – O estudo antropométrico brasileiro”, de 2017, serve de base para a diretriz.

O problema é que, na prática, ela não é obrigatória. E as etiquetas das roupas femininas seguem não detalhando as medidas de cintura, busto e quadril, embora essa seja a recomendação da ABNT para os estilistas, as varejistas e a Associação Brasileira de Plus Size.

Vale lembrar que a NBR 16933 foi a primeira aprovada após a anterior, de 1995, ter sido revogada, em 2012. Enquanto isso, em 2009 foi aprovada a norma para medidas infantis e, em 2012, a de medidas masculinas.

“O Brasil é um país de dimensões continentais, com muitos corpos diferentes”, reforça Salgado. “O corpo de uma mulher nordestina, comparado ao de um homem sulista, pode ter variações muito grandes de medidas, o que não ocorre em outros países, como o Japão.”

Segundo o SizeBR, 76% das mulheres brasileiras têm o corpo retangular, com tórax, cintura e quadril alinhados. Já os formatos triângulo e colher são de grupos que abarcam 8% da população feminina, cada um. Eles se referem, respectivamente, à silhueta em que o quadril é maior que tórax, mas sem cintura marcada, e o quadril é maior que o tórax, com curvas salientes e arredondadas. O triângulo invertido, em que a circunferência do tórax é maior que a do quadril e a cintura não tem curvas nítidas, é o formato de 5% das mulheres. Já o ampulheta, com proporcionalidade no tórax e no quadril e cintura com curvas bem marcadas, corresponde a 3% dos corpos.

 Valiosíssimo, o estudo colocou na mesa informações importantes. Contudo, a não-obrigatoriedade da implementação da norma, no frigir dos ovos, ainda pode deixar a consumidora desorientada no ato da compra.

TIPO IMPORTAÇÃO 

Esse gap entre a realidade e a teoria não ocorre por acaso. Historicamente as medidas de roupas implementadas no Brasil vieram da Europa, mas de acordo com Salgado, o corpo da brasileira tem três raízes ‒ a indígena, a negra e a europeia. A percepção que temos em nosso imaginário dessas silhuetas “é sexualizada como um objeto de poder masculino”.

“Foi construída uma curva de espartilho ainda mais justa do que na Europa, um busto mais levantado. Além do fenótipo, o desenho que se manifesta na modelagem brasileira é o discurso de poder vigente”, aponta o professor.

Vitorino Campos, estilista e autor do livro Modelagem feminina plana (Senac, 2023), tem visão semelhante. “Quando comecei a trabalhar com moda, as medidas eram copiadas de padrões da Europa, onde a cultura de moda nasceu. A gente fazia uma peça de roupa que não cabia em ninguém, não valorizava as curvas da mulher brasileira. Por isso lancei o livro.”

Ainda assim, afirmam Salgado e Campos, nos últimos anos a cobrança pela diversidade de tamanhos e da ampliação do conceito de beleza feminina contribuiu com mudanças para melhor. Ambos concordam que recursos tecnológicos também têm colaborado com esse processo.

Fundadora da marca brasileira Reptilia, Heloisa Strobel é uma das que conseguiram pluralizar as modelagens ao lançar mão de um ateliê digital, desde a metade de 2023. Assim, ela consegue otimizar o uso de recursos e de matéria-prima e, claro, ter mais facilidade para alterar medidas.

“Quero levar conforto e funcionalidade para quem veste as roupas da Reptilia. No mundo em que vivemos, não há espaço nem recursos para o supérfluo. É preciso criar peças que sejam necessárias e apresentem um compromisso com a diversidade de corpos, que vão além de uma tendência ou estética”, afirma.

Vitorino Campos vê a metade do copo cheia e acredita que o mercado está em transformação e que esse é um caminho sem volta. “As marcas estão cada vez mais fazendo esse exercício dentro de seus departamentos criativos, mesmo com a indústria brasileira tendo muitos desafios em relação à mão de obra e ao maquinário para desenvolver produtos.” Ele destaca: “Antes, a moda ditava o que era beleza. Hoje, ela está aprendendo a olhar a individualidade das pessoas em seus mais diversos aspectos”.

Salgado, o professor do Senac, acredita ainda que, embora a implementação da NBR 16933 não seja obrigatória, as instituições da moda podem usá-las para formar profissionais alinhados à norma e ao presente. Idealmente, ele diz, isso deveria ser lei.

“Mas não acredito que uma política pública de padronização esteja próxima de acontecer no Brasil. As marcas não querem e não cogitam isso porque cada uma trabalha com a ‘fórmula mágica’ de seu público-alvo. Se elas têm uma tabela de medidas que agrada os clientes e o corte é bom, os fidelizam. Se perderem isso, perdem essa expertise.”