Uma novela que se passa na Bahia, que tem o cacau como pano de fundo, um “galã rústico”, interpretado por um ator de origens indígenas. Não poderia soar mais brasileiro.
De segunda a sábado, Xamã interpreta o Damião do remake de Renascer, um matador com a missão de dar cabo do protagonista da trama (Marcos Palmeira), que se apaixona por uma das empregadas (Mell Muzzillo) da sua fazenda, por quem promete abandonar a vida de assassino. O ex-matador vira então capataz e acaba se envolvendo com a nora do patrão (Sophie Charlotte), em um triângulo amoroso que faz subir o termômetro da trama.
Xamã também vive um bandido na série Justiça 2, que estreou neste mês de abril na Globoplay, e ainda em 2024 poderá ser visto nos filmes Maníaco do parque (Prime Video) e Cinco tipos de medo.
Enfileirando trabalhos, o ator de 34 anos é na verdade um estreante na dramaturgia e um veterano no rap. Com apresentações no Rock in Rio e no Lollapalooza, ele conta com quase 8 milhões de ouvintes mensais no Spotify.
Sua trajetória na música começou com ele rimando em trens do Rio de Janeiro, onde vendia balas e amendoim. Criado em um sítio “no meio do mato”, em Sepetiba, Zona Oeste do Rio, ele cresceu rodeado por mulheres, que continuam chegando: é pai de Hannah, 2 anos, e Akasha, 6.
À ELLE, Xamã fala sobre as “resenhas” com Jackson Antunes, ou “seu Jackson”, que interpretou Damião na primeira versão de Renascer (1993) e também está no elenco do remake, sobre o foco na atuação, a relação com as redes sociais e a própria ancestralidade, cujo resgate começou durante a pandemia, com visitas a aldeias indígenas, numa busca pela história que envolve a etnia do pai, com quem não teve contato.
À esquerda, Xamã com Jackson Antunes, que interpretou Damião na primeira versão de Renascer, de 1993 Foto: Globo/Léo e Globo/Bruno Stuckert
O seu Damião tem feito bastante sucesso na novela. Além da primeira versão, onde você foi buscar referências para esse personagem tão emblemático, machão, matador, que acaba se rendendo ao amor, mas depois traindo a mulher?
O que eu vejo é um personagem que teve uma vida muito difícil, com alguns comportamentos pelo fato de ser um assassino, viver de casa em casa. Coisas muito frias. Acho que essa profundidade está no texto do Benedito (Ruy Barbosa, autor da primeira versão da novela) e foi algo que consegui entender o lendo várias vezes, com as preparações que a gente teve. Foi uma percepção que veio com o tempo, com muito estudo para imprimir uma coisa diferente do que o seu Jackson fez, um Damião novo.
O Jackson Antunes já contou que na época em que fez o Damião recebia muita calcinha de presente. Você percebe o seu Damião também ocupando esse lugar do “galã rústico” no imaginário das pessoas?
Não penso muito sobre isso, não, mas sabia dessa história. (risos) O seu Jackson é muito engraçado, uma das pessoas mais legais do set. Toda vez que eu tenho uma cena com ele, é só risada e resenha. Parar perto do Marquinhos Palmeiras e do seu Jackson é história para sempre. (risos) Ele (Jackson) falava muito dessa desconstrução do que é o rosto de um galã, e eu acho bacana. Ele brinca muito com essa coisa do galã rústico.
Mel Muzzillo, que interpreta Ritinha, e Xamã como Damião em cena de Renascer Foto: Globo/Fábio Rocha
Em tempos de redes sociais, que não existiam naquela época, a interação do público ganha outra força, não?
É porque antigamente você esperava a interação pelos jornais, pelas entrevistas. Hoje em dia a pessoa já comenta sobre a novela dez segundos depois de a cena ir ao ar. Tudo é muito mais rápido. E isso ajuda a pensar novas perspectivas. Dá vontade de saber o que vai acontecer (na novela). É um remake, mas traz uma nova visão.
Você se vê hoje mais voltado à atuação ou sentindo vontade de se expressar como artista para além da música?
Eu vejo novos panoramas. Como meu norte agora é o cinema, acho bacana explorar isso, porque são as coisas de que tenho referência (para seus personagens). Escrevo músicas e escrevo o que vejo no dia a dia. Hoje presto atenção em cinema, direção, luz, câmera, estúdio. Acho que isso me ajuda a pensar e a escrever. A minha música vai ter referência do cinema, com certeza. É um momento de amadurecimento.
Você chegou a cursar faculdade de direito e esteve em Harvard recentemente para uma palestra. Como foi a experiência acadêmica?
Na minha época da faculdade, era muito mais uma coisa para poder entregar um diploma para a família. Tipo você ter um para ter respeito. Com o tempo, fui entendendo que é muito mais sobre o que você ama fazer do que sobre o seu diploma. E amava fazer música. Era pra ter escolhido isso desde o início. A música me trouxe tudo o que tenho hoje. Tive a oportunidade de ir a Harvard falar um pouco sobre a minha carreira, sobre a minha música, sobre a minha educação profissional, sobre o quanto a escola foi importante para mim, o quanto as minhas aulas de português e literatura foram importantes para eu me tornar um poeta, um músico, um rapper. Toda essa caminhada somou um pouquinho para eu poder descobrir o que amo. Comecei a fazer música com 23, 24 anos, no trem, nas batalhas, no palco, na TV. Agora eu tô com 34. Tem só dez anos que virei músico.
“Você lê os comentários e vê a agressividade disso, do primeiro cancelamento, do segundo, do terceiro”
O fato de você usar esmalte e saia às vezes já virou assunto, né? Ao longo do tempo, você acha que foi mudando seu modo de pensar a masculinidade?
Nasci e cresci em um lugar onde as pessoas são ensinadas a ter comportamentos machistas. Era um produto do meio, mas a arte, a música e o rap me salvaram. Hoje, com 34 anos e pai de duas meninas, me vejo amadurecendo cada vez mais, olhando o mundo de outra forma. Sou um cara que gosta muito de moda e não me incomodo de usar saia, esmalte, lápis de olho. Uso meu corpo como expressão, além da minha música. Isso ainda é prejulgado na cena do rap e por outras pessoas, mas acredito que é passando a inspiração e o exemplo que consigo atingir mais pessoas e promover debates.
Como anda sua busca pela ancestralidade? Você visitou algumas aldeias indígenas pelo Brasil.
Venho de um bairro, Sepetiba, que é um dos últimos da Zona Oeste do Rio com muito mato. Fui criado em um sítio com a minha avó. Em todo lugar em que me vejo em contato com a natureza, me sinto em casa. Sobre o resgate da minha ancestralidade, não tive contato com o meu pai. Tive mais com a família da minha mãe, uma família simples. A primeira vez em que fiz um resgate foi em 2020, em uma mixtape com alguns amigos indígenas músicos: Txepo Surui, Tukumã Pataxó e Brô MCs. Fiz algumas visitas, uma ao povo Suruí, em Rondônia, na casa do Txepo, e outra, à Coroa Vermelha, na Bahia, ao povo Pataxó. Toda vez que faço isso, é como se eu me sentisse em casa, em Sepetiba. A gente fica buscando explicações fora do Brasil e às vezes dá adeus à nossa cultura, ao nosso povo, à nossa ancestralidade. E acho que é uma forma de também fazer com que as pessoas entendam isso, quando uso a minha história para fazer o que eu estou fazendo, esse meu resgate.
Estando na TV todos os dias, como você tem lidado com a questão de saúde mental? Você chega a ficar fora das redes sociais, por exemplo, quando se cansa ou vê que aquilo está te fazendo mal?
Aprendi a fazer tudo o que faço sem suporte. Você lê os comentários e vê a agressividade disso, do primeiro cancelamento, do segundo, do terceiro. Durante muito tempo, isso me fez muito mal. Já me afastei de redes, já excluí o aplicativo do telefone. A família estar sempre ao lado ajuda. Você fica um pouco mais forte para receber certas críticas, né? E aí com o tempo aprendi. Hoje não leio comentários positivos nem negativos, o que faz bem para mim. Eu vejo o resultado. Quando sei que deu errado, deu. Mas, quando deu certo, deu também. Prefiro não ler nem os comentários positivos porque fico achando que está muito bom. Quando é negativo, fico achando que está tudo muito ruim. Aí, fico mais baseado num comentário vazio, elogiando ou xingando, do que na realização. Às vezes, tem uma crítica e dez elogios, mas os dez elogios vão para a vala. Você só liga para aquela crítica. Você quer responder, sofre. Eu me afasto às vezes dessa opinião tão próxima para não entrar num limbo. Senão eu entro na discussão. Sou escorpiano, né? (risos).