A maquiagem é o novo pré-treino?

Academias se tornaram pontos de encontro, corridas são o esporte do momento e tutoriais de maquiagem para treinos estão em alta no TikTok. Esse movimento, entre avanços de mercado, pressões sociais e autonomia feminina, provoca reflexões que vão desde o business até a autoestima.

É quinta-feira à noite e, por volta das 20 horas, um grupo de pessoas se reúne. A primeira parada é o esquenta, que geralmente acontece em um desses bares indicados com frequência no TikTok. O coletivo é diverso e as interações acontecem com músicas animadas vibrando nas caixas de som. Casais, amigos, completos desconhecidos, todo mundo se mistura. O agito é dos bons, desses que fazem você voltar para casa com um sorriso involuntário e ótimas lembranças. Só tem um detalhe: para curtir, vai ter que correr. Sim, isso ainda é uma matéria de beleza. Mas logo vai fazer sentido. 

Já faz algum tempo que os espaços destinados ao exercício físico parecem ter ganhado um glamour a mais, e isso não tem apenas a ver com academias equipadas com máquinas tecnológicas ou a tal da febre da corrida. Existe um esforço em curso para mostrar que a atividade física, além de necessária, pode ser divertida e plural — o oposto do que a maior parte da população brasileira assimilou ao longo da vida, especialmente quando falamos de mulheres e comunidade LGBTQIAPN+, por exemplo. A socialização sempre foi uma consequência de praticar esportes ou ir à academia, e a diferença é que agora mais pessoas querem participar disso — e bem apresentadas, claro. A preocupação natural com a aparência esbarra na pressão social e provoca reflexões quando o assunto é beleza. A quem interessa a maquiagem lambuzada de suor?

A resposta a essa pergunta não é simples. Sendo a maquiagem uma experiência individual, com tantos reflexos do coletivo, tem de um tudo nesse pacote. Dá para culpar o capitalismo, sim. Machismo, sexismo, o peso da coisa toda para mulheres, idem. Porém revirar os olhos para a coleguinha que bate-ponto na academia de gloss, ou achar fútil quem não abre mão do blush nem no treino, pode ter mais a ver com julgamentos individuais do que com preocupações sociais. E um spoiler: a maquiagem pode até se misturar com o suor, mas nem sempre vai escorrer. O mercado se adiantou aqui também.

“Por mais que as mulheres busquem desconstruir padrões, a verdade é que todas fomos socializadas a acreditar que nossa beleza define nosso valor. Portanto, a preocupação com a aparência durante a prática de atividades físicas é uma questão real para muitas”, comenta a pesquisadora de tendências Marina Grando.

Uma boa dose de sensibilidade é essencial para entender a complexidade do assunto. Para além da simples e justíssima vontade de se sentir bela, muitas mulheres enfrentam questões ainda mais profundas. “Sinto que preciso reforçar duas vezes mais os signos femininos por ser uma travesti preta. Se eu quiser me preservar de desconfortos, preciso desse reforço constante de feminilidade. Para mim, usar a maquiagem na academia tem a ver com isso”, revela a comunicadora e publicitária Sasha Vilela.

“Deixo de frequentar lugares e prefiro me exercitar em casa quando não estou afim de reforçar esses signos, no cabelo, na roupa ou na maquiagem. A necessidade de me preparar para me apresentar aos outros é muito forte. Prefiro evitar para não me sentir observada.”

Mercado ativo

Uma pesquisa da Gymshark, uma varejista britânica gigante no mercado fitness, revelou que 45% das mulheres negras evitam exercícios para preservar seus penteados. O dado foi tão significativo que levou a marca a criar uma faixa de cabelo especialmente projetada para fios cacheados e crespos, garantindo que o cabelo não seja um obstáculo para frequentar a academia. A marca também desenvolveu bonés que comportam cabelos volumosos e até um hijab específico para as mulheres muçulmanas que fazem uso do véu.

“Por mais que as mulheres busquem desconstruir padrões, a verdade é que todas fomos socializadas a acreditar que nossa beleza define nosso valor.”
Marina Grando

As inovações são recentes, mas não tanto assim. Em 2017, a empresa de pesquisa Mintel jogou na roda das tendências o termo “active beauty” (beleza ativa), que se referia aos cosméticos desenvolvidos para serem usados antes, durante ou depois das atividades físicas. Na época, era uma das quatro maiores tendências do mercado global. O nome composto não engajou e foi esquecido ao longo dos anos, mas as marcas logo perceberam a existência do nicho.

Fundada em 2015, a estadunidense Sweat Cosmetics foi a primeira label de beleza a apostar nesse mercado e conquistar a notoriedade. Chegou às varejistas Sephora, Anthropologie e Soft Surroundings e levantou 1,5 milhão de dólares em financiamento por meio de diversas fontes, incluindo crowdfunding, e lucrou o triplo no primeiro ano de vendas. Criados por três ex-jogadoras de futebol, todos os produtos são focados em resistência, conforto e alta performance. Em 2023, a empresa passou por um rebranding, se aproximou ainda mais do atual momento do universo fitness e até mudou de nome. Nasceu aí a Hustle Beauty.

As mudanças mais notáveis estão relacionadas à demanda por produtos com durabilidade e resistência ao suor e à água, além de serem mais leves e confortáveis para a prática esportiva. Os consumidores estão buscando opções que tenham benefícios adicionais, como proteção solar e tratamento. Produtos multifuncionais, com benesses tanto para a pele quanto para a prática esportiva, têm ganhado destaque.

“A prática de exercícios é algo de extrema vulnerabilidade para muita gente, e as novas tecnologias cosméticas são bem-vindas. Acredito que veremos cada vez mais mulheres nos esportes, estúdios e academias. As maquiagens devem acompanhar essa realidade, especialmente porque estamos falando de uma mulher que se movimenta no dia a dia. O treino faz parte da rotina”, explica Marina Grando.

Brasil na jogada

Em atividade desde 2013, a Pink Cheeks é pioneira no mercado brasileiro de dermocosméticos com foco nos esportes. Os produtos têm proteção solar e resistência à água e suor e possuem fórmulas veganas e sem parabenos. A grade é ampla e contempla maquiagens e produtos para o corpo inteiro, incluindo os cabelos. Um bom destaque é a linha antiatrito, que protege a pele de possíveis assaduras causadas pela repetição dos movimentos.

“Após a pandemia, notamos mudanças comportamentais nos consumidores, como a maior vontade de praticar exercícios. Entre todas as atividades, aquelas praticadas ao ar livre tiveram um grande aumento. Hoje em dia, possivelmente todos conhecem alguém que corre no parque ou frequenta academia diariamente. Fomos nos adaptando ao longo dos anos a esse consumidor”, conta Corina Godoy, cofundadora e farmacêutica da Pink Cheeks.

Outro destaque é a collab da Make B. – a linha de maquiagem de alta performance do Boticário — com a gigante do athleisure Track and Field, lançada em 2021. “As vendas superaram a expectativa do período, demonstrando assertividade no desenvolvimento da linha e uma real conexão com o público do qual escolhemos nos aproximar. O lançamento reforçou o ecossistema de experiências que buscamos oferecer durante e após os exercícios”, diz Mirele Martinez, diretora de maquiagem do Grupo Boticário.

O que dizem os dermatologistas

Uma pesquisa estadunidense realizada pela Universidade San Antonio e publicada em março deste ano pela revista Time atestou que, sim, é preciso tomar alguns cuidados na hora de equilibrar a maquiagem com os exercícios. 

De acordo com o estudo, os cosméticos obstruem os poros — o que pode impedir que o suor, causado pelo aquecimento do corpo, evapore. A longo prazo, também interfere no grau de oleosidade da pele. “Por isso é tão importante pensar em linhas específicas para as práticas esportivas. A principal diferença, além da resistência e durabilidade, está na união da proteção solar com fórmulas inovadoras. São produtos leves e de rápida absorção”, sinaliza a farmacêutica da Pink Cheeks.

Autonomia é a palavra

Consultora de nutrição e bem-estar, Bertha Jucá tem uma rotina intensa de treinos. A corredora — que completou 42 km na Maratona de Nova York, inclusive — costuma compartilhar sua rotina nas redes, incluindo os looks e a maquiagem. Para Bertha, se maquiar para malhar é um hábito cotidiano. “Não me sinto pressionada. Sempre fiz mais por mim do que pelos outros. Vejo de tudo quando treino: mulheres sem um pingo de maquiagem, outras usando algo aqui e ali. Cada um tem que ir atrás do que o faz se sentir bem”, acredita.

“Sempre fiz mais por mim do que pelos outros. Vejo de tudo quando treino: mulheres sem um pingo de maquiagem, outras usando algo aqui e ali. Cada um tem que ir atrás do que o faz se sentir bem.”
Bertha Jucá

Já a redatora e criadora de conteúdo de beleza Tabita Tonin nunca foi apegada à maquiagem. “Por mais que eu trabalhe com beleza, me educo para não ter essa dependência. Mesmo assim, em dado momento, comecei a me questionar se estava sendo negligente com a minha aparência.” A enxurrada de tutoriais e Get Ready with Me causou uma série de questões, até que Tabi cedeu e começou a usar. Logo abandonou. “Não uso maquiagem porque não gosto da sensação de produtos no rosto enquanto transpiro. É um detalhe sensorial importante, pois ninguém que tem a pele mais oleosa gosta da sensação de estar com o rosto cheio de produtos.”

Apesar das preocupações em torno de fatores como durabilidade e textura, outro detalhe importante deve balançar o mercado nos próximos anos: o clima. “Com as projeções relacionadas às mudanças climáticas, a indústria cosmética deve evoluir para produtos resistentes a fatores ambientais extremos, como ondas de calor e frio, poluição e raios UV. Esses produtos, que hoje são voltados para quem vai à academia, servem também para quem pega três horas de transporte público em um calor de 40 °C”, pondera Marina Grando. Resta esperar para ver.