No primeiro fim de semana sem o Twitter/X no Brasil, muitos de nós pudemos ter um vislumbre da vida (um pouco) menos conectada. “Li um livro inteiro entre sábado e domingo”, comentou uma amiga na segunda-feira, enquanto outras relataram uma mistura de tédio e desorientação. Embora haja um exagero cômico nessas respostas, elas refletem um fenômeno que reluto em chamar de tendência (ainda que ele sempre seja citado em matérias sobre a nostalgia Y2K), porque temo que o ciclo do hype possa fazê-lo desaparecer rapidamente. Estou falando do crescente interesse por “dumbphones”. O termo, que se contrapõe a smartphones, descreve celulares que priorizam funcionalidades básicas sem o acesso às redes sociais.
Neste ano, vimos o retorno do “tijolão da Nokia” e campanhas de marketing como o Boring Phone da Heineken e o flip-phone da Barbie, que geraram certo burburinho. Paralelamente a esses chamarizes, porém, empresas menores dedicadas a dispositivos simplificados vêm tentando oferecer alternativas interessantes para quem quer se libertar do vórtex digital. Claro, esses aparelhos ainda jogam o jogo do mercado, mas vêm conquistando a confiança dos consumidores por abordar com maior seriedade grandes aflições da nossa era, como a sensação de perda de controle sobre o próprio tempo e a atenção constantemente disputada.
Veja abaixo o anúncio do Light Phone III:
“Estamos tentando criar um telefone mais intencional, que não seja inerentemente antitecnologia”, explicou Joe Hollier, cofundador da companhia que nasceu de uma ideia apoiada por cerca de 3 mil pessoas no Kickstarter em 2017 (provavelmente usuários desesperados como eu, que já não sabiam mais o que fazer para reduzir seus tempos de tela).
Embalado por uma música etérea e enfatizando o que ele não pode fazer, o anúncio busca retratar o aparelho como uma ferramenta, e não como o monólito brilhante e sedutor que virou o centro de nossa vida (tive que trancar o meu em outro quarto neste mês para conseguir finalizar este texto, tamanha a distração que ele anda me proporcionando). Como Jia Tolentino observou recentemente em sua participação no The Ezra Klein Show, nossos celulares nos mantêm em um estado de permanente disponibilidade. Essa condição gera uma expectativa constante de interrupções, o que, por consequência, corrói a nossa capacidade de concentração.
A proposta do Light Phone, e de outras empresas como a suíça Punkt, é diferente dos “feature phones”, como os velhos celulares vendidos por sua robustez, longa bateria e baixo custo são chamados hoje. Esses novos dispositivos oferecem funcionalidades básicas, mas apostam forte em design e, no caso do Light Phone, ainda permite alguns extras, como GPS, câmera simples, hotspot e reprodução de podcasts. Há até discussões sobre a inclusão de apps de transporte e carteiras digitais.
Sou a favor desse movimento porque acredito que o problema dos celulares não está primariamente nas facilidades de pagar com aproximação ou consultar um mapa em tempo real — faço parte do time que não gostaria de perder essas conveniências —, mas nos aplicativos que nos sugam quando tudo o que queríamos era ver as horas. É um valor que a Light Phone coloca em seu site: “Ao considerar funcionalidades adicionais para o Light Phone III, é importante lembrar de todos os recursos que ele nunca terá. O Light Phone III nunca terá mídia social, um navegador, e-mail, notícias ou anúncios. Sem feeds infinitos”.
É possível que você esteja pensando: “Tá, mas não seria mais fácil apenas remover os apps das redes sociais do meu smartphone atual então?” E a resposta é sim — mas também não. Para muitos usuários (me inclua nessa), a mera disponibilidade dessas opções nos smartphones convencionais pode ser tentadora demais. Vejo os dumbphones como uma experiência semelhante à antiga sensação pacífica de desconexão que tínhamos em voos, pois havia um entendimento coletivo de desconexão forçada. Ou como os primeiros dias do Twitter fora do ar no Brasil, antes da migração em massa para o BlueSky. Por um breve momento, ninguém estava conectado, e isso parecia uma trégua.
Essa perspectiva é corroborada por um estudo recente coconduzido pelo economista brasileiro Leonardo Bursztyn, professor da Universidade de Chicago, que analisou o impacto do TikTok e do Instagram no bem-estar de um grupo de mil estudantes universitários. Quando os alunos foram confrontados individualmente com a ideia de abandonar as redes sociais, a maioria relatou que só aceitaria mediante uma recompensa financeira. Mas o estudo introduziu outro cenário: e se você tivesse a garantia que todos sairão juntos? Essa foi a opção mais desejada, com as mesmas pessoas que antes disseram que só sairiam por dinheiro passando a sugerir que até pagariam para se deslogar. A pesquisa mostra que o vício nas redes não é apenas uma questão individual, mas uma teia coletiva e desafia o princípio de que se consumidores usam muito alguma coisa é porque gostam ou veem um extremo valor nela.
Sonhos de desconexão
Quando meu namorado decidiu embarcar na jornada do dumbphone e sair das redes sociais, fui tomada por uma curiosidade invejosa. Como alguém com uma vida tão próxima à minha poderia fazer isso enquanto me sinto tão presa? Notei também as reações ao seu redor. Logo ao ficarem sabendo, alguns amigos se apressavam em negar sua dependência digital, outros justificavam suas barreiras para dar esse passo. A decisão dele parecia lançar uma espécie de desafio velado sobre as outras pessoas, quase como se, com ela, ele afirmasse um controle que poucos conseguem exercer, uma mensagem de superioridade moral talvez.
Ter um smartphone é status, claro, mas ter um dumbphone quando você poderia ter um smartphone é um status de outra natureza, quiçá maior. Ele não diz “tenho um iPhone de última geração porque tenho dinheiro”, mas sim “tenho o controle sobre a minha própria atenção”, o que hoje sinaliza autonomia, coragem e também dinheiro — ou um trabalho em que você não é cobrado de responder e-mails, Slacks etc. quando está em trânsito. De qualquer forma, parece ser um luxo que mesmo se você economizar não conseguirá comprar em loja alguma.
Penso que o nosso vício no celular é, no fundo, um desejo por comunicação que não está sendo contemplado pelo mundo offline, que oferece cada vez menos oportunidades fáceis de comunhão, fazendo assim com que o celular ganhe um brilho ainda mais forte, quase um status de necessidade natural. Almejamos nos sentir conectados, mas paradoxalmente, quanto mais tempo passamos em nossos celulares, mais isolados e ansiosos nos tornamos. Esse ciclo gera novas lógicas de comportamento e interação que, fora do contexto digital, não se sustentariam, mas fazem sentido enquanto vivemos orbitando nossos dispositivos. Sejamos francos: a gente sabe que todo mundo carrega o celular consigo o tempo todo e por isso nos sentimos mal quando não nos respondem imediatamente no WhatsApp.
Cadê o romance?
Em seu Substack, a escritora e comediante Catherine Shannon associou a presença constante do celular em nossas mãos com não sermos mais capazes de nos sentir sexy e achei a observação muito pertinente. Na moda, o sexy mais interessante aparece em coleções que jogam muito com a ideia de revelação e mistério (como o desfile de verão 2022 da Prada, o primeiro com plateia pós-pandemia). Esse tipo de sexy definitivamente não está presente na lógica dos smartphones. “Nossos telefones não nos dão tempo para refletir e não nos dão tempo para ansiar (…). Talvez seja impossível desejar o que já temos, o que é fácil ou o que nos é implicitamente prometido”, escreve Catherine.
A revolução tecnológica dos anos 1990 e 2000, com suas promessas de novas formas de conexão e conversas, parecia sexy. Hoje corporações sem rosto nos entregam tecnologias que não têm mais o fator humano no centro. Como desabafei em minha primeira coluna, vivemos agora em um cenário em que as promessas deram lugar à crua realidade. Tudo está explícito, e o “trade-off” das redes sociais, como Leonardo aponta, usando um termo da economia, tornou-se dolorosamente claro: damos muito em troca de pouco ou nada, e muitas vezes acabamos perdendo no processo. Nossos anseios de conexão entre pares, no fim, viraram a realidade de contato entre máquinas.
Me dá certo ânimo ver tecnologias sendo pensadas para nos tirar disso, principalmente considerando que as gigantes da tecnologia têm pouquíssimo interesse em criar esse tipo de aparelho, já que geralmente não geram receita com o hardware, e sim com os softwares. Certamente, há uma ironia em criar tecnologia para resolver problemas causados pela própria tecnologia, quando parece tão mais fácil simplesmente abandonar o que nos prejudica. No entanto, considerando que já estamos “infectados”, vejo esses esforços como uma forma possível de contenção de danos.
Essa transição deve levar em conta que a mudança não é apenas individual, mas precisa envolver um desejo e esforço coletivos por uma vida mais divertida e prazerosa também fora do mundo digital para fazermos com que o monólito tecnológico que domina nosso olhar gradualmente perca seu brilho sedutor.
P.S. – Existem diversas formas de simular um dumbphone no seu smartphone caso você possua mais autocontrole que eu! Algumas opções incluem configurar a tela do celular em preto e branco para reduzir o estímulo visual, usar aplicativos de controle de tempo para redes sociais, consumir apenas conteúdos baixados previamente, evitando horas de escolha, e utilizar a interface Minimalist Phone no Android. A minha tentativa do momento é deixar o celular guardado enquanto estou em casa e concentrar o uso de redes sociais apenas no computador (sempre chega o momento em que me sinto meio ridícula pulando stories com o mouse e percebo que é hora de levantar.).
P.S. 2 – “Single-use devices”, aqueles projetados para executar uma única tarefa com excelência, são alternativas para quem não quer abrir mão da tecnologia, mas deseja reduzir a atratividade do celular, fragmentando suas funções. Se você gosta de ler, considere e-readers como o Kindle para livros ou o Boox Palma (com tela e-ink) para newsletters e notícias. Para estudo, escrita e anotações em geral, existem hoje “paper tablets”, como o Remarkable e o Supernote, que simulam um caderno. Se a música é indispensável para você, organizar seus álbuns favoritos em um tocador de MP3 tem sido uma opção para entusiastas que buscam escapar dos algoritmos de streaming. GPS para o carro, câmeras fotográficas, consoles portáteis de videogame e até um despertador clássico na mesa de cabeceira (acho sempre chocante perceber a quantidade de coisas que aglomeramos dentro de um só aparelho ao longo dos anos!) também podem ser aliados nesse movimento.