As angústias de garotas adolescentes e jovens adultas são um tema conhecido na literatura e no cinema. De Natasha Rostova, no clássico Guerra e paz, a filmes marcantes dos anos 2000, como As virgens suicidas, Aos treze e Garota, interrompida, essas histórias não pertencem ao gênero terror — embora muitas vezes o flertem —, mas revelam como a travessia pela adolescência está repleta de armadilhas. Cecilia Lisbon, personagem de Jeffrey Eugenides interpretada por Hanna R. Hall no filme de Sofia Coppola, sintetiza isso em uma cena icônica, quando, após uma tentativa de suicídio, responde à contestação do médico de que ela não teria idade para entender o quão difícil a vida pode ser: “Claramente, doutor, você nunca foi uma garota de 13 anos”, dispara ela.
Hoje essas angústias continuam no centro das atenções da “cultura pop”, mas em um cenário ainda mais assustador: o mundo online. Retratados pelas próprias adolescentes, impulsos antes guardados em diários íntimos agora ecoam pelos corredores infinitos da internet, amplificados e distorcidos pelos algoritmos e pela exposição constante.
Dados recentes mostram que garotas jovens são o grupo que mais consome redes sociais e, em um ciclo vicioso, também são as principais vítimas dos danos que essas plataformas acarretam. Suas inseguranças, naturais da idade, tornaram-se valiosas para as redes, que as exploram, mastigam e devolvem em forma de produtos e serviços — a febre de meninas desenfreadas na Sephora é só mais um sintoma dessa lógica. Nos EUA, por exemplo, adolescentes gastam em média 4,8 horas por dia em redes sociais, sendo que as meninas são quem puxa essa média para cima, com 5,3 horas, praticamente demolindo a linha que divide suas vidas online e offline.
Desde que o Wall Street Journal revelou, em 2021, que a Meta sabia que o Instagram prejudicava significativamente a saúde mental das adolescentes, pouca coisa mudou. Na época, 32% das jovens relataram que, quando se sentiam mal com seu corpo, o Instagram fazia com que se sentissem ainda pior. Agora o TikTok parece agravar o problema. Pesquisadores estadunidenses descobriram que, em menos de 30 minutos após entrarem no TikTok, usuárias de 13 anos já começam a receber recomendações de posts relacionados a transtornos alimentares e automutilação e, em alguns casos, isso acontece em apenas três minutos. Após “mostrarem interesse” (que pode ser algo tão particular quanto salvar ou assistir por mais tempo um vídeo) por imagem corporal, o TikTok passa a sugerir mais desse tipo de conteúdo a cada 39 segundos.
As estatísticas paralelas às de consumo de redes sociais também são alarmantes. Desde 2010, a saúde mental entre jovens tem declinado drasticamente, com as meninas sendo as mais afetadas — nos EUA, entre 2012 e 2019, a taxa de suicídio entre as de 12 a 14 anos aumentou 138%.
“O monstro de hoje não está mais debaixo da cama, mas à espreita nas telas, consumindo lentamente a autoconfiança e o bem-estar de toda uma geração.”
Apesar de especialistas não entrarem em consenso sobre o impacto de passar tanto tempo de anos formadores em frente a telas, o panorama é claro: ser uma adolescente continua sendo caótico e confuso como sempre foi, mas os riscos agora são maiores, pois essas jovens estão vivendo sempre sob o olhar crítico de uma audiência ou, ao menos, sob a possibilidade de uma.
Performance x construção de identidade
2023 chegou ao fim apelidado como “the year of the girl”, com diversos artigos reportando a ascensão de tendências centradas em “girl’s aesthetics”. “The tomato girl, rat girl, strawberry girl, feral girl, clean girl tiveram seu momento no TikTok, enquanto os mais mundanos aspectos das nossas vidas foram ‘garotificados’ também. Talvez você tenha ido para um ‘hot girl walk’ ou considerado largar sua carreira corporativa por um ‘lazy girl job’, tenha feito um pouco de ‘girl math’ para justificar alguma compra, ou ingerido um ‘girl dinner’”, é a abertura da matéria “Woman in retrograde”, publicada pelo The Cut em dezembro passado.
Grudadas ao celular, garotas tentam criar personas que sejam simultaneamente autênticas e perfeitas — uma tarefa impossível e receita para a ansiedade. Nesse cenário, até mesmo as lutas de saúde mental passam a ser glamourizadas, com antidepressivos sendo rebatizados como “hot girl pills”.
É claro que existe valor em reivindicar o que sempre foi taxado como menor por estar associado ao feminino, mas, planificada, muitas vezes infantilizada, “a garota” de 2023 surge com uma superfície de empoderamento, mas esconde uma realidade sinistra, o fato de jovens mulheres se sentirem cada vez mais sozinhas e verem na performance online um tipo de saída para algum nível de conexão.
A lógica das redes sociais se aproveita desse desejo de conexão, que nunca deixa de existir, mas é especialmente intenso na puberdade, para incentivar a mercantilização pessoal, fazendo com que meninas cada vez mais novas desejem participar das dinâmicas da economia da atenção. O resultado? Um ciclo interminável de querer o inatingível, se moldar ao ideal de desejo e se frustrar quando esse ideal rapidamente muda.
É uma busca pela performance perfeita, que pode inclusive incluir a vulnerabilidade de tentar se encaixar a ela como uma “estética”, como escreveu Rayne Fisher-Quann, autora da newsletter Internet Princess, sensação no Substack entre o público Gen-Z: “Uma garota no TikTok pode se identificar como ‘joan didion/eve babitz/marlboro reds/sight-cut levis/fleabag’ (e isso querer dizer que ela tem depressão). Outra pode se descrever como ‘garota vestido babydoll/sylvia plath/red scare/miu miu/lana del rey’ (distúrbio alimentar). E ainda ‘garota suco verde/claw clip/emma chamberlain/yoga mat/podcast’ (distúrbio alimentar diferente do anterior)”. Essa vida dedicada à performance e exposição não só gera lucro para as plataformas, como provavelmente resultará em arrependimentos para meninas jovens que veem seus perfis como diários públicos.
Crescer não resolve o problema de ser o alvo-protagonista da exploração online, como demonstra um levantamento da Contente sobre como ser uma mulher hoje na internet é, no mínimo, insalubre. Compartilhar uma história pessoal pode significar ser alvo de piadas, ofensas e ser desacreditada por homens “red pill”, que conseguem transformar uma experiência dolorosa em um novo pesadelo. Esses homens têm como principal alvo mães solo, mulheres negras e mulheres acima dos 30 anos e lucram milhares de reais mensalmente a partir de milhões de visualizações em cortes de seus vídeos.
Em paralelo, a violência política de gênero online segue em alta. Uma pesquisa do MonitorA analisou mais de 5 mil comentários em debates eleitorais de 25 cidades brasileiras durante o período de campanha eleitoral deste ano e constatou que as candidatas mulheres foram alvo de 43,95% das mensagens ofensivas, em contraste com 23,60% dos homens, destacando misoginia, inferiorização e descrédito intelectual.
Mulheres enfrentam um verdadeiro pesadelo online, seja com suas inseguranças adolescentes sendo manipuladas e alimentadas desde cedo, resultando em um ciclo vicioso de performatividade, seja sendo alvo de ataques diretos. Curiosamente, elas continuam sendo as maiores consumidoras e participantes dessa lógica, talvez em busca de comunidade e validação.
Apesar de saberem do impacto negativo que causam em adolescentes, as grandes corporações de tecnologia seguem lucrando sem enfrentar consequências significativas. Ferramentas de controle parental são insuficientes, e a pressão pelo “engajamento” ainda dita as políticas dessas empresas. Enquanto não podemos contar com mudanças nas plataformas, garotas precisam de redes de apoio offline e de atividades que as afastem da obsessão por aparência, validação ou performances digitais. Afinal, o monstro de hoje não está mais debaixo da cama, mas à espreita nas telas, consumindo lentamente a autoconfiança e o bem-estar de toda uma geração. As “final girls” do mundo digital não deveriam ter que lutar sozinhas contra essas assombrações modernas.