Cantar, todo mundo canta. Os foliões têm na ponta da língua as letras e as melodias de marchinhas clássicas, como “Mamãe, eu quero” e “Alá-lá-ô”. Mas, apesar do sucesso monumental, que atravessa décadas, pouca gente sabe de fato quem são os compositores dessas canções, mesmo que alguns artistas desfrutem da devida notoriedade – caso de Chiquinha Gonzaga (1847-1935), criadora de “Abre-alas”, até hoje tocada por blocos como a música introdutória dos festejos. Composta em 1899 e lançada em 1901, ela pode ser considerada um dos primeiros grandes sucessos da música brasileira no século 20 e rendeu à autora o pioneirismo na composição de marchinhas, um feito e tanto para um período em que o machismo imperava na música brasileira.
Outra mulher que tem papel fundamental para a popularização dos hinos carnavalescos é Carmen Miranda (1909-1955). Principal intérprete do Brasil nos anos 1930 e 40, ela garantia a qualquer marchinha gravada na sua voz um real potencial de se tornar sucesso na festa. Foi ela quem ajudou a eternizar, por exemplo, canções como “Pra você gostar de mim” e “Mamãe, eu quero”. A primeira ganhou as ruas depois da gravação da cantora, e a segunda era um hit do Carnaval no Brasil quando a intérprete resolveu gravar uma versão em inglês e projetá-la para o sucesso internacional.
Já Braguinha (1907–2006) está entre os compositores homens que conseguiram driblar o esquecimento com a força de seu repertório. Compositor de uma das canções mais conhecidas do Brasil em parceria com Pixinguinha (1897-1973), o choro “Carinhoso” (1937), ele também fez história no Carnaval com uma coleção de marchinhas inesquecíveis. São de sua autoria, por exemplo, clássicos como “Balancê” (1937), “Chiquita bacana” (1948) e “Turma do funil” (1956).
“Essas músicas traduzem muito a essência da festa e o espírito da brincadeira. Tudo isso tem muito a ver com o que o Carnaval é: o momento de se soltar, de se libertar, da coletividade. Músicas como ‘Mamãe, eu quero’ e ‘Alá-lá-ô’ têm melodias ascendentes, pra cima, que chamam as pessoas para cantar”, observa Thiago França, saxofonista, compositor e líder do bloco A Espetacular Charanga do França. “Muitas outras já foram sucesso e não são mais – ou porque têm uma linguagem muito antiga ou porque o conteúdo ficou ultrapassado e as pessoas não têm mais vontade de cantar.”
O tempo, de fato, deixou de lado algumas marchinhas que foram cantadas à exaustão por causa de letras de caráter preconceituoso. Já não dá mais para ignorar a homofobia intrínseca de versos de canções como “Cabeleira do Zezé” (1963) e “Maria Sapatão”, por exemplo – ambas escritas, aliás, por João Roberto Kelly. Em 2023, inclusive, o compositor carioca, atualmente com 86 anos, lançou a canção “Eu sou gay” para saudar a comunidade LGBTQIAP+ e se esquivar do “cancelamento” que suas músicas sofreram.
A ELLE View destaca a seguir os compositores que estão na boca do povo com suas marchinhas inesquecíveis, mas ainda são desconhecidos para a grande maioria. Até agora.
André Filho (1906-1974)
É o compositor de um hino. “Cidade Maravilhosa”, sua canção de 1934, foi oficializada como a marcha oficial da cidade do Rio de Janeiro em 1960. A música foi gravada pelo próprio autor em dueto com Aurora Miranda, irmã de Carmen Miranda. Lançada em outubro pela gravadora Odeon, não fez sucesso no primeiro momento – a consagração veio no ano seguinte, quando a marchinha foi inscrita em um concurso de músicas de Carnaval da prefeitura do Rio.
Aurora, então com 19 anos, defendeu a canção e conquistou o público. Na premiação, no entanto, ficou em segundo lugar – o que provocou a ira de André Filho, que teria se desentendido com Ary Barroso, um dos jurados. A vencedora, “Coração ingrato”, foi interpretada por Sílvio Caldas e recebeu uma estrondosa vaia da plateia presente no Teatro João Caetano quando foi anunciada como vitoriosa.
Mesmo sem o prêmio, “Cidade Maravilhosa” se tornou presença obrigatória nos salões de Carnaval e sua execução, inclusive, ganhou um significado melancólico para os foliões: as primeiras notas de sua melodia são a senha de que o baile está chegando ao fim.
André Filho teve outros sucessos gravados por intérpretes de prestígio, como os sambas “Bamboleô” (lançado por Carmen Miranda em 1932) e “Filosofia” (parceria com Noel Rosa, gravada por Mário Reis em 1933). Nada se compara, no entanto, ao êxito de sua canção mais notória – já gravada, inclusive, por intérpretes como Beth Carvalho, Maria Bethânia e Martinho da Vila.
O compositor enfrentou problemas pessoais nos anos 1940 (o fim de um casamento e distúrbios nervosos) e se afastou da vida artística. Morreu em 1974 em condições financeiras precárias e incompatíveis com os direitos autorais que a larga execução de “Cidade Maravilhosa” deveria lhe render.
Haroldo Lobo (1910–1965)
É tradição até hoje nos blocos de Carnaval: quando a aglomeração chega a um nível quase desesperador e a temperatura do corpo atinge o ápice, os versos de “Alá-lá-ô” surgem como um grito de guerra que clama por algum refresco em meio ao caos. É nessa hora que as pessoas que assistem ao desfile das janelas dos prédios atendem ao pedido dos foliões e os presenteiam com generosos jatos d’água, que jorram de mangueiras e baldes.
Composição de Haroldo Lobo com a importante colaboração de Antônio Nássara, essa marchinha está entre as mais cantadas há mais de seis décadas. O embrião da composição já estava nas ruas em 1940, quando um bloco do bairro da Gávea entoou os versos de “Caravana”, música com autoria de Lobo que já trazia o conteúdo lírico primordial: “Chegou, chegou a nossa caravana/ viemos do deserto/ sem pão e sem banana para comer/ o sol estava de amargar/ queimava a nossa cara/ fazia a gente suar”.
No ano seguinte, Nássara acrescentou a parte da letra que se tornou notória (“Viemos do Egito/ e muitas vezes nós tivemos que rezar/ Alá, Alá, Alá, meu bom Alá/ mande água pra Ioiô/ mande água pra Iaiá”) e Lobo arrematou com um refrão imortal: “Alá-lá-ô, ô-ô-ô-ô-ô-ô/ mas que calor, ô-ô-ô-ô-ô-ô”.
Letra fechada, faltava o arranjo – que coube a ninguém menos do que Pixinguinha. Era um sábado de verão, o último da sessão de estúdio para o Carnaval de 1941. Se a música não ficasse pronta naquele dia, seria lançada só no ano seguinte. Sem camisa e encharcado de suor, o maestro criou a instrumentação e a música ganhou o Brasil com sua versão definitiva.
Haroldo Lobo tem mais de 400 composições, cerca de 300 delas pensadas para o Carnaval. Ao longo da carreira, foi especialista em emplacar marchinhas de sucesso – muitas vezes, mais de uma por ano. Essa conexão com a festa vem de longe: aos 13 anos, ele já compunha para o Bloco do Urso, no Rio de Janeiro. Sua fórmula para ter êxito na festa era apostar na simplicidade das letras, na repetição da palavra-chave e na ênfase sobre os sons onomatopaicos.
Jararaca (1896–1977) e Vicente Paiva (1908–1964)
Ano após ano, “Mamãe, eu quero” lidera o ranking de músicas mais executadas no Carnaval, segundo o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad). Esse êxito persiste desde 1937, quando a música foi lançada pelos compositores Jararaca e Vicente Paiva. O sucesso dessa marchinha não é à toa. A composição tem os elementos fundamentais para o bom desempenho nos bailes e blocos: letra de duplo sentido e melodia simples.
Jararaca (violão) integrava uma notória dupla cômico-musical com o parceiro Ratinho (sax e clarinete). Em 1928, viu sua música “Meu sabiá” ser gravada por ninguém menos que Francisco Alves. Sua obra registra parcerias com compositores gigantes da música brasileira – e de diferentes estilos –, como Pixinguinha (“Zé Bambino”, 1941), Donga (“Casca de banana”, 1946) e Luiz Gonzaga (“Quem é?”, 1946). Vicente Paiva, em 1935, já tinha um grande sucesso carnavalesco: “Marcha do Cordão da Bola Preta”, composto em parceria com Nelson Barbosa. Em 1941, compôs com Luiz Peixoto um dos grandes sucessos da carreira de Carmen Miranda: “Disseram que eu voltei americanizada”.
Quando se reuniram para gravar “Mamãe, eu quero”, em 1936, os dois não poderiam imaginar que fariam história. A gravação aconteceu em dezembro. O próprio Jararaca interpretou a canção e seu parceiro o acompanhou ao piano. Uma das vozes no coro é do cantor Almirante, que divide com Jararaca um diálogo improvisado na introdução da faixa – recurso para alongar o tempo da canção, considerada muito curta só com a parte musical.
Quatro anos depois, a marchinha ganhou projeção internacional com a gravação em inglês por Carmen Miranda no filme Serenata tropical (1940). Nos anos seguintes, a música foi incluída em um episódio do desenho animado Tom & Jerry (Baby ouss, 1943) e em filmes dos Irmãos Marx (The big store, 1941) e de Jerry Lewis (Morrendo de medo, 1953). No Brasil, ela é cantada a plenos pulmões há quase nove décadas nos blocos e bailes de Carnaval.
Joubert de Carvalho (1900–1977)
O legado de Jourbert de Carvalho para a música brasileira se sustenta na impressionante marca de mais de 700 composições registradas em pouco menos de 60 anos de carreira. Entre elas estão duas que residem intactas no imaginário do Brasil: a cantiga infantil “Cai, cai, balão” (parceria com o poeta Olegário Mariano, de 1928) e a marchinha “Pra você gostar de mim” (1930) – popularmente rebatizada como “Taí”, por causa da corruptela que inaugura a primeira estrofe da letra: “Taí, eu fiz tudo pra você gostar de mim/ ó, meu bem, não faz assim comigo não/ você tem, você tem/ que me dar seu coração”.
Já com algum renome em 1930, o compositor mineiro criou esse clássico sob encomenda para uma ainda então desconhecida Carmen Miranda. A gravação vendeu entre 35 e 40 mil cópias – algo muito acima dos padrões do período – e projetou a cantora para o sucesso internacional. No ano seguinte, foi a música mais cantada no Carnaval. Carvalho escreveu a canção em menos de 24 horas e entrou para a história.
Seu encontro com a cantora, aliás, resulta de uma bela contribuição do acaso. O compositor estava em uma loja de discos no Rio de Janeiro onde, a convite do proprietário, escutava a gravação “Triste Jandaia”, na voz de Carmen. Eis que a própria adentra o recinto e os dois combinam que ele comporia uma música para ela gravar. No dia seguinte, ele tocou a campainha da futura estrela com a partitura debaixo do braço.
“Pra você gostar de mim” é uma exceção no vasto repertório de Joubert de Carvalho. Ao longo da carreira, ele criou poucas marchinhas e se consagrou pelo estilo versátil, que ia da valsa ao foxtrote, do tango ao maxixe. Sua toada “Maringá” fez também grande sucesso em 1932 e batizou a cidade paranaense em 1947 – onde o compositor tem um busto em sua homenagem. A canção versa sobre uma migrante paraibana, Maria do Ingá, que foge da seca. O nome da faixa resulta da fusão entre os dois nomes da personagem.
Mário Lago (1911–2002)
Ele viveu 90 anos e deixou um legado imenso como ator. Na televisão, atravessou décadas na telinha (de 1963 a 2001) e atuou em mais de 40 novelas da Rede Globo – entre elas, clássicos absolutos, como Selva de pedra (1972), Guerra dos sexos (1983) e Vamp (1991). No cinema, são mais de 30 filmes com sua participação como ator, com destaque para Assalto ao trem pagador (1962) e Terra em transe (1967). Ele ainda escreveu roteiros para telenovelas, foi dramaturgo e lançou livros.
Sua presença constante na TV, no entanto, ofuscou uma parte importante da carreira do artista e tem gente que nem sequer sabe que ele foi também um compositor de mão cheia. Sua primeira obra musical, de 1935, já era uma marchinha: “Menina, eu sei de uma coisa”, parceria com Custódio Mesquita, gravada por Mário Reis. Seus maiores sucessos também fizeram história no Carnaval: “Aurora” (1940), composta em parceria com Roberto Roberti e consagrada na voz de Carmem Miranda, e “Ai, que saudades de Amélia” (1942), escrita com e gravada por Ataulpho Alves.
As duas canções, no entanto, envelheceram mal devido ao teor sexista. “Aurora” se baseia em versos que sugerem que a personagem feminina teria alcançado ascensão social se tivesse sido sincera com seu parceiro afetivo. Já em “Ai, que saudades de Amélia”, a letra insinua que “uma mulher de verdade” deve ser submissa ao homem.
Ao longo dos anos, “Ai, que saudades de Amélia” inspirou pelos menos três músicas-resposta com conteúdo feminista. Em 1978, as irmãs Elena de Grammont e Eliane de Grammont lançaram “Amélia de você”, com versos como: “Cansei de ser Amélia, santa e boa/ que esquece, que perdoa”. Mais de 30 anos depois, em 2009, foi a vez de Pitty dar o troco com a faixa “Desconstruindo Amélia”: “E eis que de repente, ela resolve então mudar/ vira a mesa/ assume o jogo/ faz questão de se cuidar”. Finalmente, em 2019, Bia Ferreira lançou “Não precisa ser Amélia”: “Não precisa ser Amélia pra ser de verdade/ cê tem a liberdade pra ser quem você quiser”.