O canto dessa cidade é meu

A axé music completa 40 anos nutrindo o Carnaval brasileiro e revelando estrelas da música nacional. Relembre aqui seus principais hits, movimentos e protagonistas.

Há 40 anos, Luiz Caldas tomou conta das rádios e TVs do Brasil com um rebolado suingado, figurino cigano e um ritmo até então desconhecido, que inicialmente ficou conhecido como fricote – ou deboche. “Nega do cabelo duro/ que não gosta de pentear/ quando passa na Baixa do Tubo/ o negão começa a gritar/ pega ela aí, pega ela aí, pra quê?/ pra passar batom/ que cor?/ de violeta/ na boca e na bochecha”, cantava o músico baiano, de Feira de Santana, em “Fricote”. O hit inseria no pop nacional um viés duplo, de malícia e orgulho racial, além de um deboche politicamente incorreto, que com dificuldade encontraria ecos nos tempos atuais.

Após dois anos de sucesso nacional de Caldas, o jornalista também baiano Hagamenon Brito cunhou o nome de batismo para o novo gênero: axé music. Com uma dose de ironia, o termo associava numa só expressão o candomblé e o pop internacional industrializado. O termo pegou como rastilho de pólvora e nunca mais se ouviria falar de deboche, fricote ou outro nome qualquer para descrever o pop empacotado para o consumo de massa que o Carnaval da Bahia passou a exportar para o Brasil (e, em menor escala, para o mundo). 

De som para pular o período carnavalesco, o axé se expandiu para o ano inteiro e se tornou um dos gêneros hegemônicos dos anos 1990, ao lado do sertanejo e do pagode popificados, que tomaram o espaço do pop-rock dominante no Brasil da década de 1980.

O novo gênero bebia da cultura negra da música caribenha, do frevo pernambucano, dos blocos de ijexá e, principalmente, dos coletivos que faziam o Carnaval baiano nos 1980, como Olodum e Muzenza, criadores de uma mistura a que se deu o nome de samba-reggae. 

Luis Caldas

Luiz Caldas Foto: Divulgação

Ao longo dos anos 1990, o trabalho iniciado por Caldas foi elevado à escala industrial por nomes como Daniela Mercury, Chiclete com Banana, Timbalada e Carlinhos Brown, Banda Eva e Ivete Sangalo. A verve maliciosa do velho deboche foi incorporada por grupos fortemente vinculados à tradição do samba de roda (ou samba duro) do Recôncavo Baiano, principalmente na figura do É o Tchan, cujo apelo marcou também o início do desgaste do gênero.

A hegemonia construída desde 1985 durou 15 anos e arrefeceu na virada para os anos 2000, mas os pilares da axé music resistiram, influenciando desde os grupos ditos de pagodão baiano Parangolé e Psirico até os modernos Àttøøxxá e BaianaSystem, só para citar exemplos da própria Bahia. 

Siga abaixo uma linha do tempo com os principais artistas e hits que fizeram a história do axé até aqui.

ANOS 1980

Os primórdios: fricote e samba-reggae

O sucesso popular de “Fricote”, de Luiz Caldas, é o marco zero do gênero musical. Ele foi seguido por Sarajane, baiana de Salvador, que captou o rebolado e a pimenta sexual do axé e estourou com “A roda”, em 1987 (“Vamos abrir a roda/ enlarguecer/ tá ficando apertadinha, por favor/ abre a rodinha”).

A façanha inaugural de Caldas foi ligar fios que estavam soltos, causando um curto-circuito criativo entre ijexá, samba-reggae e um manancial de ritmos caribenhos e amazônicos, todos gêneros então desconhecidos da maior parte do Brasil. Ritual e profano ao mesmo tempo, o ijexá nasceu da sonoridade percussiva do candomblé de rua praticado por blocos afro tradicionais da Bahia, como Filhos de Gandhy (fundado no final dos anos 1940), Ilê Aiyê (1974), Badauê (1978) e Malê Debalê (1979). Os blocos novos que se formaram nos 1980 acrescentaram o reggae jamaicano ao ijexá e ao samba duro do Recôncavo Baiano: surgiam o Olodum, o Muzenza, o samba-reggae.

Nessa fase pré-axé, de artistas quase sempre negros se movimentando no underground da indústria musical, surgiram em 1987 algumas das pedras fundamentais do gênero que se formava: “Faraó (Divindade do Egito)”, lançada por Djalma Oliveira com uma vocalista até então pouco conhecida (e futura ministra da cultura), Margareth Menezes, “Eu sou negão”, de Gerônimo Santana, “Canto para o Senegal”, da banda Reflexu’s, “Madagascar Olodum”, do Olodum, e “Majestade Real”, do bloco Ara Ketu.

Margareth Menezes

Margareth Menezes Getty Images

Em 1988, o samba-reggae revelou dois artistas solo primordiais: a já citada Margareth, com “Uma história de ifá (Ejigbô)”, e Lazzo Matumbi, ex-cantor do Ilê Aiyê, com “Me abraça e me beija”. 

Em 1989, a música de Caldas foi à abertura da novela Tieta (Rede Globo), confirmando a novidade: o samba-reggae e os demais ritmos marginalizados da negritude de Salvador estavam prontos para subir no trio elétrico, comandar a massa e invadir o Carnaval brasileiro, até então dominado pelo samba carioca.

As primeiras bandas de axé music: Cheiro de Amor e Banda Mel

A loira Márcia Freire foi uma das primeiras mulheres a conquistar o direito de comandar um trio elétrico, patrimônio baiano que remonta ao início dos anos 1940, quando Dodô e Osmar inventaram a chamada guitarra baiana (ou pau elétrico) e eletrificaram o frevo pernambucano. Em 1950, colocaram sua música para passear pelas ruas do Carnaval em cima de uma “fubica” (um automóvel Ford modelo 1929). 

Ao som de “Auê” (1989), Márcia liderou a banda Cheiro de Amor, combinando frevo eletrificado, samba-reggae, merengue, samba duro do Recôncavo etc. Márcia Short fez parecido com “Crença e fé” (1991), como uma das vozes à frente da Banda Mel (mais tarde Bamdamel): “Diga yes, diga yes/ sou negão”. “Aê, aê, aê, aê/ ei, ei, ei, ei/ ôôôô”, cantava o vocalista masculino da Banda Mel em “Prefixo de verão” (1990).

O protagonismo feminino do axé: Daniela Mercury

Daniela consolidou o caminho feminino pavimentado por Margareth e as Márcias Freire e Short, tornando-se uma estrela incontestável no topo do trio elétrico, com um repertório extraído inicialmente dos compositores de samba-reggae. No primeiro hit, “Swing da cor” (1991), coassinado por Daniela, ela celebra a negritude e o bloco afro Muzenza: “Vem pro suingue da cor/ relaxar o calor/ e quem sabe me amarrar”. “O canto da cidade” (1992) foi escrito por Daniela ao lado do compositor Tote Gira: “A cor dessa cidade sou eu/ o canto dessa cidade é meu”. “Música de rua” (1994) é uma parceria com Pierre Onassis, do Olodum, e “O mais belo dos belos” (1992) amplifica e popifica dois cantos do Ilê Aiyê.

Daniela Mercury

Daniela Mercury Getty Images

Blocos viram grupos e revelam artistas: Chiclete com Banana, Banda Beijo e Banda Eva

Com o sucesso crescente, a indústria fonográfica se apossou da axé music e encontrou nos blocos de Carnaval o grande celeiro produtor de novas bandas e artistas. Seis anos depois do hit precursor “Gritos de guerra” (1986), o Chiclete com Banana entregou o hit “Cara caramba sou camaleão” (1992), de quando a banda de Bell Marques comandava o bloco Camaleão. Ricardo Chaves fez de “O bicho” (1992) o hino do bloco Crocodilo. O bloco Beijo origina a Banda Beijo, que revelou Netinho e o hit “Beijo na boca” (1988). Netinho, por sua vez, seguiu carreira solo e, em 1996, revelou ao Brasil o hit “Milla” (1995), regravação de composição de Manno Góes, da banda Jheremmias Não Bate Corner, futura Jammil e Uma Noites.

Antes de virar Banda Eva, o bloco carnavalesco Eva desfilava desde 1980, alternando a liderança vocal entre Caldas, Ricardo Chaves, Durval Lélys e aquela que se tornará a estrela da Banda Eva, Ivete Sangalo. Um dos mais profícuos compositores da axé music, Lélys liderou desde 1988 a banda Asa de Águia, animadora dos blocos Cocobambu e Me Abraça e responsável por clássicos da axé, como “Porto seguro” (1992) e “Xô, Satanás” (1995).

Do samba-reggae ao axé: Ara Ketu e Olodum

Fundado em 1980, o bloco afro virou banda em 1987, a princípio oscilando entre o tradicional e o samba-reggae à la Olodum. Só saiu do gueto em 1994, quando a gravadora Sony patrocinou uma guinada rumo às convenções industriais do axé, sobretudo no megahit “Ara Ketu bom demais” (“Ê ô, ê ô/ ê aê aô”). Outro clássico carnavalesco do grupo é “Pipoca” (1997): “O Ara Ketu, o Ara Ketu quando toca/ deixa todo mundo pulando que nem pipoca”. O Olodum fez manobra semelhante, guinando para a axé mais comercial, em sucessos como “Vem meu amor”, “Deusa do amor” e “Nossa gente (Avisa lá)”, todos de 1992.

O poder negro: Carlinhos Brown e Timbalada

Nascido na comunidade do Candeal, em Salvador, Brown despontou ainda nos anos 1980 como percussionista de Luiz Caldas, até Caetano Veloso iluminá-lo como instrumentista, mas também gravando sua “Meia-lua inteira” (1989). Antes de se tornar nome de ponta da MPB e um dos Tribalistas (ao lado de Marisa Monte e Arnaldo Antunes), Brown se consolidou em 1991 como líder da Timbalada, formado por mais de uma centena de jovens percussionistas e cantores do Candeal. Em plena coqueluche da axé music, o Carnaval de Salvador (e do Brasil) incorporou imediatamente criações de Brown na Timbalada, como “Beija-flor” (1993), “Margarida perfumada” (1995) e “Água mineral” (1996).

carlinhos brown

Carlinhos Brown Getty Images

ANOS 1990

O samba duro domina: É o Tchan

Dançando na boquinha da garrafa, o grupo É o Tchan provocou resistência com suas letras explicitamente sexuais em meio a brincadeiras infantis de roda, bambolê e dança da cordinha. Para além dos duplos sentidos, conquistou adultos e crianças pela sonoridade com raízes da música baiana, em particular do samba de roda do Recôncavo. Dali brotou mais um manancial de hits: “Paquerei”, “Pau que nasce torto” e “Melô do Tchan” (1995), “A dança da cordinha” (1996), “Ralando o Tchan” (1997)…

O apogeu: Banda Eva e Ivete Sangalo 

Transformado em banda, o bloco Eva adentrou o cenário em 1993, com Ivete já como cantora de frente e emplacando sucessos como “Adeus, bye-bye” (1993), do Ilê Aiyê, e “Me abraça” (1995). A explosão se iniciou com “Beleza rara” (1996), e a usina de hits da Banda Eva abasteceu os Carnavais com “Levada louca” (1996), “Arerê” (1997) e “Carro velho” (1998). Na virada dos anos 2000, Ivete deixou a banda e inaugurou carreira solo, em que continuou enfileirando sucessos: “Canibal” (1999), “Pererê” (2000), “Festa” (2001), “Sorte grande” (2003), “Abalou” (2005), “Dançando” (2012) e “Tempo de alegria” (2014).  

Ivete Sangalo

Ivete Sangalo Getty Images

A ressaca: Terra Samba, Harmonia do Samba, As Meninas

O massacre sonoro promovido pela indústria com a música da Bahia ao longo dos anos 1990 começou a dar sinais de desgaste no final da década. Os sucessos seguintes pertenceram a bandas que não tiveram vida longa, como Terra Samba, com “Liberar geral” (1997), Harmonia do Samba, da qual se desprendeu Xanddy Harmonia, depois do sucesso “Vem neném” (1999), e o trio feminino As Meninas, de “Bom xibom bombom” (2000).

ANOS 2000 

Depois do axé: Parangolé, Psirico e Àttøøxxá

Claudia é a artista que tenta dar sobrevida à axé music nos anos 2000. Primeiro como líder da banda Babado Novo, dos sucessos “Safado, cachorro, sem vergonha” (2004) e “Bola de sabão” (2005). Depois, em carreira solo, com hits como “Exttravasa” (2013).

Hoje ministra da cultura, Margareth Menezes resgatou a raiz negra do gênero em 2001, com “Dandalunda”, composta por Carlinhos Brown. 

No mais, a axé music tem se reciclado, transformando-se no chamado pagodão baiano, que presta tributo a É o Tchan, mas ganha sempre um verniz moderno pela eletrônica e por fusões com funk carioca, bregafunk, arrocha, sertanejo, piseiro etc. Essa levada produziu sucessos como “Rebolation” (2009), do Parangolé, “Lepo lepo” (2016), do Psirico, “Elas gostam (Popa da bunda)” (2017), com Psirico e Àttøøxxá, e “Zona de perigo” (2023), do ex-Parangolé Léo Santana. Ivete resiste como a fênix da axé music, dividindo com a carioca Ludmilla o megahit “Macetando” (2023).