Imagine a cena: você sai de casa e, da janela de cima, alguém joga água gelada sobre a sua cabeça. Uma pessoa correndo arremessa uma bola de cera no seu peito: ela estoura e espalha um líquido sobre seu corpo. Você se protege como pode, mas, metros adiante, um terceiro par de mãos enfarinha seu rosto. Um pouco atarantado, você vê um senhor tentando atravessar a rua e se protegendo da molhaceira com uma bacia, sem muito sucesso. Na verdade, sua situação nem estava tão ruim: pelo menos ninguém jogou urina em você.
Assim eram os dias de entrudo, uma comemoração popular que tomava as ruas brasileiras durante os três dias de Carnaval. Originário de Portugal, o entrudo era visto como um momento para extravasar e fugir da rotina feroz do Brasil colonial. Todos podiam se sujar com água, fuligem e goma – desde que fossem da mesma classe social. A coisa era tão maluca que, mesmo após a proibição do entrudo, em 1853, até o imperador era alvo das brincadeiras.
Os dias de entrudo no Brasil, em gravura de Jean-Baptiste Debret Foto: Reprodução
Como era de esperar, o entrudo estava longe de ser uma unanimidade. Para quem queria um festejo mais elegante e europeizado, como os intelectuais e as damas da sociedade, aquilo era uma barbárie, coisa de terra atrasada. A alternativa eram os bailes de máscara ao estilo francês. Os primeiros aconteceram em 1835, no Rio de Janeiro. Em 1840, veio o primeiro baile no salão nobre de um teatro da então capital, o Theatro de São Januário. Foi um hit. Outros surgiram e se espalharam, virando um reduto das elites nos dias de folia. Em 1924, foi a vez do Hotel Copacabana Palace entrar na festa com o que, até hoje, é um dos eventos mais tradicionais desse festejo.
As fantasias de Carnaval daquela época eram bastante ornamentadas. Em espaços informais, os homens se vestiam de mulher e algumas delas de homem. Foi também quando surgiram os clássicos diabinhos e arlequins. Nos bailes da alta sociedade, a mistura era de estilos: um pouco do luxo opulento das cortes reais, um pouco de Belle Époque.
Baile de Carnaval no hotel Copacabana Palace. Foto: Reprodução Instagram | @belmondcopacabanapalace
Baile de Carnaval na boate Casablanca, no Rio de Janeiro, na década de 1950. Foto: Thomaz Farkas | Instituto Moreira Salles
Nos anos 1930, as vestimentas, ainda intrincadas, ficaram mais parecidas com figurinos de teatro e cinema. Na década de 1940, a influência das estrelas de Hollywood já era óbvia: de Carmen Miranda a Rita Hayworth, estava tudo ali, nos tecidos e silhuetas. Chega a vibe tapete vermelho.
Os bailes se popularizam
Na segunda metade do século 20, esses eventos eram tão populares que deixaram de acontecer apenas para as elites, que recebiam convites com os dizeres como “a rigor ou fantasia de luxo, não sendo permitido em absoluto o branco para os cavalheiros”. Aparecem, assim, os bailes com convites à venda e os bailes verdadeiramente populares, organizados por clubes e associações esportivas ou profissionais.
Baile de Carnaval no Rio de Janeiro, na década de 1940 Foto: Thomaz Farkas | Instituto Moreira Salles
“Era uma forma de divulgar um lugar e mostrar como ele fazia parte de um conjunto social. Por exemplo: um clube de profissionais de medicina queria trazer as famílias de médicos para agregar mais ainda aquele segmento”, explica o historiador Alexandre Pinto de Souza e Silva. Pesquisando o acervo do fotógrafo Marcel Gautherot no Instituto Moreira Salles, Alexandre encontrou vários cliques de bailes e festas de rua nos anos 1950. Decidiu escrever um estudo.
Baile de Carnaval no Rio de Janeiro, em 1953. Foto: Getty Images
Ele explica que analisar as fotografias como registros históricos é se questionar sobre o que está lá e o que não está. O enquadramento, por exemplo, é significativo. “Você tem uma limitação técnica e também uma direção”, conta. “São vestígios do passado: tem o jeito que essas fotografias são lidas por nós e como tentamos entender as escolhas de Gautherot e como os personagens se portavam.”
As ausências
Durante a pesquisa para esta matéria, saltou aos olhos a ausência de pessoas negras nos principais bailes históricos. Com exceção de Pelé, elas costumam aparecer nos detalhes, às vezes tocando um instrumento, como parte da banda. Alexandre comenta que até mesmo a configuração da luz das câmeras nesses espaços reforçava o apagamento.
É onde entra o trabalho de Giane Vargas. Professora-adjunta da Universidade Federal do Pampa e coordenadora do projeto de pesquisa dos Clubes Sociais Negros do Brasil e Uruguai, ela estuda desde 2001 as imagens e histórias de rainhas dos clubes.
Alcione com a fantasia “Deusa de Watusi”, durante o Carnaval de 1970, no Rio Grande do Sul. Foto: Acervo familiar cedido à Giane Vargas
Natural de Santa Maria (RS), Giane frequentou os bailes de Carnaval de clubes na infância e hoje recupera memórias desses e de outros eventos para visibilizar imagens positivas da população negra. “São mulheres imponentes e homens poderosos construindo patrimônio, construindo edificação, bailando, dançando, fazendo políticas e defendendo direitos dentro de seus próprios espaços”, fala. “Eram nesses clubes que eles se sentiam gente, que tinham o poder de serem reis e rainhas.”
Por meio da pesquisa – que renderá um livro com lançamento previsto para este ano –, ela teve acesso aos álbuns de vários bailes e entrevistou as protagonistas e suas famílias. É um processo longo e necessário de musealização. “Grande parte da história da população negra não está nos museus e nem está guardada de forma adequada nos arquivos públicos”, explica Giane.
Alcione Flores do Amaral é uma das soberanas carnavalescas que ela encontrou. Ela foi eleita Rainha do Carnaval do Clube Treze de Maio e 1ª Princesa do Carnaval da Cidade de Santa Maria, em 1970. Sua fantasia, vencedora do concurso daquele ano, faz homenagem às suas raízes africanas.
Pele à mostra
A transformação das mulheres é um dos aspectos mais fascinantes dos acervos de fotos e registros de bailes de Carnaval. Se nos dias de entrudo já havia sensualidade, com os vestidos molhados grudados na pele, os corpos femininos vão se tornando cada vez mais livres a partir dos anos 1950, quando aparecem em shorts, blusas sem alça (chamadas então de tomara que caia) e maiôs. No início da década seguinte, mesmo em meio à curta (e bizarra) proibição dos biquínis, assinada por Jânio Quadros, lá estavam eles, cada vez mais evidentes.
Foliões no Baile dos Artistas, baile pré-carnavalesco do Hotel Gloria, no Rio de Janeiro, em 1960. Foto: Folhapress
Baile de Carnaval, em São Paulo, em 1965. Foto: Folhapress
A modelo Veruschka em uma festa de Carnaval no Rio de Janeiro, em 1969. Foto: Getty Images
Mulheres fantasiadas no baile de Carnaval do hotel Nacional, no Rio de Janeiro, em 1978. Foto: Folhapress
Nos anos 1970, em plena ditadura militar, mostrar a pele desnuda ou com transparências – característica do Carnaval até hoje – é um fato consumado. A informalidade também chega para os homens, que aposentam camisas e adotam roupas informais (ou camisa nenhuma) nos bailes populares e fantasias que brincam com a ideia de gêneros.
Novos tempos
Com a redemocratização do Brasil, nos anos 1980, o sentimento de liberdade torna as roupas ainda mais ousadas e experimentais – e também libera os fotógrafos para publicar esses cliques sem censura. A partir dos anos 1990, as fantasias ganham um caráter de moda, com acessórios de cabeça elaborados e silhuetas variadas. Também fica clara a influência das escolas de samba, especialmente das icônicas passistas.
Pelé e Xuxa em baile de Carnaval do hotel Copacabana Palace. Foto: Reprodução Instagram | @belmondcopacabanapalace
Sabrina Sato em baile de Carnaval do hotel Copacabana Palace. Foto: Reprodução Instagram | @belmondcopacabanapalace
Antes tão constantes, os bailes de Carnaval entraram em decadência no pós-ditadura. Depois de 20 anos de opressão, o desejo de viver as ruas atraiu os foliões para blocos e cordões. Essa também é a época dos grandes investimentos nos Carnavais de avenida, quando as escolas de samba cariocas se mudam para a Sapucaí, em 1984, e crescem em popularidade televisionada. O Anhembi, em São Paulo, viria depois, em 1991.
Hoje há poucos bailes vultuosos. O Baile do Copa é o mais famoso, claro: é possível dividir espaço com celebridades em looks momescos deslumbrantes, como nos tempos de outrora. Esse tipo de evento resiste em espaços menores, como clubes e agremiações de bairro, e coexiste pacificamente com outras formas carnavalescas. Se o ápice dos bailes passou, a intenção permanece: estreitar os laços com sua comunidade e festejar até desligarem o som.