Vestida de sua nudez

No Carnaval, os corpos ganham as ruas em uma festa que rompe temporariamente com a realidade. Será?

Alguns elementos são símbolos emblemáticos do Carnaval brasileiro: as músicas, as cores, a alegria, o brilho, os corpos quase nus. Seja no bloco de rua, seja nos desfiles das escolas de samba, o dress code oficial da festa, pelo menos em grande parte do país, é mostrar a pele. Até mesmo quem não costuma usar peças reveladoras no dia a dia acaba se sentindo mais livre para vestir menos – bem menos, às vezes – durante os dias de celebração. 

A relação do Carnaval com a nudez começa em meados dos anos 1950, com os biquínis invadindo as praias e logo compondo o visual das primeiras passistas. Looks ainda mais reveladores começaram a ser usados pelas travestis nos anos 1970, enquanto as mulheres cisgênero passaram a deixar os seios à mostra na década seguinte. Em 1989, a modelo Enoli Lara cruzou o Sambódromo no desfile da União da Ilha do Governador usando apenas uma sandália e uma capa. Era a primeira vez que se via um nu frontal completo na avenida. A nudez total foi, desde então, proibida dos desfiles do Rio de Janeiro. 

De acordo com o antropólogo Roberto DaMatta em Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro (1979), a partir da observação da liberdade nos desfiles dos blocos de rua, o Carnaval oferece um espaço de ruptura com repressões por estar “fora do tempo e do espaço, marcado por ações invertidas; personagens, gestos e roupas características”. A teoria do autor é de que o corpo, que se mostra como é ao mesmo tempo que performa uma fantasia, é a ferramenta pela qual essa quebra é capaz de acontecer.

Para a analista de marketing Isadora Almeida, frequentadora assídua de blocos de rua em São Paulo há quase uma década, o Carnaval é justamente esse momento de quebra com a realidade. “É quando eu vivo as minhas fantasias mais loucas: poder me montar, colocar a roupa que eu quiser. E, por causa da época do ano e do horário em que a folia acontece, que é muito quente, quanto menos roupa, mais confortável eu me sinto. Então, independentemente do corpo que eu tenha, eu me sinto muito linda e realizada”, conta. 

Sob esse ponto de vista, é possível dizer que o Carnaval se distancia da realidade de forma momentânea, promovendo uma imersão em um mundo em que as amarras sociais são, até certo ponto, rompidas pelos festejos. Contudo, basta um olhar mais atento para notar que essa liberdade pode afetar de maneira singular a experiência de diferentes corpos no Carnaval. A depender de quem você é, da cor da sua pele, do gênero com o qual você se identifica, do tamanho do seu manequim ou da sua idade, a nudez carnavalesca pode ser vista e interpretada de maneiras bastante específicas. 

“Durante as apresentações, já pediram para tirar foto só da minha bunda e já colocaram a câmera de cima para baixo para filmar o rebolado.”
Rafaela Bastos 

É comum, por exemplo, que as celebridades que desfilam com escolas de samba ouçam a pergunta: “Como você prepara o seu corpo para o Carnaval?” Elas, quase que de maneira automática, contam o que fizeram para perder peso. A mesma questão, quando jogada no Google, oferece um banquete de dietas, combinações de exercícios e práticas milagrosas que prometem te deixar “em forma” para a folia, reforçando a ideia de que, para usarmos menos roupas, precisamos estar necessariamente mais magros. E os corpos que estão na mira são, via de regra, os das mulheres. 

No Carnaval passado, imagens da atriz Paolla Oliveira, rainha de bateria da Grande Rio, viralizaram na internet com críticas sobre seu peso e sua idade. “Imagina você se arrumar, se achar linda, fazer uma roupa maravilhosa e ir para o ensaio. Chegando ao ensaio, você é gongada, massacrada, criticada. Você não quer mais voltar”, contou em recente entrevista ao Fantástico. Neste ano, mais uma vez, a história se repetiu, gerando inclusive debates entre internautas, em sua maioria homens, acerca do corpo da atriz, colocando frente a frente aqueles que a criticavam por ter supostamente ganhado peso e aqueles que a objetificam, chamando-a de “cavalona” e “gostosa”. “Eu estou falando do alto do meu privilégio, como uma mulher branca, padrão, bem-sucedida. Eles não me deixam em paz”, disse a atriz. Ao mesmo tempo que o Carnaval clama pelo corpo, quando ele é mostrado, é rapidamente colocado como réu em um tribunal onde todo mundo acha que pode ser juiz. 

A objetificação e a hiperssexualização da mulher negra, embrenhada na construção da sociedade brasileira, é ainda mais evidente. Exemplo disso é a figura da Globeleza, “personagem” criada pela TV Globo nos anos 1990 e recentemente extinguida. Todos os anos, essas mulheres – todas elas negras –  apareciam nuas, com o corpo pintado e sambando nas telas de TV do Brasil inteiro. Essa imagem, que foi exportada para o mundo como o símbolo do Carnaval brasileiro, reforça o papel social atrelado à mulher negra. Em Por um feminismo afro-latino-americano (2020), a filósofa e antropóloga Lélia Gonzalez explica que, “como um corpo que gera prazer e que é superexplorado sexualmente, ela é a mulata dos desfiles de Carnaval para turistas, de filmes pornográficos etc., cuja sensualidade é incluída na categoria do ‘erótico-exótico’”. Nesse cenário, as passistas das escolas de samba, em sua maioria mulheres negras, se tornam os principais alvos. Essa mulher é, segundo Lélia, “adorada, desejada e devorada” durante os desfiles por um público que está lá justamente para cobiçá-la. 

Foi isso que motivou Rafaela Bastos, geógrafa e passista que desfilava com a Estação Primeira de Mangueira, a iniciar um estudo sobre a objetificação sexual na Sapucaí – estudo que lhe rendeu uma Medalha Rui Barbosa, que premia pessoas que contribuem para o enriquecimento da cultura brasileira. “Parte da pesquisa era entender se as mulheres passistas sabiam que elas eram objetificadas”, explica. Todas elas sabiam – afinal, os assédios não costumam ser tímidos. “Durante as apresentações, já pediram para tirar foto só da minha bunda e já colocaram a câmera de cima para baixo para filmar o rebolado”, conta.

Rafaela também cita a teoria do filósofo e professor Cláudio Ulpiano, da UFRJ, nos anos 1990, que separa o corpo entre orgânico e espetáculo. O primeiro tem a ver com a nossa realidade diária, nosso trabalho e nossas relações, enquanto o segundo é o do gesto, da dança e da interpretação. “A passista se encaixa perfeitamente nessa descrição porque, ao mesmo tempo que ela dedica o seu corpo orgânico para, literalmente, sustentar o corpo espetáculo, quando ela está na avenida, também é colocada como se só o segundo existisse, como se fosse um objeto”, explica. “É daí que vem a frase preconceituosa que a gente sempre escuta: ‘Nossa, onde essa mulher se escondeu o ano todo?’. Essa mulher está na labuta, trabalhando para ser reconhecida”, defende. Lélia Gonzalez chama isso de efeito Cinderela, em que a passista, por um breve momento, sai do anonimato e passa a ocupar um espaço de protagonismo que, em outros universos, lhe é negado. “É uma relação paradoxal porque ao mesmo tempo que ela precisa ser percebida, quando isso acontece, ela é percebida como objeto”, completa Rafaela. 

Ainda que mudar o olhar de terceiros seja um trabalho árduo, que exige uma mudança estrutural social revolucionária, a boa notícia é que as mulheres que ocupam esses espaços estão cada vez mais alertas e conscientes. “O debate público sobre o feminismo e sobre a objetificação sexual, de maneira geral, tem feito com que elas tenham não apenas mais informações, mas também mais apoio por meio de diferentes iniciativas”, conta Rafaela. Talvez esse seja o caminho para que a quebra com a realidade, permitida pelo Carnaval, ajude a também romper com todo o racismo e a misoginia, que insistem em dar as caras com ou sem fantasia.