Em 1688, o médico suíço Johannes Hofer cunhou o termo “nostalgia” para descrever um tipo específico de melancolia que acometia soldados longe de casa — um mal-estar físico e emocional causado pela saudade do lar. Mais de três séculos depois, o conceito ganhou novas camadas e perdeu o status de patologia, transformando-se em um dos sentimentos mais explorados pela cultura contemporânea (e pelo capitalismo).
O que antes era um sinal de desequilíbrio emocional agora é recurso criativo — e dos mais lucrativos. Na moda, a nostalgia entrou em um looping frenético, com o olhar voltado para um passado cada vez mais recente. É o retorno dos efeitos clássicos do Instagram, dos iPhones e câmeras digitais de 2010 como símbolo de estilo, dos vestidos Hervé Léger e dos chaveiros de bolsa, entre outros resgates saudosistas. O velho é o novo e ele está mais literal do que nunca.
Eu sei o que eu fiz no verão passado
Em vez de apenas reinterpretar os arquivos, as grandes casas da moda, por exemplo, estão reeditando suas próprias peças com precisão quase documental. Na temporada de verão 2025, a Miu Miu ressuscitou estampas de 2005. Donatella Versace foi ainda mais direta e apresentou looks quase idênticos aos do desfile da linha Versus, de 1997. Miuccia Prada e Raf Simons, por sua vez, trouxeram de volta alguns dos sapatos mais icônicos da Prada, incluindo um par de mary janes com bico de borracha da coleção de inverno 2012.
Versace Primavera 1997 e Verão 2025 Foto: Getty Images
Nas premiações, a lógica é a mesma. Chappell Roan atravessou o tapete do Grammy com um vestido de alta-costura da coleção de verão 2003 de Jean Paul Gaultier, e Kylie Jenner reciclou um modelo Versace usado por Elizabeth Hurley nos anos 1990. Enquanto isso, o desejo por peças da era de ouro de Karl Lagerfeld na Chanel e dos anos de John Galliano na Dior continua em alta.
Chappell Roan no 67th GRAMMY Awards Foto: Getty Images
Não é exatamente uma novidade. Moda e cultura sempre funcionaram em ciclos nostálgicos. A diferença agora está no timing: estamos revivendo coisas que mal tiveram tempo de esfriar, quiçá de entrar no esquecimento. “Tradicionalmente, o ciclo de tendências era de 20 anos. Hoje vemos esse tempo cada vez mais curto, com alguns retornos acontecendo em dez ou até cinco anos”, explica a head de relacionamento e especialista em tendências da WGSN, Mariana Santiloni.
Em vez de apenas reinterpretar os arquivos, as grandes casas da moda estão reeditando suas próprias peças com precisão quase documental.
A internet e a tecnologia, como dá para imaginar, estão no centro desse movimento. Celulares viraram bibliotecas visuais portáteis, scans de revistas — novas e antigas — viralizam em segundos e um simples print pode definir uma tendência ou coleção. “Antes, era preciso comprar livros e ir atrás de publicações para pesquisar. Levava um tempo até que uma ideia antiga fosse maturada e reapresentada com uma nova roupagem”, comenta o stylist Thiago Ferraz.
A aceleração tecnológica transformou não apenas a maneira como assimilamos tendências, mas também ampliou o acesso a produtos e informações. “Estamos imersos em um fluxo constante de conteúdo, o que facilita tanto o contato com o novo quanto a prática do remix, reaproveitando imagens, referências e lugares por onde a moda já passou”, acrescenta Ferraz. “Isso permite atualizar o passado sem cair na lógica das tendências passageiras, trazendo um senso de originalidade.”
Cenário impulsionado pelas redes sociais. “Instagram e TikTok redefiniram a forma como consumimos e descobrimos informações, ao combinarem a lógica da gratificação instantânea com a produção em massa de conteúdo por influenciadores, ampliando o acesso e acelerando o ciclo de consumo cultural”, destaca Santiloni.
Ao mesmo tempo, quanto mais tudo se torna acessível e efêmero, maior parece ser o valor do que carrega história e identidade. Em um mercado globalizado, em que qualquer pessoa com internet e dinheiro pode consumir o que está nas passarelas, encontrar algo raro virou uma maneira de se destacar.
Sim, a nostalgia agora é também estratégia. É curadoria, identidade e desejo embalados em referências que parecem ter saído do fundo da memória – ou da timeline de 2014.
Freud explica
A lógica do tempo também ajuda a entender a força atual do saudosismo. Para Cloves Antonio de Amissis Amorim, psicólogo, doutor em educação e professor da PUC Paraná, vivemos em uma cultura marcada pela urgência. “O tempo da memória foi comprimido por um presente constante, imediato, digital”, afirma.
É a tal modernidade líquida, defendida pelo sociólogo Zygmunt Bauman, em que o excesso de velocidade do mundo torna difícil entrar em contato com lembranças e processar afetos. “A nostalgia exige tempo e elaboração. Mas hoje tudo precisa ser rápido, até os sentimentos”, observa Amorim.
Em um mercado globalizado, em que qualquer pessoa com internet e dinheiro pode consumir o que está nas passarelas, encontrar algo raro virou uma maneira de se destacar.
Isso impacta diretamente nossa relação com o passado. Segundo o professor, as redes reforçam o imediatismo, reduzindo a paciência e a tolerância à espera. “Qualquer processo que envolva pausa ou memória se torna mais difícil de sustentar.”
E mesmo que haja tentativas de desaceleração, como a retomada dos jogos de tabuleiro, o interesse crescente por práticas manuais ou o hábito de cozinhar receitas afetivas, ainda é difícil medir o impacto real dessa aceleração do tempo. “Os estudos sobre a nostalgia na psicologia são recentes. O primeiro artigo relevante foi publicado em 1995”, diz Amorim. “Mas sabemos que memória, afeto e imaginação fazem parte da condição humana. Em algum momento, vamos precisar encontrar um ponto de equilíbrio entre a velocidade da tecnologia e o tempo interno das emoções.”
Se o passado oferece uma base afetiva e estética para o presente, ele também funciona como uma válvula de escape. “Existe um conceito psicológico chamado Curva de Reminiscência, que descreve como, em momentos de estresse ou trauma, as pessoas buscam no passado uma sensação de segurança”, explica Mariana Santiloni.
Em um contexto de policrise, marcado por instabilidade climática, econômica e social, a nostalgia se torna uma tentativa de resgatar alguma forma de estabilidade. “É uma fuga para tempos que pareciam mais simples e seguros. Diante de tantas incertezas, é natural que esse fenômeno continue se manifestando”, aponta ela.
E o futuro já começa a ser moldado por essa mistura. “Estamos passando por uma transformação intensa”, diz Thiago Ferraz. “A novidade vem muito da tecnologia, da inteligência artificial, da digitalização, e isso já aparece no design e nas novas técnicas de produção.”
Segundo ele, a moda caminha para um lugar de reinvenção, e não de ruptura. “A gente vai continuar vendo o remix do vintage, mas com novas camadas de significado. É quando você pega uma referência, como o minimalismo dos anos 1990, e ressignifica dentro de uma nova filosofia, como a moda sem gênero. É aí que o passado se torna ferramenta de futuro.”
@analoginspo. Foto: INSTAGRAM