Pequenos notáveis… Por quanto tempo?

Marcas independentes, há tempos os principais agentes de mudanças e renovações no mercado, podem desaparecer após a pandemia.


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2020 prometia ser um ano de muito crescimento para Isaac Silva. A recém-lançada coleção de inverno vendia bem, havia negociações para abrir duas novas lojas, uma em Salvador e outra no Rio de Janeiro, e, no dia 28 de abril, aconteceria o segundo desfile da grife no SPFW. Nada disso aconteceu. No dia 19 de março, o estilista baiano fechou as portas de sua loja, no bairro de Santa Cecília, em São Paulo, e interrompeu todas as atividades da empresa. “Paramos tudo, a produção da nova coleção, as vendas físicas, os projetos comerciais, tudo”, diz ele. “Reuni meus funcionários e colaboradores, comuniquei os próximos passos e expliquei tudo o que estava acontecendo. Naquele momento, ainda haviam pessoas indignadas, achando que era exagero de minha parte”, relembra.

Isaac Silva é um dos principais nomes da nova geração de estilistas nacionais. Seu desfile de estreia no SPFW, em outubro de 2019, entrou para história da moda brasileira como um dos poucos momentos em que um diretor de criação negro pôde apresentar uma coleção feita por e para pessoas negras. Naquele momento, a marca estava prestes a completar 5 anos e a loja quase um. Apesar do tempo curto, as conquistas foram gigantescas. Isaac se tornou uma das principais vozes e expoentes da cultura negra e afrodescendente no mercado local. Suas roupas são uniformes de resistência e celebração. Seu trabalho abriu caminhos, inspirou e impactou toda uma geração de profissionais e criadores que, antes, nunca se viram representados.

Com pouco auxílio governamental e acesso limitado a boas linhas de créditos, tudo isso pode desaparecer. “Somos uma empresa pequena, nosso caixa de um mês é o que o paga o seguinte. Se a marca para, não tenho de onde tirar dinheiro”, diz o estilista. “Eu emprego muita gente desassistida por programas sociais e com poucas oportunidades no mercado de trabalho. Elas dependem de mim, dependem da sobrevivência do negócio.” Isaac não está sozinho nessa. Toda uma nova geração de estilistas e marcas que floresceram nos últimos anos estão com seus negócios ameaçados pelas dificuldades impostas pela crise do novo coronavírus.


Duas modelos negras de modelos dadas durante o desfile do estilista Isaac Silva no SPFW.

O desfile de estreia de Isaac Silva no SPFW.Foto: Agência Fotosite

Estamos falando de empresas pequenas, independentes, sem grandes investidores para bancar as operações. Devido ao tamanho, qualquer tipo de negociação tem uma série de obstáculos. Pela baixa quantidade de roupas feitas mês a mês, contratos com fornecedores de tecido e mão-de-obra, por exemplo, são mais custosos. Por outro lado, é possível ter maior controle sobre todas as etapas do processo e garantir um produto com melhor qualidade e adequado às práticas responsáveis ambiental e social de produção.

O problema é o preço. Comparativamente, a roupa de uma marca independente custa mais do que aquela produzida em massa. Grosso modo e via de regra, empresas que produzem em larga escala conseguem melhores preços junto a seus fornecedores. É mais fácil negociar e conseguir barganhas com um volume elevado de produtos e fluxo constante de mercadorias. Daí o valor reduzido da peça quando ela chega às lojas. O que ninguém vê – ou escolhe não ver – é que esse sistema é falho e explora o trabalhador. O valor pago pela mão-de-obra é uma microfração daquele impresso na etiqueta.

Quando falamos de marcas pequenas com produções internas ou terceirizadas, mas ainda em pequena escala, é possível garantir condições e remunerações dignas aos envolvidos no processo. Há, contudo, implicações. Coleções mais enxutas, restrições no número de peças que podem ser produzidas, significam restrições comerciais. Em tempos de crise, isso pode ser um grande problema.

A marca Isaac Silva, por exemplo, não atua no atacado. Suas roupas são comercializadas exclusivamente na loja e site do estilista. O que tem garantido um mínimo fluxo neste momento é o e-commerce. “Havíamos acabado de lançar um novo site, todo pensado para comunicar os valores e experiências que nossos clientes sentem quando entram na loja física”, diz o designer. E deu certo. Desde o lançamento, as vendas online cresceram quase 20%. Ainda assim, elas equivalem a apenas 30% do faturamento.

“Espero que, com isso, quem ainda vê a moda como algo puramente supérfluo, passe a entender o que essa indústria representa como forma de expressão cultural e o tanto de gente que pode ser impactada por ela” – Isaac Silva.

Para impulsionar as vendas online, Isaac passou a vender vouchers que garantem acesso antecipado à nova coleção. Além disso, todas as peças disponíveis estão com 50% de desconto e na compra de qualquer item, o cliente recebe uma máscara feita a partir de tecidos em estoque no ateliê. “Começamos a fazer máscaras para doar para moradores de rua e instituições de saúde. Mas muitos clientes começaram a entrar em contato para saber como poderiam ajudar”, conta. Foi então que o estilista decidiu colocá-las à venda. Para cada uma comprada, a R$ 49,90, duas outras são doadas. Além disso, o espaço da loja se transformou num centro de arrecadação de alimentos para pessoas em situação vulnerável e de rua.

“Nossa marca sempre se preocupou com o fator humano da moda, não podíamos ficar sem fazer nada nesse momento”, afirma. Para Isaac, a postura responsável social e ambientalmente foram essenciais para garantir maior apoio de consumidores durante a crise. “As marcas estão finalmente entendendo que não adianta vender só por vender, é preciso ter algo maior envolvido. Espero que, com isso, quem ainda vê a moda como algo puramente supérfluo, passe a entender o que essa indústria representa como forma de expressão cultural e o tanto de gente que pode ser impactada por ela”, conclui.

Para o carioca André Namitala, diretor de criação e fundador da Handred, o baque da crise causada pela covid-19 só não foi pior porque a marca sempre se preocupou em não ser só uma produtora e vendedora de roupas. “Eu sabia que teríamos um rombo financeiro, mas não podia comprometer tudo que a gente acreditava nem colocar as pessoas em risco”, diz ele, sobre a decisão de suspender todas as atividades da empresa e fechar as lojas. “Naquele momento, nossa preocupação não era vender, mas comunicar a gravidade da situação e prezar pela saúde e bem-estar de todos.” O trato mais humano foi essencial para engajar o cliente numa possível compra, segundo o estilista. “É uma situação muita complicado para vender roupa. De um lado existe a necessidade do consumo para manter a empresa, do outro a sensibilidade de entender que isso não é essencial agora.”

Desde o início da quarentena, as vendas online da Handred subiram 350%, muito devido à atuação dos vendedores das lojas físicas no Instagram e WhatsApp. Ainda assim, não é o bastante para garantir a sobrevivência da empresa.

Adepta às maneiras mais responsáveis de se fazer roupa, Flávia conseguiu se estabelecer através de uma moda feita no seu próprio tempo e estilo. Seus tecidos são quase todos orgânicos, produzidos e manuseados de acordo com práticas sustentáveis e com atenção máxima à condição social dos trabalhadores envolvidos. Seus tingimentos são naturais, feitos no próprio ateliê. Sua mão de obra é corretamente remunerada e assistida socialmente.

“Após a abertura da nossa segunda loja, fiquei preocupada se nosso crescimento seria um problema para nossos princípios e maneira como fazemos moda”, revela. “Sempre dei importância para as vantagens de ser pequena e ter mais liberdade criativa. Aí veio a quarenta e tudo ficou claro. Percebi que a preservação dos nossos valores realmente valiam a pena e faziam diferença. Foi um sinal de que estamos no caminho certo.”

“Meu desejo é que as pessoas comecem a entender que precisam ter menos e melhor. Roupas bem feitas, com qualidade, tecidos orgânicos e envolvendo trabalhadores pagos digna e corretamente podem fazer parte disso” – Flávia Aranha.

Não porque profetas do mercado proclamam a sustentabilidade e produção responsável como um dos caminhos para a salvação da moda. Mas, sim, porque Flavia vive isso na pele – e de verdade. “Como sempre falamos e nos atentamos a tudo isso, nossa comunicação não parece forçada ou oportunista. Nossa cliente é genuinamente preocupada com essas questões, então sua colaboração acaba vindo naturalmente.”

Como pequena empresa, a marca não possui capital de giro para se sustentar por nem um mês sem vendas. Para contornar o fechamento das lojas físicas e impulsionar as compras online, foi implementada uma liquidação de peças em estoque com 50% de desconto. “Não é algo que faríamos normalmente, foi superagressivo, mas precisávamos de caixa para cobrir nossos custos fixos”, explica. “Conseguimos faturar a mesma quantia de quando as lojas estavam abertas.” O desafio, agora, é manter esse fluxo sem a redução de preço. “Entendemos que é um momento delicado e que todo mundo está menos disposto ou com condições de gastar. Por isso, criamos uma coleção-cápsula feita de tecidos mais simples que estavam estocados, sem construções ou detalhes muito elaborados e com peças bem confortáveis.”

Flávia não sabe bem o que esperar do futuro: “Meu desejo é que as pessoas comecem a entender que precisam ter menos e melhor. É sobre descobrir o que é essencial para você e não só em questões materiais, mas no que é realmente relevante para você e o que faz sentido na sua vida. Roupas bem feitas, com qualidade, tecidos orgânicos e envolvendo trabalhadores pagos digna e corretamente podem fazer parte disso”. Ao mesmo tempo, ela está ciente que as engrenagens do mundo antigo não pararam. A história nos ensinou que foi em momentos de crise que grandes corporações ampliaram seus domínios exploratórios, preocupadas com o lucro acima de tudo e todos. “Fico muito preocupada com o elo mais frágil da cadeia, os profissionais mais vulneráveis, dos produtores de tecidos orgânicos às costureiras”, desabafa.

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