Até tu, Mozart????
Nos bastidores da música clássica, Antonio Salieri acabou virando a personificação da inveja. Mas que rumos essa história tomaria se invejoso e invejado deixassem o antagonismo de lado?
Há controvérsias. Não temos elementos históricos que comprovem que a morte do gênio Mozart foi causada pela inveja que outro grande músico, Antonio Salieri, sentia pelo “Amado por Deus” – significado de Amadeus, nome do meio de Mozart e também do filme de 1984, dirigido por Milos Forman. O talentoso cineasta levou essa suposição para as telas com maestria, alcançando oito estatuetas do Oscar, incluindo a de melhor filme e melhor diretor.
Verdadeiro ou não, o argumento central de Amadeus é espetacular e nos serve de pano de fundo para reflexões importantes sobre um dos maiores tabus da humanidade: a inveja.
A inveja ainda é um assunto demonizado e cercado por medo, culpa, repulsa e tons de moralidade e ostentação. Ao que parece, todo mundo é invejado, mas ninguém sente inveja (meio parecido com o racismo brasileiro, né?). E não é pra menos, pois todos concordamos que a inveja evidencia o potencial de odiar e destruir, presentes em qualquer um de nós.
Mas o fato é que se trata de um sentimento humano, demasiado humano. Segundo a psicanalista austríaca Melanie Klein, especialista no trabalho com crianças e autora do importante livro Inveja e Gratidão e outros trabalhos (1946/1963), esse sentimento se manifesta já nos primeiros momentos de nossa existência, através da relação que desenvolvemos com o seio materno. De acordo com Klein, sentimos amor por aquele “objeto” que nos sacia a fome, mas queremos ter controle sobre ele, ou melhor, queremos ter a capacidade que ele tem de proporcionar saciedade e satisfação. Ao percebermos que o seio materno não pode ser nosso, mas está generosamente à nossa disposição, passamos a sentir gratidão, que seria, grosso modo, o antídoto contra a inveja.
Até nas histórias, filosofias e mitologias das mais variadas religiões e crenças, se reconhece a existência desse sentimento humano. Impossível existir alguém que não tenha ouvido, ao menos uma vez, sobre os irmãos Caim e Abel. Caim se pensa distante do foco de admiração e atenção dos pais, além de achar que aquilo que seria de seu merecimento está exclusivamente sendo usufruído pelo seu irmão, Abel. O desfecho é trágico. Tomado pelo ódio, consequência mais comum da inveja, ele mata o irmão, objeto de sua angústia e motivador da suposta rejeição que ele pensa sofrer de seus pais.
Muitas pessoas, sem a menor noção “intelectual” do significado da inveja, dizem em tom de deboche, quando acusados de sentir inveja: “Inveja eu tenho é da Rihanna, de você eu tenho pena”. Equívoco perigoso. Pela estrela internacional da música pop Rihanna sentimos cobiça. Cobiçamos sua beleza, seu dinheiro, a atmosfera de glamour que cerca a vida das celebridades, atiçando nossos sonhos mais coloridos de uma vida perfeita, sem os sofrimentos mundanos como cólica menstrual ou ansiedade diante dos boletos atrasados.
A inveja precisa de uma correspondência ou equivalência social real. A inveja não é material, ao contrário, é substancial. Não sentimos inveja de personagens ou de pessoas que se apresentam muito distantes da nossa realidade humana.
Talvez as pessoas que dizem invejar a Rihanna-celebridade não invejariam a Rihanna-pessoa, se a conhecessem. Isso quer dizer que a inveja é sempre a partir de um contato real, que nos possibilita conhecer características subjetivas no outro, que nos despertam admiração e um incômodo ao julgarmos que essas características faltam em nós.
Caim e Abel eram irmãos, Mozart e Salieri eram colegas de trabalho. Em Amadeus, Salieri se deleita com a genialidade de Mozart. A inveja sempre parte de um amor inicial, para se transformar aos poucos em ódio oculto. O invejoso, em geral, não tem segurança ou percepção real de quem ele é e de tudo que ele tem de bom para oferecer ao mundo. Muitas vezes, podemos conhecer pessoas completamente bem-sucedidas, admiradas por todos, incrivelmente potentes, muitas até brilhantes. Mas como nossa sociedade nos direciona para a competição e incentiva a comparação constante, parece que tudo que somos e conquistamos nunca é o bastante. Não aprendemos desde cedo a celebrar existências outras e ter gratidão pelo que somos, mesmo com nossas imperfeições. Por isso nossa sociedade é terreno fértil para a inveja, e ela está por trás de muitos problemas relacionais, sejam familiares, amorosos ou profissionais.
A inveja é sempre um tormento para o invejoso, porque ela visa alcançar o inalcançável que habita o invejado: o jeito de sorrir, a facilidade com que resolve problemas, a destreza em se livrar de relações pouco promissoras, a liberdade, a descontração, a seriedade, a rigidez ou qualquer outra qualidade humana que o invejoso acredita que falta a si mesmo. Essa qualidade pode até ser revestida por conquistas materiais, mas, no fundo, essas conquistas podem ser alvo de cobiça. A inveja é mais profunda. Mais perigosa. Mais perniciosa.
E a inveja desenvolve uma raiva no invejoso, justamente porque ele sabe que não pode ter do invejado o que ele tanto almeja. É comum que o invejado não saiba que é alvo de inveja, ou quando sabe não compreende o porquê. Principalmente quando o invejoso apresenta inúmeros benefícios e/ou posição social superior.
Quanto maior a percepção do invejoso de sua incapacidade de subtrair o que ele vê de especial no invejado, mais ódio ele sente do seu objeto de inveja. Salieri teria matado Mozart envenenado, de acordo com a estória construída por Forman.
Por isso é importante pensar na derrubada de outro equívoco que acoberta o sentimento de inveja: não existe inveja boa ou inveja branca. A inveja é sempre destrutiva, pois seu elemento alquímico é o ódio, que acaba por motivar ações descontroladas ou perversas do invejoso, atrapalhando não apenas o invejado, mas ele próprio, sobretudo porque a raiz da inveja está na profunda ingratidão a si mesmo e na baixa autoestima do invejoso.
Quando estamos conscientes e gratos pelo que e por quem somos, festejamos diferenças e celebramos as qualidades alheias, nos permitindo desfrutar de forma saudável da relação com aquele que tem algo que nos falta. Ao trabalharmos e compreendermos a fundo as raízes que formam a inveja dentro de nós, conseguimos desenvolver um sentimento de complementaridade e, por que não dizer, de plenitude. A plenitude é o entendimento de que somos completos, apesar de incompletos.
A partir daí, não enxergamos mais o outro como ameaça, e sim como complementação externa ao que não temos condições de oferecer ao mundo. Imagine a genialidade e irreverência de Mozart somada ao pragmatismo e senso prático de Salieri: a música produzida por ambos alcançaria níveis surreais de qualidade. Ambos eram mestres, cada um à sua maneira. Imagine o quanto o mundo em geral ganharia em qualidade se invejosos e invejados somassem qualidades e derrubassem o antagonismo que causa sofrimento e dores incalculáveis para ambas as partes.
Com frequência, percebemos uma atitude de orgulho daquele que se percebe alvo da inveja. Outro equívoco, já que a inveja é um sofrimento que nasce do sentimento de inferioridade do invejoso, e não necessariamente da superioridade do invejado. Como Mozart diz em um dos brilhantes diálogos do filme: “Eu sou medíocre, alteza. Mas minha música, não.” Ser ou não alvo de inveja não pressupõe superioridade ou perfeição, assim como sentir inveja não pressupõe incompetência ou mediocridade. Ambas as posições só existem porque não nos dedicamos a entender nossos sentimentos e a encarar nossas sombras interiores.
Todos os sentimentos precisam ser discutidos, todas as emoções compreendidas e todos os sofrimentos investigados. Para que não haja mais “Salieris” e “Mozarts” se destruindo mutuamente.
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