Textão nas redes sociais não basta, avisa Jia Tolentino

Expoente da geração millennial, a autora de Falso Espelho critica o excesso de opiniões e diz que uma manifestação online só é relevante quando leva a alguma ação: "A internet encoraja as pessoas a acreditarem que o discurso já é o desfecho".


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“A loucura cotidiana perpetuada pela internet é a loucura dessa arquitetura que instala a identidade pessoal no centro do universo. É como se estivéssemos em um posto de observação olhando para o mundo inteiro com um binóculo que faz tudo se parecer com nosso próprio reflexo”, escreve Jia Tolentino, 31 anos, no primeiro capítulo de Falso Espelho – Reflexões Sobre a Autoilusão (Todavia, 346 págs.) Com uma visão cirúrgica sobre questões contemporâneas e um estilo muito bem-humorado que aplica em textos envolventes, ela conseguiu um feito impressionante: transformar em best-seller um livro de ensaios – gênero literário pouco popular entre os jovens. Lançada em 2019 nos Estados Unidos (e mês passado no Brasil), a publicação aborda assuntos como a “otimização” constante de nossos tempos e os mecanismos que estimulam hoje performances prontas nas redes sociais. Como se estivesse conversando consigo mesma, a autora faz um mergulho profundo em um mundo permeado por hiperexposição e autoengano, repleto de verdades inconvenientes.


Jornalista da revista The New Yorker, Jia, uma canadense de origem filipina, que cresceu no Texas, vem sendo apontada como voz necessária dos millennials – uma espécie de Joan Didion dessa geração. A escritora conhece a fundo o ambiente virtual: fez sua primeira página pessoal aos 10 anos, quando descobriu o Angelfire no computador do pai. Na vida adulta, projetou-se profissionalmente como editora do site Jezebel, dedicado a questões femininas. Sua biografia tem de tudo um pouco: ela foi cheerleader, serviu no Quirguistão pelo Corpo da Paz e participou de um reality show aos 16 anos, como revela em um dos nove ensaios do livro. No terceiro deles, sua descrição da “mulher otimizada” dos dias de hoje é impagável. “A mulher ideal sempre foi genérica. Ela tem uma idade indeterminada, mas uma resoluta aparência jovem. Seus cabelos brilham, e sua expressão neutra e inabalável é a de alguém que acredita que foi feita para ser vista. Ela costuma estar oferecendo a si mesma algum tipo de prazer, em praias remotas, sob estrelas no deserto, em uma mesa cuidadosamente decorada, cercada por objetos maravilhosos ou amigos fotogênicos.”

Grávida do primeiro filho (ela não quer saber o gênero do bebê antes do nascimento), Jia conversou por telefone com a ELLE Brasil sobre o livro de estreia, que decidiu escrever após a eleição de Donald Trump (“um jeito de transformar a agonia em algo possivelmente produtivo”), e as desilusões da era do “self” na internet.

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Jia Tolentino: um olhar afiado sobre a geração que cresceu expondo selfies e opiniões na internet.Foto Divulgação

Você decidiu escrever seu primeiro livro logo após a eleição de Donald Trump, em 2016. Como foi esse processo?

Acordei na manhã seguinte às eleições com uma enorme sensação de incerteza. E percebi que me sentiria assim por pelo menos mais quatro anos. Escrever um livro seria um jeito de transformar a agonia em algo possivelmente produtivo. Nunca quis escrever um livro só por escrever. Esse é um marco importante e, para mim, você precisa ter uma ideia que realmente funcione como livro. Mas existiam alguns assuntos martelando na minha cabeça, e percebi que a melhor maneira para trabalhar isso seria escrevendo. Senti a necessidade de pensar em algumas coisas de uma maneira que não fosse simplista.

No livro, você conta que aos 10 anos descobriu a internet e achou “a coisa mais legal do mundo”. Fez uma página pessoal no Angelfire, aprendeu um pouco de HTML. Como alguém que mergulhou tão cedo no mundo virtual percebe as mudanças do ambiente online desde então?

A internet pré-redes sociais era muito divertida e mais próxima dos prazeres da vida real, um ambiente que você podia explorar sozinha. Não existia essa ideia de dividir constantemente opiniões com uma audiência sem fim. Quando criança, a graça da rede era criar coisas muito facilmente, como um site simples. Para mim, isso era o especial: explorar e construir, com mais liberdade que no mundo real. Hoje, toda a conversa é determinada por algoritmos, além de autocentrada. Você não se sente mais livre, pois tudo parece muito construído. E estamos cada vez mais propensos a encarar os estímulos da internet como nossos próprios estímulos, sem que haja um questionamento. O melhor para a internet é ter cada vez mais atenção, mais engajamento (palavra que eu detesto). Pela lógica da internet, isso é o que parece bom: ter mais atenção e visibilidade. E estamos sucumbindo a esses incentivos. Não nos tornamos totalmente diferentes de quem somos, mas estamos exagerando certas características da existência humana – a fofoca, o interesse que temos uns pelos outros. Está difícil separar os estímulos on-line de nossas vidas pessoais.

 

E como você se relaciona com a moda, que tem tanto em comum hoje com o universo das redes sociais?

Eu encaro a moda da mesma maneira que as artes visuais. Não é um assunto que eu entenda de verdade, mas quero sempre aprender para enxergar o mundo através dessas perspectivas. Gosto das narrativas mais macro e pop e também de ler críticas de moda, como as da jornalista Cathy Horyn, que funcionam como uma espécie de análise das ‘condições meteorológicas’ do desejo. Adoro esse tipo de texto.

A internet está mais inflamada do que nunca desde que o coronavírus ganhou proporções de pandemia. Demonstrações de ostentação por parte das celebridades estão sendo altamente criticadas. Você acredita em grandes mudanças?

Enquanto o modelo de monetização das redes sociais for o mesmo, não acredito que isso irá acontecer. A mídia social ainda está construída de uma maneira que impede essa mudança revolucionária da qual muita gente tem fome. A única coisa que talvez esteja acontecendo é que as pessoas estão ficando melhores em expressar por que as coisas estão ruins.

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