Valter Hugo Mãe não se cala

Indignado com a onda de governos autoritários e com a disseminação de preconceitos, o escritor português marca seu posicionamento, condena a covardia e mantém a esperança em dias melhores.


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Valter Hugo Mãe passou a quarentena com a mãe, de 80 anos, e o cão Crisóstomo, em Vila do Conde, Portugal. De lá, não parou: desenhou, escreveu, participou de lives, publicou incansavelmente no Instagram (muitas e muitas fotos de leitores com seus livros, principalmente) e também mandou recados aos brasileiros, com críticas ao governo e pedidos para que respeitassem o isolamento social. O escritor português, de 48 anos, acredita que todos devem se posicionar politicamente. Não tem medo de perder leitores que defendam o contrário, não tem medo de que não gostem do que diz. Acha covarde quem se cala diante dos absurdos autoritários, de quem não diz nada contra quem prega o preconceito, seja ele qual for.

Ilustracao de Valter Hugo Mae para o livro Serei sempre o teu abrigo. O desenho em fundo preto, com tra\u00e7os finos, mostra a figura de um menino deitado com ramos de flores azuis saindo do olho e p\u00e1ssaros estilizados.
O escritor diz que faz desenhos “por graça”: “Gosto que sejam mais ternos do que talentosos”.Ilustração de Valter Hugo Mãe para o livro Serei sempre o teu abrigo (Porto Editora)

Premiado muitas vezes, traduzidos para diversos países, como Alemanha, Espanha, França e Croácia, Hugo Mãe tem sete romances publicados (no Brasil, pela editora Biblioteca Azul), além de livros de contos e poesia. Acaba de lançar em Portugal o conto Serei sempre o teu abrigo (Porto Editora), que também é ilustrado por ele. No livro, ainda sem data de publicação no Brasil, ele fala sobre a velhice, um de seus grandes temas. Depois de passar por uma situação real de muita aflição, com a operação cardíaca de sua mãe, o escritor, como declarou recentemente ao Prêmio Saramago, teve a necessidade de “transformar esta experiência numa beleza qualquer”.

É isso que faz Hugo Mãe com maestria: pensa no mundo pelo viés da beleza. E tem, ainda, esperanças: na poesia, “um mecanismo de amplificação”, no amor, “o sentido de tudo está na partilha com quem amamos”, nas gerações mais jovens, “sou por Greta Thunberg”. A seguir, a entrevista concedida por Hugo Mãe para ELLE Brasil no mês de março, dias antes de o isolamento social ser adotado em Portugal. Um pouco de alento nestes tempos de crise.

Você declarou que seu novo livro, Serei sempre o teu abrigo, é dedicado à sua mãe e ao seu pai. Quais são os aspectos da história que remetem a eles? E como trabalhou suas ilustrações? Elas vieram antes ou depois da escrita?

No livro, falo de um casal de muitos contrastes, mas que se ama e existe como se não pudesse existir separado. Vi os meus pais do mesmo modo, intrínsecos. Coisa de olhar de criança, mas coisa muito forte. Os nossos pais nunca vão ser opostos, mas complementares.

Falo de uma senhora que faz uma operação ao coração. O susto da operação, o difícil de recuperar, leva ao pensamento mágico da criança que, no fundo, espera que tudo se volte a organizar e o amor se mantenha. A família é uma organização intensa, desafiada todos os dias, onde esperamos que o amor se mantenha. O meu livro mostra isso sem que o diga abertamente.

Os desenhos apareceram depois. Havia uns bonecos em cadernos que eu distribuía como o avô e a avó, os pássaros e os cães [da história], mas foi bem depois de acabado o texto que me ocorreu arriscar ilustrá-lo. Mais uma vez, não penso que o faço por talento, faço-o por graça. Os desenhos são uma dimensão algo emotiva do livro. Gosto que sejam mais ternos do que talentosos.

Sua aproximação com as artes plásticas é imensa. Há pouco, você realizou a exposição A boca que olha, com desenhos e pinturas suas, em Portugal. Como foi este caminho, primeiro com as ilustrações e agora homenageando os poetas que admira? Hoje em dia você pinta tanto quanto escreve?

Eu pintei e desenhei nestes últimos meses sentindo que fui tomado por um espírito alheio. Preciso, inclusive, de parar com isto. Eu quero escrever umas quantas coisas e tenho investido demasiado tempo entre tintas e telas, mais papéis. Adoro a experiência e nunca imaginei que fosse capaz de chegar a este resultado, mas agora basta. Quero sintonizar minha cabeça discursiva e entrar nas palavras absolutamente.

Toda a vida quis chegar mais perto do desenho e da pintura. Aconteceu agora, mas nem era a altura certa. Aconteceu meio descontroladamente. A vida é sempre muito atrapalhada. Sonho com arrumar meus assuntos, minha agenda, melhor. Não consigo. Mas quero muito.


O que faz com que as obras desses poetas que retratou sejam uma influência para a sua vida e escrita?

Os poetas são demasiado distintos. Cada um aporta algo completamente diferente, por vezes até oposto, contraditório. O que gosto em Adélia Prado não há na obra de Isidore Ducasse. A poesia, contudo, é um discurso super-potenciado de liberdade, por isso se distribui entre uma hipótese e seu contrário. É uma maravilha de sentidos absolutos. Importa-me que se comporte como um sistema de multiplicação, em que tudo vale na construção do pensamento e da emoção. É uma inteligência de oportunidades infinitas. Gosto de experimentar a vida perseguindo sua amplitude. A poesia é um mecanismo de amplificação.

“Covardia é miserável. Se você vê calado, enquanto seu país caminha para uma ditadura em que uns são legitimados e outros perseguidos pelos motivos mais torpes, você é miserável.”

Em relação ao Brasil, você se posicionou politicamente na época da última eleição (o escritor foi uma das personalidades a assinar um manifesto contra Bolsonaro redigido por artistas, intelectuais e políticos portugueses em outubro de 2018). Recebeu muitos comentários nesse período? Acha que os artistas devem sempre se posicionar politicamente?

Recebi muitos comentários de apoio e considero que toda a gente tem de se pronunciar. Covardia é miserável. Se você vê calado, enquanto seu país caminha para uma ditadura em que uns são legitimados e outros perseguidos pelos motivos mais torpes, você é miserável. No futuro, a memória de sua pessoa será uma porcaria. O futuro vai ter vergonha daqueles que se calaram e permitiram que mulheres fossem humilhadas, que negros fossem humilhados. Na verdade, todas as pessoas estão a ser humilhadas, porque o vexame de uma desumanidade destas atinge o completo sistema moral, atinge a plenitude de sua identidade. Eu ficaria calado diante desse ataque? Não. Opinar tem de ser uma coisa de boa fé. E se alguém ficar ofendido com boa fé tem de ir para a instrução primária outra vez. Com regimes de esquerda ou de direita, é tudo o mesmo asco no que respeita à prepotência. Tudo um asco. Não quero saber se ditadura é de esquerda ou de direita. Ditadura é algo hediondo. Não aceito. Não aceitaria nunca. Autoritarismo jamais.

“A democracia não é o poder da maioria, é o poder de todos. O lugar em que todos vão ser incluídos e respeitados em suas diferenças.”

Como atravessar essa onda de preconceitos e governos autoritários que se espalhou por aí? Por que acha que isso tomou tanta força?

Continuo inspirado na profunda liberdade e cuidado pelos outros. Abomino todos os autoritarismos e lamento que o mundo esteja tão pouco instruído que estes sistemas de preconceito e ódio tenham chegado ao poder. Os imbecis estão a ser eleitos. Como é possível? Fácil. Imbecis vão identificar-se com imbecis.

Uma das tragédias das grandes democracias foi terem esquecido de criar instrução puramente humana, a escola focou tudo em ciências específicas e talvez nos tenhamos todos esquecido de priorizar a elementar ideia de cuidado com os outros. O cuidado, o respeito e a absoluta validade democrática. A democracia não é o poder da maioria, é o poder de todos. O lugar em que todos vão ser incluídos e respeitados em suas diferenças. Não há isso de minoria. Todas as pessoas do mundo poderiam caber numa especificação minoritária em qualquer sentido. O fundamental é que o Direito tem de ser uma dignificação de todas as pessoas. Quem criar exceções neste conceito está a destruir o essencial. O espaço sagrado do que é ser-se humano.

E sobre a ecologia? É algo que também lhe preocupa muito? Como as questões ambientais aparecem em seus livros?

Preocupa muito. Em todos os detalhes vemos o capitalismo desenfreado rasurando o planeta. O planeta vai sendo impedido de sua própria natureza, com a nossa ação interferindo em sua saúde, persistência, esplendor. Nos meus livros vou aludindo a pequenas questões. Não julgo que tenha escrito ainda um livro ponderando profundamente a questão. Talvez o venha a fazer. Mas, enquanto cidadão, sou por Greta Thunberg. Por muitos motivos: porque apela para o cuidado essencial com o planeta; porque tenho uma enorme esperança numa geração futura, e considero magnífico que uma jovem possa representar uma consciencialização assim, mostrando que os jovens não estão perdidos, anestesiados com tantas redes sociais meramente lúdicas, quase infantis, e sem sentido de responsabilidade.

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Ilustrações de Valter Hugo Mãe para o livro Serei sempre o teu abrigo (Porto Editora)

Ainda vive em Vila do Conde? Como é o seu dia a dia? Já está escrevendo um novo romance?

Vivo, sim, em Vila do Conde. Minha família está aqui. Parei de viajar no fim do ano. Em 2019 voei demasiado. Recuso voar tão cedo. A um dado momento, nenhuma viagem justifica que destruamos nossas rotinas com as pessoas que mais amamos. A vertigem de correr o mundo tem de ser interrompida em determinados períodos para não perdermos raízes e não esquecermos que o sentido de tudo está na partilha com quem amamos.

Estou escrevendo um romance. Não entendo a vida das pessoas que não estão concretamente a escrever um romance. Só entendo a vida assim.

Também escreveu o filme Surdina recentemente. Conte um pouco a diferença de fazer algo assim para o cinema. Gostou da experiência?

Havia escrito algumas coisas que foram filmadas, mas o Surdina será o primeiro longa que se faz com uma maior robustez. O Rodrigo Areias é um diretor que admiro muito. O resultado é uma contemplação plástica, uma narrativa simples e bonita acerca de um velho que inventou a morte da mulher que o abandonou. Mantém minha obstinação com a questão da velhice. Não entendo como podemos descurar os velhos. Não entendo. [Nota da redação: descurar = deixar de cuidar, negligenciar.]

“Estes ciclos, grotescos, passam, sim. A paz que existia também não era sinônimo de saúde.”

Por fim, com o mundo assim caótico (governos de extrema direita, desequilíbrios ambientais e sociais), ainda acredita na possibilidade de um mundo melhor? Acha que conseguiremos retornar à civilidade?

Estes ciclos, grotescos, passam, sim. A paz que existia também não era sinônimo de saúde. O capitalismo desregrado estava lentamente a polarizar uns e outros. Já vínhamos caminhando no sentido de as grandes corporações dominarem o mundo através de monopólios que sonham com transformar a inteira humanidade em consumidores compulsivos, gerando riqueza para proveito de uma elite diminuta. O que está acontecendo agora, grotesco como dizia acima, talvez seja essencial para afinarmos, desde logo moralmente, as consciências. O mundo tinha e tem de mudar. Não dá nem para apostar nos maléficos violentos como não dá para confiar nos ingênuos. A informação terá de regressar ao brio, ao combate ao sensacionalismo e todos os populismos, e servir novamente ao sentido pleno da humanidade: cuidar. Eu acredito que gerações mais bravas e brilhantes haverão de chegar. Se nossas gerações estão a falhar, nascerão neste contexto aqueles que lutarão por aquilo que não soubemos lutar ou não soubemos proteger.

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