Como se ensina moda no Brasil?

Para falar de pluralidade e responsabilidade social e ambiental, é preciso mudar a maneira como assunto é abordado nas faculdades e universidades do país.


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Falar sobre educação no quarto país mais desigual da América Latina é um desafio. No Brasil, a maior parte da educação superior é privada: são 2.151 instituições pagas contra 296 públicas, conforme o Censo de Ensino Superior (CES) de 2018. Naquele mesmo ano, havia 8,3 milhões de estudantes matriculados em cursos de graduação. Contudo, apenas 18,1% dos jovens entre 18 e 24 anos estavam nas universidades.

Tais números são reflexo de uma série de políticas públicas implementadas nas duas últimas décadas. Antes disso, a situação era ainda mais grave e excludente. Democratização do ensino e acesso ao ensino superior eram temas centrais na atuação governamental. Foi quando surgiram os sistemas de cotas raciais e de renda, bem como programas como PROUNI, FIES e ENEM. Ações essenciais para aumentar o número de pessoas pobres e negras no ensino superior.

Todas essas conquistas, porém, podem desmoronar. Universidades públicas têm sido atingidas por cortes e congelamentos de gastos, programas de acesso foram reduzidos, colocando em xeque a permanência do estudante, uma vez ingressado na graduação, sem amparo posterior.

Quando falamos sobre o ensino superior em moda, a situação é ainda mais complexa. O atual descaso — e desmonte — pelo qual passa toda o sistema educacional no Brasil pode tornar os cursos de moda ainda mais excludentes do que já são.


O ensino de moda no Brasil

O ensino superior em moda é recente no país. Os primeiros cursos específicos sobre o assunto surgiram vinculados às artes plásticas. A primeira graduação aconteceu só em 1987, na Faculdade Santa Marcelina, em São Paulo. Na década seguinte, novos cursos foram criados, entre tecnólogos com um ensino mais tecnicista para atender demandas da indústria têxtil e do vestuário emergentes, e bacharéis mais elitizados e exclusivos.

Hoje, existem 243 cursos superiores de moda no Brasil, segundo dados do MEC. A maioria é concentrada em São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Paraná e Minas Gerais, e é também de caráter privado. Além disso, existem cursos de nível médio, de curta duração e pós graduações. Mestrados específicos em moda somam apenas dois.

“O ensino de moda no Brasil não está dissociado da maneira como se faz e se edita moda no país – sob uma perspectiva racista”, Carol Barreto.

O curso de moda não tem uma categoria específica para o MEC e normalmente é categorizado como design ou arte. Isso faz com que as formações sejam mais técnicas e industriais, bem focadas no design de produto e vestuário. As grades curriculares das faculdades e universidades são diversas, mas não variam tanto conforme a instituição. Patrícia Barbosa, professora e coordenadora do curso de Design de Moda da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), aponta que os conteúdos mais comuns são história, metodologia científica, modelagem, costura, desenho, programas de computador, e disciplinas relacionadas à matéria-prima têxtil e marketing de moda.

É que boa parte do ensino superior de moda no Brasil surgiu para atender demandas da indústria local. Mas, hoje, que indústria é essa? Em síntese, é aquela que emprega 8 milhões de pessoas — 75% mulheres — e que movimenta mais de 50 bilhões anualmente no país. É também a responsável por gerar 12 toneladas de resíduos têxteis por dia só nos bairros Brás e Bom Retiro em São Paulo (SP), e por facilitar modelos de trabalho análogos à escravidão.

Em sala de aula, tem-se instruído futuros trabalhadores a perpetuar esse sistema problemático ou ou tem-se investido no potencial de mudança e emancipação que ela pode ter?

Para Eloisa Artuso, diretora educacional do Fashion Revolution Brasil e professora de Design Sustentável no Instituto Europeo di Design (IED-SP), ainda se fala pouco sobre isso. A disciplina de sustentabilidade, por exemplo, é escassa nas grades curriculares. Em “Sustentabilidade e Moda no Contexto da Educação”, o pesquisador Felipe Fonseca aponta, por exemplo, que em Santa Catarina – um estado com grande atividade têxtil e um dos que mais concentra cursos de graduação em moda – apenas ⅓ dos credenciados tem incluída a matéria na grade.

As possibilidades de um ensino de moda democrático

“Hegemonia é uma palavra muito boa pra ser usada no ensino de moda.” É o que afirma Jutyara da Rosa, estudante de Moda da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Para ela, o ensino tende a ser precarizado pois não se atenta à diversidade social, tampouco contempla outras narrativas. Para ela, “tudo ainda é muito eurocêntrico”.

A visão é similar a de Natália Scerban. Estudante de Design de Moda na Universidade Belas Artes, em São Paulo, ela diz que suas aulas, embora incentivem a liberdade criativa, ainda têm uma narrativa bem europeia e carece de uma visão mais brasileira. “Falam que o Brasil é um país sem identidade, mas é porque não falamos e contamos nossa história”, ressalta.

Carol Barreto lecionou, nos últimos anos, cursos privados de moda em Salvador e, hoje, é professora adjunta do bacharelado em estudos de gênero e diversidade e doutoranda na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Para ela, é como se houvesse um rolo compressor, “que exige um repertório de semanas de moda estrangeira, com consumo de revista e internet, deslegitimando outras culturas de existência formadas na rua”.

No ambiente acadêmico, o cenário é de complexidades. Embora haja um aumento no número de pessoas negras nas faculdades e universidade — muito por conta de ações afirmativas que devem ser analisadas com a discussão da permanência estudantil e demais emblemas sociais — os espaços de moda podem ser bem padronizados.

Qual é a cor do ensino de moda?

Os cursos de design — categoria à qual moda é normalmente adjunta — são majoritariamente brancos. Dados do CES (2016) mostram que quase 70% dos designers em formação são brancos, outros poucos pardos e pretos, e menos ainda indígenas e asiáticos. Em um país que tem 53% da população negra como o Brasil, isso pode ser um grande revelador do racismo institucional.

Na dinâmica dos cursos, fica bem claro. As grades curriculares, em sua maioria, têm disciplinas de história da moda, da arte e/ou do design, mas estudantes revelam que conteúdos sobre história da África e do Brasil, por exemplo, são abordados de forma insuficiente. Estudar história da moda e não falar sobre pessoas não-brancas é um ponto sem nó. O branco não é um ser o universal e são muitos os pontos da indústria têxtil e do vestuário conectados com a história africana e brasileira — das plantações de algodão, fonte de riquezas e estopim para a Revolução Industrial, suportadas por regimes escravistas, até costureiras negras que marcaram sua época com suas criações de estilo.

“O ensino de moda no Brasil não está dissociado da maneira como se faz e se edita moda no país — sob uma perspectiva racista”, diz Carol Barreto. Enquanto professora, sua experiência sempre foi de pesquisar e desdobrar as disciplinas que leciona sem inferiorizar a si mesma enquanto mulher negra, nem suas alunas.

Eloisa Artuso complementa: “a moda ainda é muito colonizada e não vejo esse debate em sala de aula”. Carol ressalta ainda como a questão sempre é uma escolha direta ou indireta. “Podem não haver livros que falem de pessoas negras, mas tem muita história oral, artigos, pessoas para trazer para sala de aula, curso de extensão e a valorização do docente de notório saber. Percebi que não adiantava ter prática antirracista se minha aula de história só falava de Maria Antonieta, que é o que está nos livros didáticos.”

“Enquanto a gente não criticar a hierarquia da branquitude, não criaremos uma moda brasileira de fato”, Carol Barreto.

A Lei 10.639/03 estabelece o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira como obrigatórios no currículo da educação básica e poderia se estender facilmente ao ensino superior. Contudo, matérias específicas étnico-raciais quase não aparecem nos currículos de moda.

Jutyara da Rosa diz que quando o assunto é abordado, isso é sempre feito de maneira estereotipada. “Quando a gente fala de moda africana, por exemplo, logo vem em mente tecidos de cores primárias, fortes, estampas tribais. Esse pensamento sobre um continente inteiro, composto por vários países e culturas, é limitado. Como mulher negra, me sinto prejudicada, porque é muito difícil ver meu perfil representado dentro dessa grade, senão apenas como referência de moda”.

Carol Barreto enxerga isso como “invisibilidade estratégica”. “Onde está a contratação da professora negra para ministrar história da moda? Como racializar as áreas de conhecimento?”, questiona.

A borracha, na verdade, precisa apagar narrativas condicionadas. Trazer a perspectiva indígena, afro-brasileira, africana e decolonial é fundamental, não só para evidenciar a qual custo o Brasil e a indústria têxtil e da moda se ergueram, mas, principalmente, para mostrar outras tantas histórias. As matérias de caráter racial — e a racialização de toda a grade, referências, trabalhos — não é para dizer que pessoas negras africanas foram escravizadas, mas, sim, para dizer que pessoas negras africanas, indígenas e afro-brasileiras têm diversas histórias que devem e merecem ser contadas.

Dar lugar ao novo: o papel de estudantes

O discurso de uma moda atenta a questões sociais e ambientais cresceu nos últimos anos. A afirmação converge com a fala de todas as entrevistadas. Todas sinalizam a mudança partindo principalmente dos estudantes. Novas pautas sobre questões raciais, pluralidade, sustentabilidade e gênero têm sido trazidas com mais veemência por eles.

Além da presença e voz estudantil ser cada vez mais visível e necessária, a mobilização também é. Jutyara Da Rosa é também diretora geral do Centro Acadêmico de Moda (CAMO) da UDESC. Para ela, o movimento estudantil é de extrema importância, pois amplifica a voz dos estudantes junto de suas demandas. “Quando a gente percebe o nosso poder, tudo muda”. A luta é recente — o CAMO foi criado em 2016 — e a principal pauta é a permanência estudantil. “A gente entende que permanência não é só o estudante ter o que comer e onde morar, vai além”, continua.

Em paralelo, a atuação dos docentes e coordenação também é fundamental. São eles quem implicam diretamente na formação dos estudantes. Eloisa Artuso elenca outro ponto importante: a (des)valorização de professores. “O trabalho do professor é pouco valorizado; cada atualização você precisa estudar, ter novas referências, etc., mas você é pago apenas por sua hora aula e não recebe por todo trabalho de pesquisa, bagagem, experiência.” Por isso, é necessária a união de todos aqueles que são integrantes do ensino: docentes e discentes.

É possível ensinar moda à distância?

A discussão sobre o Ensino a Distância (EaD) ganhou holofotes com a pandemia do novo coronavírus. As medidas de isolamento social suspenderam aulas presenciais e, hoje, boa parte das instituições já retomaram suas atividades de forma online.

Eloisa pôde adaptar suas aulas para o âmbito digital, o que foi facilitado pelo caráter teórico e pouco prático de sua matéria. Mas há quem sinta dificuldades em se adaptar ao formato. “As aulas à distância têm sido difíceis para mim, pois não tenho estrutura na minha casa para fazer uma simples modelagem, por exemplo”, diz Natália Scerban.

Os cursos de moda exigem determinados equipamentos, como máquinas de costura e mesas de corte. Nesse sentido, a aprendizagem e absorção do conteúdo podem ser fragilizadas sem as aulas físicas e estrutura complementar.

As aulas na UEMG voltaram remotamente dia 27 de julho, por meio de plataformas digitais como o Moodle ou Teams. “Neste momento, estamos oferecendo apenas as disciplinas teóricas e algumas práticas que o professor considerou possível de serem ofertadas mesmo que remotamente”, conta Patrícia Barbosa. Na Universidade do Estado de Santa Catarina, o cenário é semelhante, mas a decisão foi tomada a partir de um “canetaço” do Reitor e, desde então, enfrenta relutância do corpo acadêmico, pois não foi deliberada pelo Conselho Universitário.

O CAMO não compactuou com a medida e, depois de assembléias e debates, foi decidida uma paralisação para exigir o respeito à democracia da comunidade e, em especial, para que as disciplinas práticas do curso não fossem lecionadas de forma remota. “Tudo bem voltar o ensino, mas que volte de forma acessível e inclusiva para todos; não é justo uma aluna, no meio da pandemia, ter que fazer uma vaquinha pra comprar um computador para poder ter aula”, comenta Jutyara.

Afinal, o que não pode faltar em um ensino de moda?

Ensinar moda — e qualquer outra coisa — não é tarefa fácil. Tampouco há verdade absoluta para a resposta do enunciado. Abordagens, referências e estruturas curriculares precisam abranger questões interseccionais para a construção de um sistema de moda diferente, para além da formação técnica e conteudista. “Enquanto a gente não criticar a hierarquia da branquitude, não criaremos uma moda brasileira de fato”, pontua Carol Barreto.

Para Jutyara, “moda é possibilidade”. E se existe a possibilidade de ensinar diferente, por que não fazer? Pensar em uma educação libertadora é pensar em uma moda libertadora. Projetar tecidos com menor impacto ambiental, processos mais eficientes, metodologias de produção inovadoras são apenas alguns exemplos. É preciso projetar novas mentalidades e novas formas de trabalhar, consumir, viver. É necessário deixar de tratar a educação e pessoas como mercadoria.

É preciso ensinar a humanizar a vida. É resgatar a memória de que pessoas são pessoas. A moda é sobre pessoas, feita de pessoas para pessoas. Então, a forma que se ensina moda não pode se deslocar, jamais, da humanização da vida neste trânsito.

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