Me vejo em você

A fotógrafa Rafa Kennedy descobriu a profissão e a identidade trans não binária por meio dos cliques. Hoje, ela usa a sua câmera como ferramenta para revelar trajetórias parecidas com a sua.


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É tentador pensar a história dessa fotógrafa se o seu lugar tivesse sido dentro da universidade e não à margem dela. Foi andando em paralelo à educação formal, porém, que Rafa Kennedy, 26, conheceu a si mesma, os movimentos negro e estudantil, o acolhimento, a coletividade travesti, além de sua própria profissão.

Natural de Manaus, ela vive há oito anos em Campinas, no interior de São Paulo. Foi lá que descobriu e registrou outras gatas, como gosta de chamar as companheiras trans e travestis. Elas todas passaram pelo ateliê TRANSmoras, coletivo do qual Kennedy faz parte e viu nascer, ao lado de Vicenta Perrotta — a estilista da Casa de Criadores, com um trabalho excepcional no fortalecimento criativo e profissional de pessoas trans.

Marli Ferreira, Dyony Moura e Darnele Valentim por Rafa Kennedy para Trash Real Oficial

Marli Ferreira, Dyony Moura e Darnele Valentim por Rafa Kennedy para Trash Real OficialFoto: Rafa Kennedy

Na última edição do evento, a de número 48, Rafa foi convidada para fotografar e filmar as apresentações das marcas Ellias Kaleb, Trash Real Oficial, Leandro Castro e o show do quarteto de música eletrônica Teto Preto. Para enaltecer o movimento do qual faz parte, levou consigo uma equipe formada por transmasculinos. São eles: Pedro Jorge Atrop e a dupla por trás da produtora Xisgênera, Bernoch e Rafael Tayslan.

Abaixo, você confere o relato que a artista e fotógrafa deu à ELLE sobre a sua trajetória pessoal e profissional:

“Fui criada pela minha mãe, via o meu pai em alguns finais de semana, mas passava a maior parte do tempo com o meu avô do coração, o Simão. A minha mãe é manicure e eu cresci em um ambiente de sobrevivência, no bairro do Coroado, em Manaus, dentro de uma casa que também era bar, venda de churrasco e já foi até açougue.

Na adolescência frequentei a igreja evangélica, porque a igreja, dentro dos bairros periféricos, cumpre um papel importante, quer você queira ou não. Ela é um espaço onde muitas pessoas encontram conforto, cultura, arte e lazer mesmo que dentro de uma relação possivelmente alienante. Na igreja, eu fui dançarina, o que a gente chamava de levita.

Anis Yaguar e Sum\u00e9 Aguyar por Rafa Kennedy e com dire\u00e7\u00e3o de Manauara Clandestina

Anis Yaguar e Sumé Aguyar por Rafa Kennedy e com direção de Manauara Clandestina Foto: Rafa Kennedy

Eu era uma criança viada, que crescia e já percebia o seu corpo de um jeito diferente. Um dia, todos saíram da igreja e eu fiquei lá sozinha, trancada. Olhei para as cadeiras vazias e comecei a dançar. Dancei como as meninas, como se eu fosse uma bailarina. Dancei, dancei, dancei, pulei. Foi um momento bonito, porque a gente cresce com esse enrijecimento de ser garoto. Depois daquilo, percebi que a igreja não me recebia por completo.

Depois, mudei para o bairro do meu pai. Vivi com ele no Alvorada. A relação era carinhosa, e ele me dava liberdade para aprender a crescer: podia sair, beber, pegar porre. Construí um círculo de amizades e percebi ainda mais que não era como os garotos. Só que sempre vinha uma sensação ruim no peito de que eu poderia causar vergonha para a minha família. Existia apenas uma saída: deixar aquele lugar.

Manaus é bela e de uma cultura linda, mas a gente cresce sem muita perspectiva por uma série de desinformações. A sistemática é a de que você não pense no futuro e seja parte da engrenagem do polo industrial. Eu saí do ensino médio sem a menor ideia do que gostaria de fazer. Não tinha perspectiva de entrar em uma universidade ou construir uma carreira. Mas, nessa época, conheci uma pessoa que vivia algo parecido e com quem eu comecei uma relação. Ela me jogou a proposta de acompanhá-la para o interior de São Paulo.

Foi em frente ao Teatro Amazonas que ela me perguntou o que eu gostaria de fazer da vida. Só aí eu lembrei da minha relação com a fotografia. Sempre tive esse lance com o registro, fazia autorretratos, registrava minha família e os meus amigos. A fotografia era a desculpa para eu ir, mas também uma vontade verdadeira de exercer uma profissão.

Luara Souza por Rafa Kennedy

Luara Souza por Rafa KennedyFoto: Rafa Kennedy

Meu pai achou que eu estava brincando mesmo reconhecendo que eu me jogo nas minhas loucuras, mas a minha mãe sempre soube que, uma hora ou outra, eu ia voar, conquistar algo maior. Com o pouco que ela tinha, me ajudou a comprar a passagem. Assim, cheguei a cidade de Engenheiro Coelho, onde a pessoa com quem eu me relacionava começou a estudar na UNASP, a universidade adventista de lá. Vivi com ela e sua prima por três meses, enquanto procurava alguma possibilidade de moradia e trabalho em Campinas.

Consegui uma entrevista de emprego em uma lanchonete que estava prestes a abrir no Parque Dom Pedro, em Campinas. Na busca por moradia, estava disposta a tudo. Vi um anúncio de uma república de estudantes da Unicamp – aluga-se sofá, dizia –, e eu nem sabia o que era uma república. Mas custava 100 reais por mês e era exatamente o que eu precisava. Peguei o emprego e fechei o lugar para morar. Foram três meses de sofá.

Enquanto trabalhava, não desisti da fotografia. Entrei como suqueira na lanchonete, produzindo sucos, depois, passei a embalar lanches. Mais tarde, entrei para a cozinha e, na sequência, fui para o caixa até virar a coordenadora da loja. Um ano depois, enfim, consegui fazer o meu curso básico de fotografia.

Consegui comprar a minha câmera também. Estava empolgada, e uma das professoras viu isso em mim. Ela me sugeriu que eu entrasse para o curso técnico, e me especializasse ainda mais.

Custava um tantão, e decidi que faria nem que precisasse comer apenas ovos. Eu costumava pegar carona com meu chefe, e ele sabia desse meu desejo. Um dia, ele me chamou para conversar e me ofereceu o tal curso. Eu poderia pagar aos poucos, enquanto trabalhava na lanchonete. Foi o que rolou: estudava de manhã e trabalhava à tarde e à noite. Foi intenso, mas não deitei. Fiz o babado acontecer e me formei.

Rosiwelt Rosa Cascawelt por Rafa Kennedy

Rosiwelt Rosa Cascawelt por Rafa KennedyFoto: Rafa Kennedy

Em 2016, estava exausta desse esquema, mas o meu chefe foi foda de novo e me deu as contas. Disse para eu seguir a minha carreira e que, se fosse necessário, as portas estariam abertas para eu voltar.

Vivi com o seguro desemprego e, finalmente, me conectei com a cidade e as pessoas ao meu redor. Neste momento, eu estava em outra república. E eis que um dia chega para morar lá uma gata travesti. Tive uma forte conexão com ela, fomos juntas aos bares até que um dia dei de cara também com Vicenta Perrotta. Olhei para aquela pessoa e me perguntei: gente, quem é essa careca?

Eu já vinha em um processo antigo de deslocar a dureza que impunham sobre o meu corpo. Mas quando conheci Vicenta, tudo fez sentido para mim. Passei a frequentar o ateliê de Vicenta, gata foda demais. Ela sabe muito bem como puxar outras manas. Conheci muita gente por meio dela, como a Carmem Sousa, líder da ocupação feminista que hoje é a Comunidade Menino Chorão. O Carlos Poblete, que fotografa drag e com quem eu montei a Bapho Produções, para fazer vídeos de eventos. E a Manauara Clandestina. Quando ela se apresentou para mim, disse que era a manauara, e eu respondi que também era. Ela me explicou em seguida que aquele era o seu nome. Rimos muito e nunca mais nos desgrudamos.

Eu já fazia fotos de eventos da universidade. Em 2016, por exemplo, em meio a ocupação da reitoria da Unicamp, me aproximei do Movimento Estudantil. Aprendi e defendi pautas como a permanência estudantil, a ampliação da moradia universitária e as cotas raciais. Sou uma das poucas gatas que fotografou a primeira marcha antirracista da universidade. A aproximação com o Movimento Negro me fez perceber que sou racializada. Entendi que já passei por vários processos de racismo, sim.

Albert Magno por Rafa Kennedy

Albert Magno por Rafa KennedyFoto: Rafa Kennedy

Mas, depois, fui me abrindo para experiências fotográficas mais autorais. Um dos primeiros ensaios que fiz foi o Margem, sobre a marginalização do corpo travesti. Me compreendi como pessoa trans, enquanto fazia retratos de travestis que conheci e passaram pelo ateliê da Vicenta. Levava essas garotas para a luz do sol, clicava elas na luz natural.

Vicenta é workaholic, mas sempre teve muita demanda. Eu fui me enfiando em seu ateliê. Varria, respondia e-mail e a gente conversava muito. Até que, em 2017, entendemos que aquilo tudo era um coletivo, o TRANSmoras. O trabalho da Vicenta sozinha existia desde 2013, mas evoluiu para que isso pudesse acontecer, para que se tornasse uma construção de base de coletividades. Viramos este espaço de discussão de gênero e raça, tocando eventos dentro e fora da universidade, gerando conhecimento e educação travesti. Não fazia sentido a gente não ser respeitada. Fizemos a primeira semana trans da Unicamp. Participamos da primeira marcha LGBT de Barão Geraldo. E a minha fotografia registrou isso tudo.

Em 2018, Karlla Girotto convidou Vicenta para uma residência artística na cidade de São Paulo, dentro da Casa do Povo, que culminou em um desfile. De lá, ela foi chamada para fazer Casa de Criadores. Enquanto isso, eu fiquei no ateliê sozinha e segui em busca de emprego em centros culturais para tentar me manter. Só então percebi que todos aqueles lugares são mantidos por editais. E a gente perdendo tempo, produzindo conhecimento e não ganhando um centavo. Meu cu pegou fogo e fui atrás de aprender a escrever edital. A Unicamp estava com um aberto para programas voltados à comunidade, exatamente o que a gente fazia há anos, mas de forma independente. Fui atrás de uma professora para formalizar tudo e fomos aprovadas. Criamos o primeiro evento formal vinculado à universidade, com direito a Erica Malunguinho e Erika Hilton como convidadas. O caldo engrossou e validou o que a gente vinha construindo.

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Os desfiles da Vicenta foram poderosos e eu ajudei na produção. Fizemos, por exemplo, o Travesti Viva, porque somos vida, arte e muita coisa além da morte. Na apresentação de A Santa Quelly da Silva, homenageamos uma mana que foi morta em Campinas. A história é horrorosa, a assassinaram e colocaram uma santa dentro do seu peito, mas é também simbólica de como a educação está socialmente dada. Essa é a normalidade, principalmente entre aqueles que não têm a oportunidade de questionar. Um homem preto foi preso e uma travesti preta foi morta nessa história. Já na coleção Brasil Campeão Mundial de Travestis, nos inspiramos no jornal Lampião da Esquina, criamos um álbum de figurinha com imagens delas, nos apropriamos das cores da bandeira nacional e até inventamos uma edição impressa própria.

Em 2020, chegou a pandemia. O TRANSmoras é um espaço multiplicador. Aumentamos a nossa rede mesmo com dificuldades. Naquele ano, também me voltei mais para o meu trabalho como fotógrafa. Olhei para os registros que fiz as primeiras edições e curadorias desse material. Assim comecei a entender as minúcias do meu trabalho. O que eu estou dialogando, apesar de não necessariamente falar. Vejo que é muito natural para mim fotografar essas corporeidades. Eu quero colocar essas belezas travestis para o mundo ver.

Manauara Clandestina por Rafa Kennedy

Manauara Clandestina por Rafa Kennedy Foto: Rafa Kennedy

Busco uma naturalização do corpo travesti. Por isso, elas estão na natureza. Quando falamos que estamos disputando espaços imagéticos, é porque o desejo e a repulsa é formado pela imagem que você tem de algo. E a travesti sempre esteve no escuro, na margem, no lugar não visto.

Quando coloco uma travesti ao lado de uma árvore, sob o céu, lembro que o nosso corpo também é natureza. A nossa identidade é nossa, nascemos assim. A sua repulsa vem do desconhecido, do que você não vê. Penso que é impossível o meu trabalho não passar por esse lugar. Tenho que passar por elas. Sou filha delas. Só existo porque elas existem e sempre existiram. Se há alguma pirâmide de violência, as travestis estão com os seus peitos de silicone e aquele corpo bonito pra caralho bem na ponta. Sem deitar. De frente. E belas. Gargalhando. Sendo um corpo que projeta possibilidades infinitas. Acontecem, apesar de tudo”

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