De onde vem o ouro da joalheria brasileira?
Com um sistema extremamente fragmentado, uma cadeia opaca e sem métodos de rastreabilidade eficazes, saber a procedência desse minério pode ser uma missão árdua em território nacional. Mas o que pode (e deve) ser feito?
Que o Brasil tem um solo rico em minérios, nós já sabemos, e a história da colonização está de prova. Mas o que começou com pequenos grupos de garimpeiros peneirando a terra à beira rio, hoje, se tornou algo de escala industrial. Essa evolução, contudo, não é tão simples ou positiva como parece. O processo de extração de metais e pedras preciosas é longo, bastante complexo e muito fragmentado. Por isso mesmo, é também um setor em que transparência, rastreabilidade e fiscalização são conceitos nebulosos, muitas vezes fraudulentos e até inexistentes.
E quando se fala sobre o ouro garimpado em território nacional, mais ainda. Boa parte das joalherias, que são compradoras e vendedoras ao mesmo tempo, ainda encontram dificuldades para se adequar aos padrões de responsabilidade ambiental e social cada vez mais em pauta.
”Qualquer pessoa que comprar ouro de garimpo, hoje, não tem a mínima garantia de onde ele veio”, diz a doutora em Minas e Energia e gerente do Instituto Escolhas Larissa Rodrigues. Explicamos: o ouro garimpado, quando sai da terra, não pode ir direto para uma joalheria. E quem diz é a Constituição Federal: todos os recursos minerais são de propriedade da União. Conforme os artigos 176 e 231 da carta magna, toda a atividade de mineração requer licenciamento ambiental concedido pelo Congresso Nacional e com consulta prévia às comunidades envolvidas ou impactadas. O metal precioso também não pode ser extraído de terras indígenas e de unidades de conservação ambiental. Se for, torna-se um ouro ilegal.
Garimpo no Brasil: das 111 toneladas de ouro exportadas pelo país em 2020, 19 foram sem registro de origem ou autorizações.Foto: Getty Images.
Um dos principais problemas é essa enorme fragmentação do sistema. Principalmente quando a regulamentação, compra e venda é feita por meio de uma Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários (DTVM), uma espécie de fornecedor. Em síntese, as DTVMs são empresas pertencentes ao sistema financeiro e autorizadas pelo Banco Central a atuar na aquisição e distribuição dos metais que vem dos garimpos. Todo ouro garimpado deve ser registrado em alguma delas para ser comercializado legalmente.
”Quando o garimpeiro tira o ouro de algum lugar e encaminha para a venda, não existe controle. Ele apresenta o minério e deve preencher um formulário, de papel, afirmando de onde extraiu ou não”, explica Larissa. ”Por exemplo: o garimpeiro vai com dez gramas de ouro e preenche as informações com seus dados pessoais e sinaliza que extraiu de área X, mas ninguém verifica se essa área é legal ou não, ou se a informação procede”, continua ela. Após a conclusão da transação entre garimpeiro e DTVM, o ouro está livre e, em tese, certificado para circular pelo mercado livremente. “Por isso, toda joalheria que compra de uma DTVM não consegue garantir a origem do material”, afirma Larissa.
Um exemplo recente dessa falta de rastreabilidade é o caso da H.Stern, levantado por uma série de reportagens da Repórter Brasil. A joalheria carioca, fundada em 1945, é citada nas investigações do Ministério Público Federal sobre transações ilegais do minério proveniente da Terra Indígena (TI) Yanomami, que teriam sido realizadas pela DTVM Ourominas. Conversas interceptadas pela PF indicam que a Ourominas forneceu ouro à H.Stern. Contatada pela reportagem de ELLE, a marca de joias disse que não havia um porta-voz disponível no Brasil para responder às perguntas sobre sua cadeia produtiva.
O problema, como já dá para induzir, não é exclusivo da joalheria do Rio de Janeiro. Pelo contrário, é bastante comum, ainda que pouco discutido no mercado. A reportagem de ELLE entrou em contato com as cinco principais DTVMs do mercado – COLUNA DTVM, Ourominas, Carol DTVM, Parmetal e D’gold –, mas não obteve resposta até a publicação desta matéria.
O garimpo e as DTVMs, no entanto, não são as únicas fontes de ouro. Existem mineradoras regulamentadas, que representam a maior parcela extratora do minério, e podem oferecer uma garantia melhor da origem do material. Entretanto, a pesquisadora Larissa destaca que ”isso não quer dizer que as minas estejam livres de problemas, apenas que é mais fácil controlar (a procedência), pois elas têm a produção própria.”
A maioria dessas mineradoras está instalada em Minas Gerais e representam, segundo Larissa, cerca de 76% do ouro extraído no país. Os 24% restantes provém do garimpo, concentrados na região da Amazônia, com destaque para o Pará. Da produção total de ouro no Brasil, 12% vem dos garimpos do estado, conforme registros na Agência Nacional de Mineração (ANM), sendo que os valores do garimpo ilegal nem sempre estão contabilizados.
Ainda de acordo com a Agência, o Brasil produziu 121,5 toneladas de ouro em 2020. Os principais destinos desse montante são as instituições financeiras, a indústria joalheira e a tecnológica, e a exportação. Esta última, aliás, consome a maior parte do minério extraído no país, o que também revela problemáticas.
Uma reportagem da BBC, de 2019, mostra que, naquele mesmo ano, o ouro se tornou o segundo maior produto de exportação de Roraima, mesmo sem haver uma única mina atuando legalmente no estado. Fato semelhante ocorreu em 2020: das 111 toneladas de ouro exportadas pelo Brasil, 19 foram sem registro de origem ou autorizações (Instituto Escolhas).
O intenso desmonte de políticas públicas que protegem, ou tentam, as terras indígenas e unidades de conservação só piora a situação. Projetos de lei para regularizar a prática transitam no congresso com o apoio do presidente Jair Bolsonaro, que nunca escondeu seu favorecimento. ”O que vimos nos últimos tempos é um governo a favor do garimpo, que recebe os garimpeiros no planalto”, comenta Larissa.
O caso mais recente é o marco temporal, que está em votação no Supremo Tribunal Federal (STF) nesta quinta (26.08). A proposta estipula que as terras indígenas são passíveis de demarcação apenas se o povo originário estava ocupando-a no dia da promulgação da Constituição vigente, 5 de outubro de 1988. Considerado um genocídio por pesquisadores e comunidades, o texto parte de uma ação sobre as TI Xokleng, em Santa Catarina, movida pelo governo do estado.
A articulação reuniu mais de seis mil indígenas em Brasília, que dizem não ao marco temporal sob o mote ”#LutaPelaVida”. Caso a decisão seja favorável ao parlamento catarinense, ela será a diretriz para casos subsequentes. Isso fragiliza ainda mais os direitos dos povos originários e a preservação de terras indígenas, já ameaçadas pelo garimpo ilegal que só aumenta.
Segundo o Instituto Escolhas, o ano de 2020 registrou recorde de pedidos na ANM para explorar ouro em terras indígenas ou em unidades de conservação. São mais de 6,2 milhões de hectares de terras ameaçadas, sendo que aproximadamente 1,2 já foram desmatados em detrimento da mineração entre 2005 e 2015. Órgãos responsáveis por fiscalização e monitoramento, como INPE e IBAMA, também diminuíram sua atuação.
O impacto não é sentido apenas na natureza. Existe a contaminação por mercúrio, químico utilizado pelos garimpeiros na separação do ouro. Ele permanece nas águas e solo, causando danos à saúde de moradores locais, comunidades indígenas e ribeirinhas e dos próprios profissionais do garimpo. Um estudo da Fiocruz e do Instituto Socioambiental (ISA), de 2016, revelou que, em algumas aldeias Yanomami o índice de pessoas contaminadas por mercúrio chegava a 92%.
No quesito socioeconômico, boa parte dos garimpeiros estão em situação de vulnerabilidade social, e Larissa afirma que ”a extração de ouro na Amazônia não traz desenvolvimento significativo”, como constatado em pesquisas recentes do Instituto. Pelo contrário, o contexto é repleto de violência, condições precárias de trabalho e baixa remuneração.
E o que isso tem a ver com o mercado de joias nacional?
Joalherias não têm permissão legal para comprar ouro direto da fonte, ou seja, do garimpo. Como já dito, é necessário um agente intermediário: um fornecedor, sejam as DTVMs, mineradoras ou refinarias. Contudo, a terceirização não pode nem deve ser excludente de responsabilidade na manutenção e incentivo a práticas ambiental e socialmente responsáveis. Ainda mais em um mercado que movimenta 330 bilhões de dólares por ano.
E algumas marcas já perceberam isso. A Vivara, maior rede de joalheria do Brasil, fundada em 1962, afirma que seu ouro é proveniente de minas brasileiras da região de Minas Gerais e Goiás. Eles compram exclusivamente da AngloGold Ashanti Brasil, que produz 15% do ouro extraído pela companhia globalmente. A multinacional afirmou à ELLE que vende apenas para a Vivara e isso corresponde de 3 a 5% da sua produção total.
”Trabalhamos com foco na economia circular e com o ouro obtido da renovação de joias de nossos clientes”, diz Otavio Lyra, CFO da Vivara. Segundo o executivo, desde 2020, existe um Código de Conduta de Fornecedores, são realizadas auditorias, fiscalizações e checagens de reputação no processo de homologação dos fornecedores diretos.
A H.Stern informou via e-mail que, desde 1975, realiza a ação de reaproveitamento do ouro dos clientes, os chamados Trunk Shows. O evento costumava acontecer com datas marcadas em cada loja do país, para que os consumidores levassem suas joias e pensassem, em conjunto, na construção de novas peças. A partir de 2020, no contexto pandêmico, a ação passou a valer continuamente.
Carla Amorim, joalheria atuante desde 1993, comprava de DTVMs até meados de 2013, mas atualmente só adquire de mineradoras e refinarias. Em entrevista, a diretora da marca, Kelly Amorim, diz que procuram realizar visitas às minas e que a empresa utiliza algumas certificações internacionais.
Fernando Jorge, fundada em 2008 e focada nas vendas de atacado internacional, diz que, atualmente, só compra o ouro de uma refinaria de um grupo belga operante em Manaus, chamado Umicore. A reportagem de ELLE tentou contato com a empresa, mas não obteve retorno. Renata Jorge, sócia de Fernando Jorge, diz que transparência sempre foi algo buscado pela marca, mas difícil de atingir, dada a falta de rastreabilidade e fiscalização do ouro. Eles já iniciaram projetos com organizações do setor, mas não houve continuidade por parte das instituições.
”Acho que não vamos conseguir acabar com a extração de ouro no mundo e sempre foi uma frustração, para nós, não encontrar uma solução na origem do problema. E sempre haverá impacto. Também nunca foi suficiente pensar só em reciclagem, ninguém joga o ouro fora”, compartilha Renata, ao afirmar que vê cada vez mais marcas e consumidores questionando o mercado.
Assim como em outras áreas, o tratamento e poder de atuação variam muito de acordo com o tamanho das marcas. Grandes e médias empresas têm maior poder de negociação e conseguem realizar compras mais facilmente com mineradoras e refinarias, que por sua vez podem garantir certa rastreabilidade e transparência. Estas normalmente exigem um pré-cadastro, volume maior de aquisição e têm processos mais longos ou burocráticos. Para os pequenos negócios, as alternativas se resumem às DTVMs ou reutilização do ouro de pessoas físicas, clientes ou não.
É o caso da marca gaúcha Eduarda Brunelli, em que a produção é enxuta e, às vezes, sob demanda. Ela diz que se considera ”uma consumidora de ouro” e acreditava que comprar de uma DTVM, que oferece nota fiscal e seguro, era sua ”comprovação de um metal rastreado, puro e dentro da lei”. Com o tempo, percebeu que isso não é garantia, mas diz ainda não ter estrutura para comprar o metal de outra forma. Atualmente, Eduarda compra da DTVM Ourominas.
Livia Bassi, joalheria paulistana, tem um sistema de reutilização de matéria-prima e, por isso, compra menos ouro de empresas. Quando o faz, é da Parmetal, uma DTVM. A empreendedora também pensava que ter a nota fiscal era uma garantia, mas viu que ”entre a extração da natureza e a nota existe uma longa história, e o minério pode ter sido extraído ilegalmente.”
Na Iracema, marca de São Paulo, sua fundadora Mariana Gouveia afirma que também compra de uma DTVM, mas tem investido nos processos de circularidade e incentiva as clientes a utilizarem seu próprio ouro. Para ela, a questão da cadeia produtiva do minério é complexa, ”porque as empresas não abrem seus processos, não é algo transparente e acabamos ficando reféns do mercado”.
Já Lívia Basile, que fundou a Mamacoca em 2012, compra seu ouro apenas de clientes ou de pessoas físicas, justamente porque diz entender os problemas da cadeia do ouro. Dessa forma, ela, que sempre gostou da joalheria pelo seu princípio alquímico, acredita minimizar os impactos socioambientais. ”Onde ele estava antes não sei, mas garanto que não precisou sair da terra para virar uma peça nova”, explica.
A responsabilidade e os desafios das joalherias
O setor privado, como uma parte atuante e muitas vezes beneficiária do ouro, tem responsabilidades. Contudo, algumas marcas sequer sabem como funciona a cadeia do minério. Outras escolhem ignorá-la. Felizmente, existem aquelas que se interessam pela pauta e dizem buscar práticas de compra e produção mais éticas.
Lívia Bassi afirma que compartilha informações sobre o metal com sua rede de seguidores. Para ela, o consumidor deve cobrar e colocar pressão nas instituições equivalentes. A visão é consonante com a de Lívia Basile, da Mamacoca, que acredita que as joalherias precisam educar seu público, não parar de pesquisar sobre o tema e criar uma rede coletiva para demandar mudanças.
”Indico se juntar aos seus semelhantes, conhecer outros joalheiros, conhecer as refinadoras, comprar ouro que já existe. Precisamos fazer pressão no ambiente privado e cobrar das corporações, pois elas quem influenciam as campanhas presidenciais”, diz Basile.
Como um impeditivo para utilizar uma matéria prima de origem confiável, Eduarda Brunelli cita a falta de transparência. ”Me considero uma marca que busca os procedimentos corretos, responsáveis. Mas não consigo ir na empresa que extrai ou me vende o ouro para ver o que acontece, não temos esse acesso”, compartilha. ”É um problema maior do que uma única empresa, está enraizado no mercado.”
Kelly Amorim diz concordar. Segundo a diretora, a informalidade do mercado de joias brasileiro é um aditivo para a falta de rastreabilidade. Ela acredita que comprar de uma DTVM é o caminho mais fácil, mas não a melhor opção. ”Economicamente parece vantajoso, pois é mais barato, mas a que custo? A cadeia é longa, se um comprador de ouro ilegal acha que pode se apresentar como um produto que tem valor, eu não vejo dessa forma.”
O garimpo ilegal só existe, continua Kelly, pois tem um comprador final. Ela ainda destaca que para pequenas marcas saírem dessa dinâmica o caminho é mais tortuoso. ”Quem tem mais dá mais. No início, os menores compram de DTVM, mas, conforme você vai avançando no mercado, sua responsabilidade é maior”, acredita. Como conselho para as joalherias, ela diz: ”todos devem vigiar seu voto e ficar atento às causas que levanta. É um processo de consciência, mas é impossível que a ilegalidade se perpetue.”
Como pesquisadora, Larissa diz que as joalherias precisam se fortalecer como classe, para cobrar dos órgãos necessários o rastreio e a fiscalização. Entretanto, afirma não ver tal movimentação e diz que ”estamos longe de ter uma consciência de como é importante adquirir ouro legalmente”. Esse foi um dos impulsos para o Instituto Escolhas criar um projeto de lei, protocolado em março deste ano no Senado, que desenha um sistema de rastreabilidade do minério. Para conhecer e apoiar, acesse aqui.
”Enquanto não houver um sistema como esse, não poderemos saber de onde vem o ouro e não teremos como combater as fraudes”, continua ela. A necessidade da transição para os sistemas digitais nas transações do ouro desde o início da cadeia, junto a um sistema de rastreio, são alguns dos pontos chave elencados pela pesquisadora para acabar com a ilegalidade. Ela acredita que é preciso unir forças entre sociedade civil, organizações e empresas privadas para impulsionar e fazer pressão para que tais etapas sejam efetivadas.
É possível produzir de maneira sustentável?
Qualquer atividade extrativista, legal ou ilegal, impacta a natureza e as comunidades de pessoas ao seu entorno. O que existem são discussões acerca da finalidade da extração, dada à crise climática iminente, ou se é possível minimizar as consequências por meio de procedimentos como licenciamento correto ou compensações ambientais.
No caso das joalherias, a reutilização pode ser apontada como uma alternativa de produção mais responsável, já que não extrai o minério diretamente da terra. É a solução utilizada por muitas marcas que levam a sustentabilidade como bandeira, inclusive. Outra possibilidade para remediar o impacto seria adquirir o ouro apenas de minas, sem intermediários, mas é algo que também gera consequências negativas.
Na tentativa de oferecer uma garantia sobre seu metal, muitas joalherias recorrem aos certificados. No Brasil, porém, eles praticamente não existem. Larissa desconhece algum nacional de procedência do ouro. Todos os utilizados por marcas brasileiras são internacionais. Responsible Jewellery Council (que tem a Vivara como única contemplada brasileira), a Responsible Minerals Initiative (RMI), a London Bullion Market Association (LBMA), a Initiative for Responsible Mining Assurance (IRMA), a Swiss Better Gold Association, a Fairtrade Foundation (Reino Unido), a World Fair Trade Organization, só para citar alguns. O problema das certificações é que você, normalmente, não vê as operações. O consumidor e as marcas podem ficar sujeitos a acreditar, ou não, que as informações são verídicas.
De novo, é questão de transparência, rastreio, fiscalização e cobrança. Essas ações, mais do que reciclar ou inserir boas práticas esporádicas, são o caminho contundente para que a indústria joalheira assuma seu papel, mas lhes falta articulação enquanto setor comprador e vendedor de ouro. Ainda existe muito minério, selado pela ilegalidade e desmatamento, ocupando uma parcela grande do mercado e das joias que vemos nas vitrines ou feeds por aí. E isso é um problema de todos nós, de consumidores à cidadãos, de empresas pequenas até grandes, se nos preocupamos realmente em manter os direitos dos povos originários, a preservação ambiental e a defesa dos direitos humanos.
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