Intimidade não é para poucos

Por baixo de vestidos, gravatas e saias, pulsa a urgência da roupa íntima não-binária.


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Colagem: Mathea Biu Xa



É um tanto recente – e bastante tardio – o debate sobre exclusividade binária na moda. Foi só de alguns anos para cá que vimos marcas e profissionais abordarem o assunto de forma mais enfática e, aos poucos, tomarem algumas atitudes em prol de uma representação mais abrangente no que diz respeito à identidade de gênero. Contudo, apesar dos avanços tímidos, um setor em particular permanece às margens do assunto: o underwear.

Nos últimos anos, vimos uma revolução bastante intensa na área. Houve uma quebra de padrão muito perceptível desde a era em que a Victoria’s Secret era a única e principal referência quando o assunto era lingerie: tamanhos mais inclusivos, novas modelagens, cores e tecidos são apenas alguns pontos, com mil e um desdobramentos e aprofundamentos. Contudo, mesmo em cases de sucesso como a Savage Fenty, uma das marcas mais comprometidas com a pluralidade em todos seus sentidos, ainda há uma divisão estrita entre a roupa íntima masculina e feminina.

O mercado, incluindo os bons exemplos como a marca de Rihanna, parece tatear no escuro sem saber exatamente para onde ir. A compulsoriedade da binaridade faz com que a vida seja uma grande loja de departamento. “São gavetas. Mas performance e identidade não estão dentro da mesma”, diz Dalila Santos, doutora em estudos de gênero pelo NEIM (UFBA), e professora da UNEB. “Uma das primeiras coisas notadas quando vemos uma pessoa é a performance de gênero. Muito por conta da vestimenta, já que a genitália, normalmente, não está à vista”, continua ela.

A roupa íntima, que está por baixo, colada na pele, com suor e cheiro, não é feita apenas para seduzir e ter orgasmo. Não precisa sempre ser rendada ou ter essência de baunilha. A desconstrução de como se enxerga o underwear é ainda mais complexa quando quem as usa são corpos não coloridos no antigo azul ou rosa.

Corpos que trabalham

Uma possível causa para a falta de produtos e discurso não-binário é a baixa presença de pessoas identificadas como tal na produção de roupa íntima. “Precisamos participar da construção. O trabalho é o que marca a nossa estadia no tempo”, afirma a artesã e pesquisadora Mathea Biu Xa.

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Culcinhas feitas por Gui Griebler e Descobre Pi, para o projeto “Paciência: exercício de tempo e espera. Paciência: transição do tempo e da espera”.Fotos: Mathea Biu Xa

Mathea é responsável pelo o projeto “Paciência: exercício de tempo e espera. Paciência: transição do tempo e da espera”. Estruturado em oficinas, ele se desenvolve a partir da observação de pessoas sobre suas necessidades e desejos corporais. A partir daí, os participantes tecem distintas possibilidades com tricô, crochê e outras técnicas manuais. Uma delas é a culcinha, “feita para um corpo feminino que tem pau”, nas palavras da própria. “Temos uma visão da travesti a partir de uma perspectiva clínica, de que esse corpo só vai alcançar um ponto de feminilidade quando operado. Estamos falando de corpos que transicionam, que não seguem a lógica compulsória.”

Atualmente, a pesquisadora planeja o lançamento da #BonekaDeCrochê, projeto focado nas culcinhas e em outras peças. “As técnicas artesanais são sabedorias passadas por gerações, cada nó é uma profecia de vida, dinheiro e saúde travesti, já que no presente, temos uma expectativa de vida de pouco mais de 30 anos.”

Outros exemplos de marcas de lingerie feitas por e para pessoas trans são a TGW (Transgender Wear), Cris Cabana e Sandy Mel. “Tem gente que não compra por preconceito, diz que é coisa de viado e puta. Eu vendo para todo mundo: mulheres trans, não-bináries e também para homens cis, que compram para as suas esposas ou para eles mesmos”, explica a empresária e diretora criativa Sandy Mel, que vende em 16 estados e exporta para Itália e França.

Revisão material e linguística

“A roupa de baixo é um dos âmbitos mais binários, até mesmo pelas nomenclaturas. Se eu digo que uso calcinha, as pessoas já pensam em uma corporeidade feminina. Eu uso tudo, já que não tem apenas uma materialidade que me faça sentido”, conta Lino Calixto, artista multimídia e modelo.

Na Ca.ce.te, etiqueta dos mineiros Raphael Ribeiro e Tiago Carvalho, as palavras calcinha e cueca foram abandonadas, dando lugar aos nomes das modelagens. “O ponto de partida do fio-dental, nosso principal underwear, foi pensar uma peça híbrida entre bojo frontal, para o pênis, e fio traseiro, para deixar a bunda à mostra”, explica Raphael.

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Ca.ce.te. Foto: Henrique Falci

Algumas marcas, na tentativa de serem “inclusivas”, criam uma terceira linha para quem não está na dicotomia. Ou seja: masculino com cueca, feminino com calcinha e não-binário como um terceiro gênero. “Se for criar três seções nas lojas de shopping, qual criança e adolescente vai entrar na última? A ideia é acabar com a lógica de departamento”, comenta Lino.

Além disso, o artista ressalta a importância de se produzir mais peças com referencial 100% não-binário, como o binder, utilizado por pessoas trans masculines na região dos seios. É sobre criar novas opções e não adaptar a cisgeneridade. “Nós não estamos no mesmo lugar, então, por que eu vou me repetir com base em uma ideia pronta?”

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Lino Calixto. Foto: Rafa Kennedy

Anatomia e simbolismo

A roupa íntima não-binária, sob uma perspectiva de revisão – não de complementação – aborda questões do sistema humano anatômica e simbolicamente. “Não existe o que é certo para os seios, pênis e vagina. Eu trabalho com os diferentes caminhos que um corpo pode seguir”, afirma o estilista Rodrigo Evangelista, que já criou corsets, hot pants, segundas peles e outras peças sem definição de gênero.

Parte-se da corporeidade para se pensar a modelagem, cores, tecidos e aviamentos, não de pré-concepções antigas de identidade masculina e feminina. O que um mecanismo único, independente de demarcações, quer carregar em sua intimidade?

Para a produção em larga escala, menos personalizada, é possível trabalhar com uma maior elasticidade de materiais e conceitos. “Existe um vício quando falamos de matéria-prima”, fala o estilista Hudson Bispo, da Bispo dos Anjos. “Gosto de fazer algumas provocações: digo que estou procurando um material fortemente associado ao feminino, como seda ou renda, e quando o fornecedor me pergunta como imagino a cliente, respondo que estou fazendo uma cueca para qualquer pessoa.”

No Brasil, marcas pequenas especializadas ou não em roupa íntima, mostram maior interesse e domínio em trabalhar com o desmanche da binaridade. Seria uma saída para os grandes nomes do mercado, então, se associar a elas?

“As grandes empresas poderiam se dispor mais a ter uma troca com as menores”, opina Célio Dias, nome por trás da LED. “Na produção nacional em larga escala de roupa íntima, o fator colaborativo não é muito bem entendido. Colaborar não é se anular, mas associar valor e se mostrar de acordo com o tempo. A mídia mudou, as pessoas mudaram, mas o engessamento persiste.”

Em um raro exemplo, Alexandre Herchcovitch se juntou à Hope em duas coleções. Na primeira, a modelo trans Valentina Sampaio estrelou a campanha (o que não torna a ação e peças necessariamente não-binárias, mas há uma quebra). Internacionalmente, temos exemplos de parcerias como a da Supreme com Hanes, Calvin Klein e Kith e também Alexander Wang com Uniqlo. Todas binárias.

Contudo, para além das parcerias, existe em outros países uma maior oferta de empresas de roupa íntima não-binária, como a portuguesa KÖN Underwear, as americanas Play Out Apparel e TomboyX e a inglesa Gender Free World.

Moda como educação

“É menino ou menina?”. Este questionamento parece ser feito às pessoas gestantes (homens trans podem engravidar!) antes mesmo de se perguntar sobre a saúde do bebê. “Falhamos dentro da formação familiar, enfrentamos resistência nas escolas e, com isso, a indústria e mídia acabam tendo um papel educativo”, explica Dalila Santos.

É na televisão, na música e em revistas que muitas pessoas percebem, pela primeira vez, que há variadas identidades. “Quem trabalha com moda também foi formado com base na lógica conservadora. Como pensar fora do espaço delimitado por regras de conduta?”, pergunta Caroline Muller, doutoranda em design pela UFPR, com uma pesquisa voltada às roupas brancas (como eram chamadas as roupas íntimas) no século 19 .

O termo que transmite higienização, virgindade e dissociação do corpo pode até ter mudado, mas a relação com intimidade e identidade ainda parece atolada em um pântano de ignorância. Apenas em 2018, a Organização Mundial da Saúde parou de considerar a transexualidade como um transtorno mental. “Roupa íntima é tabu. No Brasil, que carece de museus de moda, encontrar esses artefatos históricos é extremamente difícil. As pessoas jogam fora porque têm nojo dos seus cheiros. Imagine guardar e doar para um museu? Foi dessa dificuldade que partiu a minha pesquisa”, explica Caroline.

Quando vai mudar?

Moda não instaura grandes revoluções, mas reflete, como poucas, o que lateja na sociedade. Para que o departamento masculino não fique mais no segundo andar, e a seção feminina ao lado da infantil e do lar, uma série de mudanças educativas e políticas precisa se materializar. Assim a pressão aumenta e o mercado se reconfigura.

Muito já mudou, mas a quebra total da separação de gênero, para a maior parte da população, é embrionária ou inexistente. O ritmo é lento, ainda mais falando sobre roupa íntima, que traz à tona a relação com o corpo e todos os estigmas sobre ele. O nó existe há séculos: está em dogmas religiosos, aparece na rua, na solidão do banho e no toque na cama. E a moda, que se categoriza e setoriza o tempo inteiro, cria armadilhas para si.

O jornalista Eduardo Viveiros questiona: “É impossível atingir todo mundo sem perder alguém. Você vai precisar de seis campanhas? Ou ter apenas uma com diferentes possibilidades? Os mais conservadores vão se posicionar? As grandes marcas de underwear estão dispostas a arriscar perder esse público?”.

Sem romance e cinismo

Não existe uma estratégia única de venda ou vibração energética que solucione a questão. São as pequenas grandes reconfigurações de cada dia. Em 2018, pela primeira vez no Brasil, foram eleitas três mulheres trans para assembleias legislativas. Enquanto isso, o país continua sendo o que mais mata travestis e transexuais, de acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais, ANTRA.

Não é romance. A urgência da roupa íntima não-binária é de afirmar a humanidade e intimidade de pessoas que precisam ser inseridas no mercado, não apenas como consumidoras, mas produtoras em todos os níveis, do estágio à direção. Contudo, elas precisam estar vivas e fortes para isso.

“Todo mundo ganha se não tiver definição compulsória e obrigatória. O foco é esse: ofertar tudo para todes, sem delimitações”, defende Lino Calixto. Mas se os antigos alicerces resistem, criam-se novos. Não é sobre raiva e violência. Isso, segundo o artista multimídia e modele, “é coisa de gente cis”.

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