O debate sobre a padronização de medidas na indústria da moda
No mês em que a ABNT aprova uma nova norma orientadora para tabelas de medidas de vestuário, conversamos com consumidoras, especialistas e modelistas para entender como abranger a diversidade corporal brasileira na hora de criar uma peça de roupa.
”Um macacão não fica um macacão em mim. Fica curto ou justo nas virilhas, é muito complicado”, relata a criadora de conteúdo Juliana Oliveira sobre sua experiência comprando roupas sendo uma mulher de 1,80m. ”Hoje, a maioria das peças que tenho são confeccionadas por costureiras”, diz ela, ao partilhar a solução que encontrou.
Sua vivência não é diferente daquela de muitas mulheres brasileiras, que, com frequência, têm dificuldade em encontrar um tamanho de vestuário adequado ao seu corpo. Quando são compras online, então, pior ainda. Pensando em uma remediação, a Associação Brasileiras de Normas Técnicas (ABNT) aprovou, neste mês, uma nova norma para as tabelas de medidas, a NBR 16933. Ela vai do tamanho 34 ao 62 e contempla dois biótipos femininos, colher e retangular. Conduzida pelo Comitê Brasileiro de Têxteis e Vestuário da ABNT, a novidade é fruto de um diálogo extenso com muitas instituições e setores, como o Senai Cetiqt, Associação Brasileira de Plus Size (ABPS) e empresas do setor.
A coordenadora do Comitê, Maria Adelina, explica que o documento se baseia no conceito de vestibilidade. A diretriz, contudo, não é obrigatória para as empresas, dada a dificuldade do InMetro em averiguar seu cumprimento, argumenta ela. Hoje, as etiquetas das roupas devem conter seis indicadores: nome ou razão social, composição, símbolos de lavagem, CNPJ, país de origem e tamanho, sendo que o último não precisa conter um detalhamento além dos clássicos P, M ou G. O conselho da ABNT é que as marcas usem a tabela recente e acrescentem na etiqueta, ou em algum tipo de tag, as medidas de circunferências elementares daquela peça: cintura, busto e quadril.
Maria Adelina diz que esse diálogo, na Associação, já acontece desde a década de 1980. Em 1995, existia uma padronização planificada, ou seja, uma medida nomeada de 44 tinha uma cintura que equivalia ao dobro, 88 centímetros. Em 2009, o Comitê passou a trabalhar com uma diretriz para o vestuário infantil e masculino. De acordo com a coordenadora, o interesse do primeiro partiu da dificuldade de graduação para roupas de crianças e no alto fluxo de trocas. Do segundo, foram as empresas de uniforme as principais impulsionadoras.
Por conta da dinâmica do mercado de têxtil e de vestuário, novos tecidos e o avanço da tecnologia, a norma de vestuário feminino, aquela de 1995, passou a ser insuficiente e deixou de vigorar em 2012, ano em que começaram as pesquisas para a atualização que vigora hoje. Em 2015, quando estava pronta para ser lançada, a ABPS sinalizou a falta de tamanhos maiores na grade. Começou, então, outro processo de revisão, que só terminou neste ano.
Outra colaboração crucial nesse processo veio do Senai Cetiqt. Sua pesquisa SIZEBr serviu de embasamento para toda a NBR 16933. Segundo Patrícia Dinis, coordenadora de serviços de consultoria de confecção da instituição, o objetivo do SizeBR era realizar uma medição abrangente da população brasileira, captando o maior número de medidas possíveis. Com uma demanda conjunta de empresas e organizações, ela começou em 2006 e utilizou um body scanner, um tipo de aparelho que consegue captar e computar rapidamente medidas antropométricas, para percorrer o país. Ao todo, mais de 10 mil pessoas, com idades entre 18 e 65 anos, foram medidas nos 27 estados do Brasil, com foco nas principais capitais com atividade econômica intensa.
O estudo resultou em um banco de dados, originando 15 tabelas de medidas para homens e 15 para mulheres, com 95% de confiabilidade estatisticamente. ”Identificamos que pensar em uma tabela única nacional ia ser impossível, porque as pessoas têm formas corporais muito diferentes, como estatura e peso, além de uma segmentação bem grande em termos mercado”, avalia Patrícia. Ainda na pesquisa, constataram-se quatro biótipos de mulheres brasileiras, baseados na correlação entre valores de busto, cintura, quadril e quadril alto. São eles: ampulheta, retangular, triangular e triângulo invertido. A coordenadora aponta que a ampulheta é o formato corporal mais bem atendido pelo mercado, mas a forma retangular foi a mais aparente, representando 74%. ”Existe uma disparidade entre o que as empresas oferecem no formato da roupa e o que é o corpo da mulher”, defende. Ela também explica que o mapeamento não contemplou muitas pessoas gordas, pois elas não se sentiram confortáveis para participar do escaneamento.
Atualmente, o Senai desenvolve consultorias, utilizando a SIZEBr, para empresas que desejam fazer um processo de padronização interno. Uma delas foi a Lojas Renner. A varejista lançou no último mês um projeto pioneiro no Brasil: manequins produzidos a partir do escaneamento de corpos reais e de avatares 3D, baseados em 40 medidas antropométricas. Fernanda Feijó, diretora de estilo, e Janete Marquardt, gerente sênior de desenvolvimento técnico de produto, explicam que a marca realizou um trabalho conjunto com a ABNT por dois anos. O objetivo do manequim, que começou na etiqueta Ashua Curve & Plus Size, é conseguir entregar peças mais ergonômicas e fiéis aos biotipos da população brasileira, contemplando todas as linhas da marca curve & plus size e de Renner. Com ele, as confecções que atendem a marca poderão chegar mais perto de uma unanimidade de tamanhos.
Apesar de haver uma diversidade corporal muito grande, já que a marca atende ao Brasil todo, a gerente e a diretora avaliam que ”as diferenças existem e talvez esse seja o maior ponto de partida. Esse trabalho foi para ter mais abrangência na diversidade de corpos e facilitar a vida do cliente.”
É possível padronizar?
O Brasil é um país continental com a quinta maior população do mundo. Com isso, é esperado que não haja uma única tabela de medidas. A modelista Marilia Tavares acredita que ”a diversidade não permite padronizar e que a gente nunca chegará num padrão, no máximo uma padronização aproximada”. Há mais de uma década na profissão, ela sequer gosta da palavra padrão. Acha rígida e agressiva demais. Atualmente professora no SENAI São Paulo, ela reconhece que existe uma inflexibilidade na profissão ao sinalizar que acha importante os estudantes compreenderem a vestibilidade da roupa para além de uma tabela de medidas.
Para Marília, as normas antropométricas podem mudar de acordo com a região geográfica, algo que vê como positivo, pois mostra como nosso território é plural. A dificuldade em padronizar foi constatada empiricamente durante a pesquisa da SizeBR. “Você encontra vários padrões, mas não um único”, diz Patrícia. A coordenadora acredita ser difícil exigir que uma empresa atenda a todos eles, o que pode levar as marcas a se encaixarem em nichos específicos. Porém, isso não deveria segregar ainda mais corpos do consumo de moda.
A mulher brasileira tem, em média, 1,60m, mas só nesta reportagem todas as entrevistadas têm alturas bastante distintas. É o caso da criadora de conteúdo Stephanie Marques, que precisa recorrer aos tamanhos infantis nas lojas. ”A indústria (do vestuário) não é nada adaptável para pessoas com deficiência do meu tamanho. Não consigo usar o tamanho P ou PP, pois teria que alterar muito a roupa e ela perde a forma original”, relata ela. “Não existe padrão de deficiência, mas sim similaridades.”
”Existe uma disparidade entre o que as empresas oferecem no formato da roupa e o que é o corpo da mulher.” – Patricia Dinis
Para Flávia Durante, ”é impossível padronizar corpos no Brasil, onde cada um tem uma história”. A jornalista e criadora da Pop Plus, a maior feira de roupas plus size da América Latina, ainda acrescenta que ”mesmo mulheres gordas não são todas iguais, têm altas, baixas etc.” Mesmo sob a compreensão que o país é diverso, isso ainda não transparece na indústria da moda, que continua bastante engessada em narrativas únicas.
A diversidade brasileira não pode ser usada como escusa para a gordofobia que ainda impera na indústria do vestuário. ”Mulheres gordas sempre ficaram fora dos padrões e a gordofobia ainda é muito presente, desde a modelagem até campanhas e editoriais”, analisa a jornalista.
Questão de imagem
A representação imagética é sempre uma questão em um sistema como o de moda. Embora algumas marcas estejam expandindo sua grade de tamanhos para números maiores, dificilmente essas peças são vistas nas vitrines digitais. As modelos que estampam a maioria das campanhas são magras, não gordas – por mais que exista a mesma calça ou blusa em diversos tamanhos. Para Flávia, isso ocorre pois muitas etiquetas ”querem o dinheiro, mas não querem a imagem ligada a esse público”. Em sua visão, a falta de profissionais diversos causa ainda mais distanciamento. ”Falta contratar uma equipe de pessoas gordas, sejam modelos, stylists, maquiadoras. Alguém que não vai querer afinar seu rosto, ou te esconder.”
Já para Stephanie, isso também é reflexo da sociedade. ”A gente não vê fotos de pessoas com deficiência em propagandas. Ou são inferiorizados, ou colocados por último, e sentimos falta disso, de entrar em um site de uma marca e ver ali uma pessoa com deficiência como modelo. A sociedade precisa evoluir nisso para não olhar um corpo com deficiência e enxergá-lo como algo repulsivo.”
A distorção de imagem que a própria indústria da moda alimenta, ao ignorar ou repelir corpos que fogem da normalidade branca e magra, se refletem na tabela de medidas e numeração de uma roupa. Muitas mulheres buscam usar um número menor justamente para se distanciar do que é posto como corpo anormal. Patrícia visualiza nessa dinâmica um jogo de marketing. ”A empresa quer encantar o consumidor dizendo que ele veste P, mas na realidade ele veste M ou G. Então, ela muda a classificação do manequim para conseguir vender e mexer com a vaidade (da pessoa)”, explica. ”As indústrias lucram com pessoas inseguras. Se elas criam essa diferença de padronização de medidas entre as marcas, quem lucra são elas”, acrescenta Stephanie. ”A pessoa fica preocupada em caber em todas as medidas.”
Esse é um dos motivos que faz Flávia lutar para que as mulheres ”desapeguem de números (nas etiquetas) e do tamanho do manequim” e simplesmente vistam aquilo que as façam sentir-se bem. Ela incentiva ”trabalhar o autoconhecimento e saber suas medidas” para não ficar a mercê do que o mercado impõe, e diz que, atualmente, mais pessoas estão se aceitando e buscando se ver representadas. Contudo, para a jornalista, mulheres gordas ainda são ”vistas como um nicho, um segmento”, e que isso não acompanha a realidade, já que ”mais de 60% da população é considerada acima do peso ou gorda e 25% do varejo tem esse público.”
Como contemplar as diversidades brasileiras?
Uma solução para as etiquetas contornarem a impossibilidade de padronizar, aconselha Patrícia, é cada empresa pensar na ”estrutura corporal que quer atender, ter uma tabela para isso e apresentá-la para seu cliente, colocando-a na etiqueta ou no ambiente digital, e explicar como se medir”. Segundo a coordenadora, isso acaba sendo mais acessível para empresas de grande porte, mas pode ser um caminho para todo o setor. Além disso, as técnicas de corte e costura, aliadas à tecnologia têxtil, podem ser úteis. É possível pensar na estratégia do produto para atender mais corpos a partir de artifícios como uma modelagem adaptável e uso de tecidos e aviamentos adequados, como por exemplo um material com elasticidade.
Se medir, inclusive, é uma prática que Maria Adelina acredita se tornar mais frequente muito em breve. Em sua análise, o comércio digital, que cresceu 40% no Brasil após um ano de pandemia, acelerou esse processo, sem o qual é mais difícil comprar uma peça de roupa assertivamente. “‘Um equilíbrio ou possível solução, seria (a marca) criar uma forma para indicar, diante das suas medidas, qual é o seu modelo. Seria investir no provador virtual, em fotos com modelo, com maior diversidade – e não só de tons de pele. Colocam pessoas brancas e negras, mas todas magras”, diz Juliana.
”No final, é repensar sua relação com o próprio corpo e escolher melhor onde você quer comprar, se a marca que você quer já acolheu seu corpo da forma que você o acolheu.” – Marilia Tavares
Flávia aponta que as mudanças ainda seguem lentas pois falta ”uma vontade maior das grandes (varejistas) estudarem corpos maiores. Eles têm mais possibilidades financeiras e alcance nacional para investir, mas não têm interesse por conta da gordofobia estrutural da moda.”
Marília ainda sugere um maior acolhimento das marcas. Por exemplo, que elas possibilitem alterações simples em suas lojas, como fazer a barra de uma calça ou vestido. Ao mesmo tempo, ela se posiciona ”no lado da força das pessoas aprenderem a lidar com as roupas que querem consumir, se estão dispostas a procurar em brechós, customizar, seguir por caminhos que as grandes marcas não estão dispostas a entrar. No final, é repensar sua relação com o próprio corpo e escolher melhor onde você quer comprar, se a marca que você quer já acolheu seu corpo da forma que você o acolheu”, acredita a modelista.
O caminho do slow fashion também é apontado como uma boa solução. Patrícia soma ao dizer que uma alternativa é produzir sob demanda, em um ritmo menos acelerado, com mais controle sobre quais tamanhos de peças estão sendo solicitados pela consumidora. ”Temos o slow fashion. O planeta está no cobrando a alta demanda (de consumo), talvez seja o momento ideal para ter paciência e esperar. O cenário aponta para uma adaptação, de olhar calmamente para suas medidas e comprar acertadamente”, finaliza Maria Adelina.
Esta matéria foi atualizada em 10 de dezembro de 2021.
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