O novo “Made in China”

Novos estilistas apostam no "Design in China", ou ainda, no "Made for China", e mostram que é preciso parar de olhar para criadores chineses através de uma lente reducionista.


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Qual é a fábula contida em nossa imaginação quando ouvimos o termo “Made in China”? Talvez, a primeira cena acionada seja a de um amontoado caótico de lojas com no máximo 15m² apresentando uma grande variedade de produtos. Já a segunda cena pode se passar num grande centro mercantil, no qual a aglomeração é certa, seja nas lojas organizadas todas paralelamente (em ladeiras e nas ruas), seja em barracas de vendedores ambulantes. Existe esse cotidiano subentendido de que bens etiquetados com a frase “Made in China” fazem parte das nossas vidas, mas infelizmente o senso comum é atrelarmos todo tipo de produção chinesa a estéticas facilmente nomeadas como “pechincha”, “bugiganga”, “tranqueira” ou mesmo “falsificadas” — e ainda relacionando os espaços de venda e seus mercadores a condições de precariedade, caos e xenofobia.

O fato, no entanto, é que estamos de frente a uma ascensão global chinesa em relação à tecnologia, inovação e design, algo com início em 2015 por meio do plano industrial “Made in China 2025”, implementado com a intenção de atualização, consolidação e equilíbro da indústria manufatureira na China. O seu principal objetivo é apresentar uma face do país que pode impulsionar a inovação global por meio de avanços científicos em áreas como ciência robótica, telefonia celular (smartphones e rede móvel), inteligência artificial e exploração espacial. Ou seja, a ideia é cada vez mais que esses meios produtivos sejam reconhecidos não apenas por sua fabricação, mas principalmente sejam vistos como “Designed in China”, ou melhor, o “Novo Made in China” — termo cada vez mais difundido para marcar esse reposicionamento.

Na moda, esses movimentos não poderiam ser diferentes. Os moldes, porém, são muito mais subversivos já que não há apenas uma abertura comercial para produção de vestuário nacional, mas toda uma juventude movida pelo senso de produzir estéticas contemporâneas sobre o real significado de ser uma pessoa jovem na China.

As grandes tendências de consumo nesse grupo são: a queda de fronteiras por meio da internet (quando suas vidas são movidas pelo engajamento em redes sociais e conexão online), experiências holísticas de compra (não apenas a marca importa, mas sua singularidade, conveniência e consciência ambiental. Esse são questionamentos básicos no ato de aquisição) e personalização (o apetite por exclusividade faz com que edições limitadas ou mesmo serviços de customização tenham alta demanda). Tais características são mais essenciais do que o renome contido em uma etiqueta internacional. Esse fato, inclusive, foi não apenas relatado em 2019 pelo site The Business of Fashion, em um texto de Sam Gaskin e Zoe Suen, como também apontado como uma contínua desconexão das marcas globais com a juventude chinesa. Esse “gap” acabou sendo muito “produtivo” para ser preenchido por criadores locais, que conseguem contornar a desconexão cultural ao dialogar muito bem com essa identidade chinesa contemporânea, e continuar propondo frescor e novidade em peças que alinham nostalgia e vontade de futuro. Susan Fang, por exemplo, é uma estilista que busca retratar memória e natureza em suas criações oníricas, enquanto a marca Private Policy, sediada em Nova York, pensa rebeldia e sustentabilidade.

Alguns desses jovens designers de moda buscam atender igualmente mercados internacionais, estabelecendo diálogos para além da China, mas ainda cultivando questões como herança cultural, inclusive em abordagens mais politizadas. Eles questionam a apropriação cultural por marcas americanas e européias, criticam a maneira que o “Made in China” ainda é visto como malfeito e medíocre, mas principalmente, expõem de forma unapologetically o orgulho por suas raízes culturais. Alguns exemplos podem ser vistos com a reinterpretação de uniformes comunistas, como a jaqueta vestida por Mao Tsé-Tung, criada pelo Atelier Rouge Pékin, ou mesmo as roupas de streetwear e tênis esportivos no duo amarelo-vermelho (cores consideradas as mais tradicionais e auspiciosas pelos chineses), da marca Li-Ning.

Recentemente, foi possível ver esse cenário ainda mais de perto, quando acompanhamos a trajetória de Angel Chen no reality show da Netflix “Next in Fashion”, apresentado por Tan France e Alexa Chung. A estilista nascida em Shenzhen migrou para Londres com apenas 17 anos, sendo seu grande objetivo estudar moda na renomada Central Saint Martins. Ela estagiou em marcas como Marchesa, Vera Wang e Alexander Wang, mas o grande marco de sua carreira aconteceu quando entregou seu desfile de graduação. Logo, passou a ser citada como um dos maiores talentos em ascensão por veículos como a i-D e o Business of Fashion, que já a nomeou uma das 500 maiores personalidades da moda mundial. Ela lançou sua marca homônima na Shanghai Fashion Week em 2014, e em apenas dois anos seu trabalho alcançou passarelas parisienses e nova-iorquinas, além de também ter começado a vender suas peças internacionalmente em lojas de departamento como Selfridges, Lane Crawford, Luisa Via Roma e H. Lorenzo. Angel também levou seu estilo híbrido para marcas como Adidas, MAC, Woolmark, e ainda foi a primeira designer chinesa a colaborar com a H&M, criando 45 peças baseadas no tema de coleção “Kung Fu”, no ano passado.

Em 2020, a estilista enfrentou novos desafios quando seu desfile na Milan Fashion Week, que estava marcado para fevereiro, foi atravessado pela pandemia global da Covid-19. Escritório e fábrica em Shanghai só puderam retornar meses depois, o que levou Angel a costurar com suas próprias mãos algumas das peças da coleção Inverno/2020 que seriam apresentadas na Digital Shanghai Fashion Week — semana de moda totalmente digital, que foi vanguarda para desfiles nesse mesmo formato, como a London Fashion Week. A coleção baseada no mangá japonês Akira, criado por Katsuhiro Otomo e considerado um clássico do estilo cyberpunk, foi apresentada em um vídeo surreal e tecnológico, produzido por uma equipe reduzida (mas devidamente paramentada com equipamentos de proteção e seguindo as regras vigentes de segurança). A estilista realizou a direção e styling remotamente, enquanto apenas quatro modelos compunham o casting, cada qual gravada na cidade que realizava o isolamento. O desfile foi apresentado virtualmente e simultaneamente em cinco plataformas: Instagram, TikTok, Weibo (uma das redes sociais mais famosas na China), Taobao e Tmall (aplicativos de compras online).

A China vem, cada vez mais, sendo vista como uma bola de cristal para previsões de como os consumidores podem reagir em tempos pandêmicos, e quais serão as consequências desse cenário em seus hábitos de compra. O mercado chinês é um dos maiores públicos-alvo do mundo, e berço de inovações transformadoras que vão impactar diretamente o nosso lifestyle, mas é ineficiente olhar para essa realidade através de uma lente ocidental, que visa reduzir e assimilar narrativas em estereótipos. A sinofobia não pode estar mais presente nas entrelinhas de pensamentos dito progressistas. Ou seja, é urgente não romantizar as escalas produtivas em massa e pautar de forma coerente os impactos climáticos que nosso planeta vive em função dos sistemas econômicos vigentes, mas tal discussão precisa ser feita livre de preconceito ou discriminação. Inclusive, o quão importante é disputar tal narrativa quando essas mesmas pessoas chinesas estão sendo nomeadas de “vírus”, em função da tensão econômica entre potências e a atual guerra geopolítica?

No final, a reflexão que precisa ser feita é o quanto realmente sabemos sobre a China, e como não nos deixar levar por discursos enganosos — mas continuamente propagados — sobre escravidão contemporânea, insalubridade e terror ideológico. Apenas ultrapassando os estereótipos duais (ora eficientes e tecnológicos, ora degenerados e incompreensíveis) que temos sobre os chineses, será possível compreender realmente essa potência mundial em ascensão. Como cada vez mais estaremos olhando para a China, uma vez que ela progressivamente se constrói como um hub de inovação global, é fundamental que essas leituras reducionistas sejam deixadas para trás. Estejamos preparados, pois o futuro “Made in China” já chegou.

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