O que moda e roupa têm a ver com identidade queer

Ao longo da história, construções sociais impregnaram nossas roupas de códigos e limitações. A libertação vem com a subversão e ressignificação de tais normas.


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Ilustrações: Mariana Baptista



Ninguém gosta de ser obrigado a fazer algo que não quer ou que não lhe agrade. Imagina que chato seria se o mundo fosse só do jeitinho que algumas poucas pessoas o enxergam. Pois é, mas isso aconteceu e ainda acontece. A vida, a existência, a identidade e até a maneira de se vestir de muita gente é negada, proibida, violentada e marginalizada por esse tipo de pensamento. E para isso existem vários nomes: colonização, opressão, jogo de poder e construção cultural pós-colonial.

Parece assunto complicado, mas é bem simples. Quer ver? Desde criança, você deve ter ouvido “isso não é brincadeira de menina” ou “tá parecendo um menino com essa roupa”. Quem foi que disse que roupa, calçado ou cor tem gênero? O mundo binário de azul e rosa, menino e menina foi inventado. É uma construção social imposta goela abaixo por uma série de fatores e outros tantos interesses. Nós vamos explicar.

Da antiguidade grega até meados do século 18, homens e mulheres eram vistos igualmente em sua anatomia. A isso se dá o nome de modelo isomórfico. Durante boa parte da Idade Média, o corpo era tido apenas como morada do divino, então sua aparência não importava tanto assim. O que era considerado belo tinha mais a ver com a ideia espiritual de divindade do que com qualquer atributo físico. Na Renascença, figuras andróginas chegaram a ser admiradas de forma sagrada. Não havia qualquer associação negativa em relação à não-binariedade. Pelo contrário, ao longo da história há registros de cultuação aos ditos eunucos, que exerciam uma função social simbólica no seio das sociedades antigas.

O ideal de sexo binário começou a tomar a forma que conhecemos hoje a partir da segunda metade do século 18, por meio das ideias iluministas. Estas, aliás, são uma das principais responsáveis pelas grandes fraturas e violências que se arrastam até os dias de hoje no processo de modernização e aculturação em múltiplas nações colonizadas. Elas iam na contração da ordem natural e biológica. Pautadas por uma noção distorcida de humanismo, visavam a manutenção de poder e interesses políticos por meio da massificação populacional e manuseio da mesma. Ah, e tudo sob um ponto de vista cis-heterormativo e branco.

“É nesse período que se estabelece o governo das crianças, dos loucos, dos pobres e, depois, dos operários”, escreveu Mariah Rafaela Silva, em um ensaio publicado em 2015. “É também nesse período em que o corpo passa a ser governado, especialmente o sexo e o gênero”, continua ela. É quando a começa as distinções mais rígidas sobre o que é roupa de homem e de mulher, sempre numa lógica de completa oposição.

A partir daí, a moda masculina se fecha em uma estética de seriedade e racionalidade. Já a feminina, ao contrário, fica cada vez mais extravagante. Na esfera social, os ideais masculinos de poder, virilidade e gestão são dignos de reconhecimento público, enquanto os femininos (cuidado, fragilidade e maternidade), se reservam à intimidade privada.

Esse modelo recebe o nome de dimórfico. Segundo ele, homens e mulheres são extremamente diferentes. Corpos e roupas passam a reafirmar o discurso de que ambos são de mundos completamente distintos. Assim, criam-se barreiras biológicas e sociais demarcadas, principalmente, pela estética e pelo vestuário.

Essa ideia só começa a ser questionada de forma mais ampla no fim do século 19, com a primeira onda feminista. Elementos tradicionalmente vistos como essenciais às vestes das mulheres são colocados em xeque e alguns deles são, aos poucos, superados. Com a segunda onda do movimento, entre os anos 1960 e 1980, a ampliação e multiplicação de vozes de mulheres negras, reflete também na indumentária. Os sutiãs em chamas são o melhor exemplo do que estamos falando. Além disso, deu-se início a uma subversão mais intensa de peças tidas original e exclusivamente masculinas ou femininas

Naquela mesma época, o movimento hippie tenta consolidar uma moda unissex, mas é apenas nos anos 1970 e 1980, com ascensão e força dos movimentos sociais, unidos à militância LGBTQIA+, que podemos ver figuras marcantes da hisória em busca do rompimento com as normas cis-heterormativas. Quer dizer, não que não existam exemplos célebres dessa luta antes (Madame Satã, Colette, James Baldwin, Oscar Wilde que o digam). A diferença é o contexto social e cultural, capaz de amplificar e catalisar o potencial daquelas imagens e pessoas.

“O corpo queer é heterogêneo. Ele é cis, ele é trans. Ele é pardo, negro ou branco. Ele é de todas as raças. Ele é não-binário, mas pode ser binário. Ele possui sexualidades diversas, ele pertence a diferentes classes sociais. O queer é por excelência rizoma!.” Mariah Rafael Silva

Pense em Sylvester, David Bowie, Amanda Lear, Prince e Grace Jones. Ou então, em solo nacional, em Ney Matogrosso, Maria Bethânia, Vera Verão, Caetano Veloso, Rogéria e no grupo de teatro Dzi Croquettes – verdadeiros símbolos de resistências e rompimento de barreiras com a normatividade binária, não apenas em suas peças e figurinos, mas em suas falas, linguagem corporal e existência.

A visibilidade de tais artistas reduzia a marginalidade (ainda que minimamente), realçava o orgulho e dava espaço para que androginia, fluidez e liberdade de expressão deixassem de ser fruto de exotificação, repúdio e violência. Devolvia-se o direito à individualidade, permita-se cada um ser como realmente é ou deseja ser.

Anos depois, com ascensão e amplitude do transfeminismo, nos aproximamos de maiores rupturas dos padrões de gênero distorcidos. Na moda, alguns movimentos indicam o progresso. Em 2015, a loja de departamentos britânica Selfridge, anuncia a retirada dos setores masculinos e femininos. Naquele mesmo ano, esta ELLE publicava sua primeira capa com uma modelo transsexual, Lea T. Em 2016, Jaden Smith é convidado para ser rosto da coleção feminina da Louis Vuitton.

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Agora, não é mais sobre homens de saia ou mulheres de terno. Vai além da lógica binária entre masculino e feminino. É o que Judith Butler e outras tantas teóricas, algumas brasileiras inclusive, destrincharam sobre a teoria queer.

Estamos falando de um termo anglófono criado há mais de 400 anos. Ele era usado para designar povos marginalizados, os “desviantes”. Sua conotação pejorativa surgiu após a prisão do poeta e escritor Oscar Wilde por “condutas homossexuais”. É mais um exemplo da lógica de exclusão e rejeição de uma elite higienistas cis-heteronormativa. Ferramenta de construção e manipulação social que, só agora, começa a ser ressignificado.

“O corpo queer é heterogêneo. Ele é cis, ele é trans. Ele é pardo, negro ou branco. Ele é de todas as raças. Ele é não-binário, mas pode ser binário. Ele possui sexualidades diversas, ele pertence a diferentes classes sociais. O queer é por excelência rizoma!”, escreve Mariah Rafael Silva.

Essa pequena e resumida viagem no tempo ajuda a compreender como a liberdade de se vestir é um símbolo de resistência, um ato político consolidado com as vozes e corpos de muitas pessoas. Não devemos deixar que conquistas de tantas lutas sejam lidas como fantasias, alucinações parciais ou simples recursos estéticos.

A construção do belo, vai muito além de uma determinada pessoa, grupo ou nação. Triste seria acreditar que apenas um continente seria detentor da verdade, dos prazeres e de sua liberdade. Questione sempre que possível, conteste sempre que necessário. Índole, caráter e bom coração se definem através da aparência, tecido, calçado ou cor das peças? Ainda não nos conhecemos mas tenho plena certeza que existe muito mais sobre você por debaixo desse pano.

Tereza Tessaro é historiadora, pesquisadora dos prazeres visuais e estudante de psicanálise

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