O termo american sportswear ainda faz sentido?

A primeira parte da exposição anual do Costume Institute, do Met, tem como tema a história da moda norte-americana. Porém, entre questões sociopolíticas, econômicas e culturais, que moda é essa?


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Pyer Moss, verão 2019 Foto: Getty Images



Com atraso de quase um ano e meio devido à pandemia de Covid-19, a exposição anual do Costume Institute, do Metropolitan Museum of Art, em Nova York, tem como tema a moda estadunidense. Dividida em dois momentos (o primeiro, a partir de 18.09 e o segundo, em maio de 2022), a mostra resgata referências, memórias e narrativas que acompanharam o estilo do país ao longo dos tempos.

Com nome de “In America: A Lexicon of Fashion”, a parte inicial estabelece um vocabulário moderno da moda norte-americana com base em suas qualidades expressivas, equilibrando o pioneirismo e a contemporaneidade do american sportswear. Este, aliás, é um dos termos mais comumente usados para descrever a moda feita nos EUA, principalmente a partir da segunda metade do século 20. Acontece que os pilares sobre os quais essa noção foi construída já se mostram um tanto abalados e bastante limitantes.

A origem do termo é um tanto difusa. No século 19, com a retomada dos jogos olímpicos, o uniforme dos atletas estadunidenses se tornaram bastante populares naquele país. Se infiltraram na cultura das universidades locais e começaram, ainda que muito timidamente, a mudar a maneira como toda uma nova geração se vestia – já com uma boa dose de nacionalismo envolvido.

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Primeiro time olímpico de natação dos EUA.Foto: Getty Image

 

Anos depois, quando os EUA entram na Segunda Guerra, em 1939, a coisa começa a mudar um pouco de rumo. “Como aliados, eles precisavam produzir roupas de maneira rápida e barata para os soldados no campo de batalha na Europa”, explica João Braga, professor de História da Moda da FAAP e membro da Academia Brasileira da Moda. “Com isso, eles desenvolveram know-how e maquinário para dar conta dessa produção em larga escala.”

As peças tinham, antes de tudo, resistência. Não dava para lavar, então eram feitas para durar o máximo possível. Com o fim da guerra, em 1945, eles tornaram o útil agradável. “Eles não iriam jogar tudo aquilo fora e dispensar o maquinário. Eles aproveitaram as ferramentas e passaram a produzir roupas em larga escala com expressão de moda. Implementaram logísticas de distribuição, marketing e desejo de consumo. Nascia assim o que conhecemos, hoje, como ready-to-wear e já com um tino comercial muito forte”, completa João.

A inovação no processo de produção das roupas não é um acontecimento isolado. Ele caminha lado a lado a outras transformações socioeconômicas dos EUA, como o sonho americano e o crescimento da classe média. Após a guerra, a funcionalidade e praticidade das roupas tinham uma função essencial no dia a dia das pessoas: do trabalho às atividades domésticas.

Capa da revista time com a estilista Claire McCardell.

Capa da revista time com a estilista Claire McCardell.Foto: Reprodução

 

O sucesso de Claire McCardell, considerada a mãe do american style ou american sportswear (como o ready-to-wear ficou conhecido), estava justamente em sua capacidade de imprimir elementos de moda ao vestido da dona de casa, à camisola de náilon e outras peças simples do cotidiano, como camisas e jaquetas. E o preço também ajudava. Seu primeiro vestido, lançado em 1943, custava 6,95 dólares.

O guarda-roupa idealizado por McCardell deu tão certo que seu sucesso foi um fenômeno global. Não demorou muito para que os franceses, então tidos como as maiores autoridades em moda, respondessem com sua própria versão do prêt-à-porter. Ainda assim, a visão dominante era de um estilo elitista, preços altos e um certo apego às tradições e aos rígidos códigos sociais.

Nessa mesma época, os EUA já estavam consolidados no cenário artístico internacional, não só com a moda, mas principalmente com o cinema, a música e uma ousadia pioneira vinda de uma juventude provocadora.

A batalha de Versalhes

No dia 8 de novembro de 1973, aconteceu um dos eventos mais épicos da história da moda: a Batalha de Versalhes. Com o objetivo de arrecadar fundos para a restauração do palácio do rei Luís XIV, a celebração colocou, de um lado, cinco grandes designers de moda norte-americanos (Halston, Stephen Burrows, Bill Blass, Oscar de la Renta e Anne Klein) e, de outro, os cinco estilistas franceses (Yves Saint Laurent, Pierre Cardin, Emanuel Ungaro, Marc Bohan e Hubert de Givenchy).

Desfile de Halston na Batalha de Versalhes.

Desfile de Halston na Batalha de Versalhes.Foto: Reprodução

 

“Os estadunidenses pegaram os franceses pelos pés. Apresentaram uma moda extremamente sofisticada, bem feita, criativa. Isso incomodou a França sem igual”, pontua João. Porém, o que garantiu a vitória da comitiva estadunidense não foram apenas os traços simples e a praticidade de suas roupas. Foi o que representavam: uma cultura e sociedade em movimento, dinâmica, assimilando elementos e valores das mais diversas áreas e culturas. A apresentação dos norte-americanos foi também bem mais diversa do que a dos colegas franceses. De 36 modelos, 10 eram negras. Ah, e a trilha sonora ficou por conta de Liza Minnelli. Ao vivo.

Mas e hoje, hein?

Com o passar dos anos, o estabelecimento dos EUA como potência global, as contribuições estadunidenses com a moda só aumentaram, ainda que muitas vezes subjugada como comercial demais ou pouco preocupada com as tradições europeias do métier. Teve o prenúncio do estilo college na década de 1960, quando o estilo esportivo finalmente passou a contemplar as mulheres, o boom do jeans e sua revolução jovem, na década de 1970, o glamour hedonista da era disco, a informalidade e psicodelia hippie, o brilho da cultura drag.

E é aí que a definição da moda feita nos EUA simplesmente como sportswear é limitante – e problemática até. Muitas vezes, ela ignora ou exclui manifestações culturais vindas de lugares, vivências e comunidades histórica e sistematicamente apagadas. O street-couture de Willi Smith, as criações camp de Patrick Kelly, a alta-costura da Pyer Moss e a interpretação em technicolor da cultura ballroom por Christopher John Rogers são tão dignas do rótulo de american style quanto o jeans e camiseta branca da Calvin Klein e o look preppy de Ralph Lauren.

Christopher John Rogers, ver\u00e3o 2021.

Christopher John Rogers, verão 2021.Foto: Divulgação

 

É interessante notar como o conceito sobre esse tal estilo norte-americano sempre caminho de mãos dadas com as mudanças sociais. “Quando falamos em american sportswear, falamos em comportamento, postura, história. Podemos falar de sportswear no disco, no hippie, em tudo que os EUA já contribuíram. Acredito que faz sentido sim”, ressalta João Braga.

Desde sempre o conceito que norteou o american sportswear não foi exatamente um look, mas o que ele representa sobre os valores e ideias da cultura local – livre expressão, rebeldia, autopromoção, democracia.Num momento em que questões identitárias, diversidade e sustentabilidade estão em pauta, faz sentido que elementos associados a essas pautas começam a transparecer na roupa e na moda.

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