Tudo novo, de novo

O upcycling não é uma tendência, mas sim uma forma diferente de fazer moda. Se você ainda não conhece, respondemos nesta matéria algumas dúvidas sobre a técnica.


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Re-Roupa Fotos: Vitoria Leona, Fernanda Pompermayer e Agência Fotosite.



A prática de reaproveitar materiais já existentes, como tecidos, aviamentos, roupas e várias outras coisas classificadas como ‘lixo’, ficou conhecida como upcycling. Antes de mais nada, convém explicar que não se trata de reciclagem. Enquanto esta se vale de processos químicos e maquinários para transformar materiais descartados, a técnica em questão consiste em adaptação e readequação quase sempre manuais. E o que começou de forma tímida e pontual, conta hoje com um olhar mais ampliado, por parte da iniciativa privada e da sociedade civil, devido a seu potencial de conscientização e remodelação da indústria.

É impossível precisar quando o upcycling surgiu na moda. Para Mirella Rodrigues, da marca Think Blue Upcycled, ”é algo novo e ao mesmo tempo universal e ancestral, afinal, quem nunca reaproveitou uma roupa?”. Foi em 2014, depois de conhecer de perto a indústria do jeans (um mercado líder no Brasil e também um dos mais poluentes), que nasceu a ideia de criar uma marca a partir das experiências e inquietações ali vividas. Hoje, seu foco é explorar outras possibilidades com essa matéria prima.

Mas mesmo sem data específica, é possível observar como o upcycling cresceu na última década, acompanhando o aumento de pessoas interessadas em conceitos de sustentabilidade aplicados à moda: 71% dos consumidores expressam maior interesse em negócios circulares, como aluguel, revenda e conserto. No YouTube, são vários os canais com tutoriais de customização ou transformação de uma peça de roupa. Já nas mídias sociais, como Tik Tok e Instagram, a hashtag upcycledcloting soma mais de 52 milhões de visualizações.

O luxo não fica de fora. Algumas maisons globais têm dado bastante atenção à prática. É o caso da Miu Miu, que lançou o Upcycled by Miu Miu, uma coleção de 80 vestidos garimpados em lojas vintage ao redor do mundo e transformados em peças exclusivas. A Louis Vuitton criou, em 2020, a coleção Be Mindful, que utiliza tecidos reaproveitados de coleções anteriores para dar vida nova a lenços, colares e acessórios de cabelo.

CSyP9MXK image 781Coleção Be Mindful, da Louis Vuitton, com tecidos de coleções passadas.Foto: Divulgação.

Cole\u00e7\u00e3o Be Mindful, da Louis Vuitton, com tecidos de cole\u00e7\u00f5es passadas.

No varejo convencional, algumas como a FARM tem incluído a prática com frequência em suas coleções. Outro exemplo foi a parceria da etiqueta carioca de upcycling MIG Jeans com a GANG e com a Youcom, ou ainda o projeto Empreendedoras da Moda, do Instituto Lojas Renner, que contou com a participação de Agustina Comas, fundadora da Comas. Porém, Mirella atenta para um cuidado: não esvaziar o conceito. ”Algumas grandes marcas podem usar o upcycling apenas como estética, mas na verdade ele é uma técnica”, analisa a designer.

E os acessórios?

O upcycling, na moda, não se restringe às roupas. Os acessórios também são abarcados – sejam eles bolsas, sapatos ou até jóias. O último é o mercado de atuação da Olsen K, fundada por Kika Olsen, em 2018, na cidade de São Paulo. Ela começou cedo, produzindo peças em prata quando tinha 16 anos. Cursou Gemologia [especialidade da geologia que estuda pedras preciosas] em Nova York, trabalhou em empresas do ramo e, depois um período de inquietação e busca por um negócio que tivesse impacto social positivo, criou sua própria grife.

gp9LDuRH image 782 scaledPingente e brincos da Olsen K.Foto: Divulgação.

A Olsen K produz brincos, colares, anéis e pulseiras com ouro ou prata reutilizados – às vezes, até da própria cliente – e com sobras dos processos de ourivesaria, como as lascas da lapidação das esmeraldas, diamantes, safiras etc. Isso subverte a lógica convencional da joalheria, que normalmente utiliza a parte mais transparente e ‘pura’ das pedras. ”As imperfeições são lindas, então começamos a criar um desenho de jóia para a sobra”, explica Kika. ”Com isso, pretendemos também criar uma nova fonte de renda para o lapidário”, complementa.

Falando de bolsas, cintos e sapatos, você já imaginou algum desses itens produzidos com pneus inutilizados de bicicletas, motos ou caminhões? A Isabela Sales já. A paraense de Belém criou, em 2017, sua marca homônima a partir de suas experiências com a graduação em design de moda e a vontade em trabalhar com sustentabilidade. Ela coleta a matéria-prima em borracharias parceiras ou até na beira da estrada. O pneu é um material difícil de ser reciclado, e isso também despertou sua atenção. ”Como temos coragem de produzir um material desse tipo, se não sabemos quando ele vai se decompor em massa?”, questiona

Nryl3pkV image 783Sapatos Isabela Sales Design.Foto: Divulgação.

É possível (ou necessário) fazer o upcycling em larga escala?

Os processos de upcycling são muito singulares e cada iniciativa desenvolve uma metodologia, seja para o garimpo dos materiais, encaixe ou desencaixe das peças, modelagem, acabamentos, comércio e marketing. Além de uma criatividade aguçada, a prática requer estudo e dedicação para ser feita com excelência. ”É quase um processo de alta costura. Você não cria repetidamente, é minucioso e carece de atenção e paciência”, explica Mirella. Por conta da temporalidade, diferente da moda convencional que coloca peças novas no mundo a cada segundo, surgem questionamentos sobre a possibilidade (ou impossibilidade) de produção em escala de roupas produzidas com a técnica.

Na visão de Mirella, precisamos de uma pergunta anterior: ”por que produzir em escala? Acho que esse não é o objetivo. Quando falamos em escala, falamos sobre todos os problemas que contemplam a indústria da moda. O upcycling voltou para rever as maneiras de produção, então a indústria deve se adaptar ao upcycling”, diz a designer. Para ela, só é possível trabalhar dessa maneira, se as indústrias pesquisarem e abraçarem genuinamente a causa.

A FARM pode ser um exemplo disso. A contemplação mais séria da circularidade veio com o aniversário de 20 anos da marca carioca, em 2017. A primeira coleção com peças sustentáveis, contudo, veio um ano antes, meio que em preparação para a nova fase. ”De lá para cá, tivemos diversos aprendizados, principalmente sobre adquirir a consciência que temos uma tentativa de lidar com a sobra de resíduos, mas que o ideal seja não sobrar nada”, fala Taciana Abreu, head de marketing e sustentabilidade da empresa.

Em 2017, a marca também começou uma parceria com Gabriela Mazepa, do Re-Roupa, um laboratório de produção de moda e ideias. São desenvolvidas coleções anuais de upcycling com tecidos, aviamentos, roupas com defeito e resíduos de corte. Ao todo, foram criadas quatro coleções Re-FARM + Re-Roupa, que transformaram mais de seis mil metros de sobras têxteis em 3115 novas peças.

kDUU7oIP image 784Preview da coleção Re-FARM, que chega às lojas em junho de 2021.Foto: Raphael Lucena.

A estilista trabalha com o upcycling há quase uma década e tornou-se referência na prática. Mas seu negócio, a Re-Roupa, não é só sobre produtos: “Vender é apenas um dos aspectos que estou interessada, quero que as pessoas pensem sobre como sua comida é feita, como podemos distribuir melhor a renda. Quero que elas questionem. A roupa é, na verdade, uma desculpa para isso.” Ainda neste ano, o Re-Roupa irá lançar um livro contando mais sobre sua trajetória.

Para Gabriela, a colaboração é uma etapa importante se queremos mudar os impactos negativos da moda. ”Se eu acredito no meu processo, tenho que propô-lo aos meus opostos. Então, é óbvio que trabalho com grandes marcas, afinal, quero que a indústria mude”, diz ela. E Taciana concorda. “A pergunta é como podemos nos juntar com outras empresas do mercado para fortalecer a reciclagem têxtil”, diz ela.

Segundo a head de marketing e sustentabilidade, “a meta da FARM é conseguir tratar 100% do resíduo têxtil, sendo o upcycling uma ferramenta, mas existem outras”. A marca tem projetos no escopo da circularidade com o Enjoei e Rede Asta.

Devia custar mais barato?

Algumas pessoas podem pensar que uma roupa reutilizada é mais barata, porque parece que a matéria prima vem ‘de graça’. Não é bem assim. São muitos os custos envolvidos. “Essa ideia de que um tecido ser doado ou garimpado é mais barato, não considera o fato de que alguém o coletou, higienizou, levou para confecção, ensinou para costureiras uma metodologia nova” explica Gabriela. “Hoje, tudo é mercadoria, vemos tudo como produtos e deixamos invisível a mão de obra por trás das roupas.”

Essa dificuldade de compreensão por parte do público foi relatada por todas as entrevistadas. Se faz necessário, então, um processo de educação sobre o que é o upcycling e as novas formas de consumir moda. Daí a importância de parcerias como a de Gabriela com a FARM. “Mais gente ouviu falar sobre isso. O mundo não precisa de mais roupa, precisa de novas ideias. E fazer roupa por meio do ‘lixo’ é uma maneira de falar sobre isso com as pessoas.” A Re-Roupa realiza oficinas e workshops por todo o Brasil, já criou em parceria com a Levi’s e desfilou na Casa de Criadores, em 2019.

C6JS7FJ8 image 785Figurino para o disco Taurina, da cantora e compositora Anelis Assumpção, 2018.Foto: Duda Portella.

Para Kika, o problema é que vivemos em uma sociedade ”que quer tudo muito rápido e barato”. Ela ouve bastante questionamentos sobre a qualidade e valor das jóias, mas explica que ”justamente por ser reciclado, tem um custo a mais”. A joalheira ainda destaca o pagamento justo para toda a cadeia produtiva, o que também impacta o valor final do produto. Já Isabela explica que ”não cobra necessariamente pelo material, mas sim pelo serviço.” Ela conta que, às vezes, demora mais de 10 horas para fazer uma única peça.

PRECISAMOS DE MAIS ROUPAS NO MUNDO?

Só no Brasil, foram produzidos 8,9 bilhões de itens de vestuário em 2019 (ABIT). O volume excessivo leva a um cenário de desperdício cada vez maior. Talvez, você já ouviu o dado da Fundação Ellen MacArthur de que ”um caminhão de lixo têxtil é desperdiçado no mundo por segundo”. Ou, então, talvez já tenha ouvido falar sobre a prática de queima de estoque. E estamos falando de queima literal, não de liquidação.

Muitas vezes, porém, não temos dimensão do que isso implica. Isso quer dizer que a mesma água que bebemos e o mesmo solo que plantamos nossa comida, está sendo poluído e prejudicado. E mais: o impacto na natureza não se dissocia do impacto na vida das pessoas, pois as minorias sociais (como mulheres, pessoas negras e pobres), são aquelas que mais sofrem com a crise climática, já que a mazela soma-se às opressões já vividas por elas.

FBEqNb9O image 786 scaledMirella Rodrigues no desfile da Think Blue Upcycled, na Brasil Eco Fashion Week, em 2018.Foto: Agência Fotosite.

A maneira convencional de fazer moda parece falhar com as pessoas e o planeta – e não é de hoje. Tampouco vai na conta de uma só marca ou pessoa. São diversos atores envolvidos, desde o setor público com a criação de políticas específicas, passando pela responsabilidade das empresas em lidar com seu próprio excedente até os cidadãos enquanto agentes da sociedade civil. Falta perceber os benefícios do upcycling: do fomento da economia (são mais de $500 bilhões perdidos anualmente devido à subutilização ou falta de reciclagem das peças) até a possibilidade de criar a partir de algo subvalorizado.

Trabalhar com upcycling é mais do que fazer só roupas. A técnica surge como alternativa ao sistema linear e efêmero de produção. ”É algo que traz possibilidades de refletir, de pensar. A moda é uma ferramenta de comunicação”, compartilha Mirella. Para ela, um dos momentos mais marcantes em sua carreira foi o desfile-manifesto Recortes Inquietos, realizado na Brasil Eco Fashion Week 2018. A estilista vê um poder democrático na técnica e vai de encontro ao pensamento de Taciana, que acredita que ”quanto mais as pessoas se apropriarem [dela] enquanto consumidoras, maior será a escala do upcycling no mundo.”

Já conhece?

Conheça abaixo cinco marcas de upcycling que mostram que, sim, dá para fazer diferente.

 

 

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