Comércio justo na moda pode fomentar a proteção da Floresta Amazônica

Com rastreabilidade, transparência e novas práticas de compra, Rede Origens Brasil conecta produtores de comunidades tradicionais e indígenas ao mercado e consumo responsável.


Pintura Kayapó



O território do povo Cinta Larga, localizado nos estados de Rondônia e Mato Grosso, sofre há décadas com o garimpo. A prática é uma das principais causas das contaminações e violências sofridas pelos indígenas e integra a longa e nada transparente cadeia do ouro, e pode ser ainda mais agravada com a possível aprovação do Marco Temporal.

Vendas ilícitas, exploração desenfreada e impactos socioambientais negativos são, infelizmente, práticas recorrentes em relações comerciais que envolvem as terras da etnia. Mas Carina Cinta Larga tem uma história diferente para contar.

A líder indígena faz parte da Rede Origens Brasil. Criada em 2015 pelo Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) e pelo Instituto Socioambiental (ISA), a entidade conecta produtos e produtores tradicionais e indígenas com empresas, organizações e consumidores, na missão de impulsionar alternativas econômicas e o comércio justo. “Quando participei da oficina da Origens, repassei todo aprendizado para as mulheres da minha comunidade”, fala Carina, de origem Cinta Larga e Suruí. “Fez uma diferença muito grande na organização das tabelas de preço, na valorização de cada peça, mantendo a cultura e também o cuidado com a floresta”, continua.

Em números, a Rede Origens atua com mais de três mil produtores e produtoras, movimentando 16.1 milhões de reais  em relações comerciais em seus cinco territórios de atuação: Xingu, Norte do Pará, Rio Negro, Solimões e Tupi Guaporé. “Começamos mapeando áreas protegidas que queiram ou tenham potencial de comercialização. Vemos se podemos agregar valor, e partirmos para um um processo de capacitação, cadastro e ideias de ofertas”, explica Patrícia Cota Gomes, gestora do projeto. 

Cestaria Mebengokre

Cestaria Mebengokre. Foto: Simone Giovine

Tudo fica concentrado na plataforma online da Rede Origens. Nela, é possível acessar a descrição completa de cada produto: quem fez, onde, qual são a técnica e o manejo utilizados. É um processo totalmente transparente. Patrícia conta que “a ideia era desenvolver um mecanismo para garantir a rastreabilidade dos produtos vindo de povos tradicionais e originários, usando a tecnologia para aproximar a floresta da cidade”. 

Além de deixar valor ao longo da cadeia, estimular a artesania, segundo Carina, mantém viva a memória de saberes culturais e ancestrais do seu povo. A artesã diz que “a moda traz essa visibilidade e vem como uma resistência”, ao se referir ao fortalecimento da sua própria comunidade durante o engajamento com a Rede Origens. “Vimos que as mulheres tem voz pra estar buscando nossos direitos”. 

 

Mejtire

Mejtire, palavra em Kayapó, é um superlativo de muito belo e verdadeiramente bonito. É ainda uma das formas que os indígenas da etnia Kayapó usam para referenciar suas artes e culturas. 

Eles são outro grupo que faz parte da Rede Origens Brasil. Por meio de sua própria organização, o Instituto Kabu, os indígenas produzem roupas, sapatos e acessórios que contam suas histórias e promove geração de renda e autonomia local. “O Kabu não queria ser fornecedor de matéria prima para grandes marcas, queremos ser uma grande marca”, explica Cleber Oliveira de Araújo, coordenador de Alternativas Econômicas Sustentáveis da entidade. 

Outras palavras em kayapó são piokaprin punure e piokaprin mej, que significam, respectivamente, dinheiro ruim que não beneficia a todos e dinheiro bom. Ambas são usadas por Cleber para exemplificar como o comércio ético e justo desenvolve uma cadeia de ‘dinheiro bom’. “Temos mostrado que a cultura, a floresta em pé e a geração de renda são benéficas para as comunidades. E isso se contrapõe ao garimpo e a exploracao ilegal de madeira. Todo tipo de ilícito com esse dinheiro ruim, tem um contraponto na renda boa”.

Detalhe borduna Kayapó.

Detalhe de borduna Kayapó. Foto: Simone Giovine

Hoje, os itens feitos pelos Kayapó rodam o mundo e tem uma lista extensa de parceiros. “A economia indigena é da abundância e da reciprocidade. A Rede é isso, é uma grande rede de relações”, acredita Cleber. Ele explica que “quando pensamos nos projetos, não pensamos como o mercado absorveria isso. Pensamos em como mostrar a história dos Kayapó e o que é importante para eles, numa experiência de ver que dá para criar um mercado ao invés de só se adaptar ao existente”. 

Um exemplo de produto são as alpargatas Kayapó. No site da Rede Origens, é possível encontrar o descritivo completo do calçado: são pintadas à mão pelas mulheres da etnia, de 11 aldeias das terras indígenas de Baú e Mekrãgnotire, no sul do estado do Pará; produzidas com matérias-primas recicladas e de baixo impacto ambiental e confeccionadas pela Perky, empresa do Rio Grande do Sul. Ainda, consta como o valor arrecadado com a venda é distribuído: 35% vai para a confecção e matéria-prima, 40% vai direto às artistas Kayapó, e 25% para o fundo comunitário do Instituto Kabu. Todos esses valores são decididos em conjunto, por meio de oficinas participativas. 

O manejo sustentável é outro pré-requisito para garantir que a produção seja, de fato, justa em toda sua extensão. Isso porque, segundo o coordenador, “atrapalhar um ecossistema para produzir um cesto, por exemplo, não é o tipo de mercado que queremos atingir. Manejo técnico e tradicional é um desafio porque está relacionado ao futuro da produção”, afirma.

 

Como a moda pode defender a Amazônia? 

Os impactos nocivos da moda são amplamente conhecidos e atingem todos os ecossistemas brasileiros, inclusive os amazônicos. O ouro usado nas joalherias pode estar marcado pelo garimpo ilegal, parte do couro usado em roupas e acessórios já apresentou indícios de ser oriundo do desmatamento, o algodão ocupa imensos espaços no cerrado e a transparência é pouca ou nula no setor. 

Mesmo assim, Cleber pontua que vale a pena adentrar nesse mercado. “É uma indústria totalmente poluidora, mas porque queremos estar nela? Pois os povos indígenas tem algo a oferecer. Não só as estampas, culturas e desenhos, queremos mostrar que é preciso repensar esse modelo econômico da moda e como respeitar os detentores de saberes indígenas”, diz. Ele destaca que casos de apropriação cultural e racismo no setor são comuns e, por isso, profissionais e marcas têm muito a aprender sobre como respeitar e defender os povos e terras indígenas.

Colar Kayapó.

Colar Kayapó. Foto: Loiro Cunha | Origens Brasil

Para Patrícia, a boa notícia é que existem instrumentos suficientes para efetuar a mudança. “Já temos conhecimento para fazer a rastreabilidade de produtos. Temos vários sistemas de certificação. A gente não precisa criar nenhum mecanismo novo, mas sim fazer com que o setor se comprometa e buscar investimentos para que os elos se adequem aos anseios do planeta. Temos uma urgência, e é a emergência”. 

Outro ponto crucial, que pode garantir a ética na moda, é a prática de compra. Muitas vezes, as marcas escolhem o fornecedor que produz mais barato, sem conhecimento de suas condições de trabalho ou seus impactos socioambientais, alimentando assim uma condição desigual. “Acredito que a indústria da moda tem que rever como remunera seus parceiros comerciais, principalmente os indígenas”, argumenta Cleber. “Eles não querem só doação, eles querem o reconhecimento que seu patrimônio cultural tem um valor muito grande, e ver que aquela relação [comercial] lhes agregou valor”, finaliza. 

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