Carros: ruim com eles, improvável sem eles?

Como a pandemia da Covid-19 deu todo um novo sentido para a cultura automobilística, que há tempos habita no nosso imaginário e a cultura pop.


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Os carros são quase mais numerosos que a humanidade e infinitamente mais barulhentos. Consomem grande parte de recursos naturais para se manter em funcionamento enquanto danificam outros tantos no caminho. Ocupam um espaço significativo das cidade onde vivemos e representam uma faceta individualista que é um dos males da sociedade moderna. E mesmo assim moldaram boa parte da cultura pop e de consumo e parece que não conseguimos viver sem eles.

Em um 2020 jogado de cabeça para baixo por conta da pandemia do novo coronavírus, o uso do automóvel vem ganhando, além das prerrogativas usuais de praticidade e conforto, o status inesperado de amuleto. Com quarentenas instaladas e campanhas de distanciamento social para evitar contágios, o #ficaemcasa vem sendo somado ao #nãosaiadocarro, com o vidro simbolizando uma máscara a mais de proteção.


Esse ambiente de “quarentena móvel” tem visto a criação de pequenas improvisações para manter o capitalismo acontecendo. O setor de shopping centers é um exemplo: a fim de tentar garantir um mínimo de fluxo de caixa durante as restrições a aglomerações, que mantiveram o comércio de portas fechadas, instalou pelo país vendas pelo esquema de drive-thru – porém, trocando o hambúrguer pelos itens das lojas das redes, em horários agendados, ou até mesmo testes rápidos para diagnóstico da covid-19. O jeito perfeito de lucrar em cima desse apego de quem vê o carro como um animal de estimação que não pode ficar parado em casa.

Outro efeito inesperado para 2020 foi o ressurgimento dos drive-ins ao redor do mundo. Grandes estacionamentos com telões de projeção, eles foram símbolo da glória automobilística nos subúrbios dos EUA entre os anos 1950 e 1960. Sessenta anos depois, tornaram-se alternativa de cultura – ainda que elitizada e nada friendly –, uma vez que as salas de cinemas tradicionais estão fechadas por causa da pandemia. Em Brasília, um drive-in clássico em atividade desde a década de 1970 teve ingressos esgotados subitamente. Um detalhe: o espaço comporta 400 poltronas, quer dizer, carros. Em São Paulo, iniciativas foram inauguradas em Santos e na capital, com a lanchonete atendendo via WhatsApp e proibição expressa de sair do carro – ir ao banheiro, só com agendamento via aplicativo.

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Esse formato também deu fôlego a outras vertentes culturais nesse cenário emergencial de pandemia. No Rio Grande do Sul, já aconteceu um espetáculo de circo com o público fechado atrás dos pára-brisas. Em Toronto, uma exposição imersiva sobre a obra de Vincent van Gogh foi adaptada para uma audiência motorizada. O músico dinamarquês Mads Langer fez um show ao vivo para 2 mil pessoas estacionadas, que recebiam o som ao vivo pelo rádio do veículo. Na Alemanha, raves de música eletrônica aconteceram em Schüttorf e Düsseldorf, com o formato se espalhando para Londres e cidades nos EUA. Um programa perfeito para quem gosta de dançar… sentado dentro do carro, com o DJ pedindo para que se toquem as buzinas. E em setembro, a marca americana Pyer Moss anunciou que sua nova coleção será apresentada numa espécie de drive-in fashion. Com epidemiologistas avisando que aglomerações no nível dos grandes festivais só deveriam voltar a acontecer lá para meados de 2021, é bom já ir se preparando para esse novo e esquisitíssimo normal.

CIDADES SOB RODAS

Quem olha para um cenário assim pode até pensar que os automóveis, principalmente carros particulares, sempre estiveram por aí. Mas, se a humanidade sempre inventou maneiras de facilitar a travessia de longas distâncias com o uso das rodas – e as primeiras tentativas de carroças sem animais já existiam na China do século 17 –, o carro contemporâneo é razoavelmente recente: a fabricação em massa tem pouco mais de 100 anos.

De 1913, quando Henry Ford organizou com sucesso a linha de produção em série, até os dias de hoje, muita coisa mudou na realidade prática automobilística. Hoje, estima-se que cerca de 1,5 bilhão de carros disputam espaço pelas ruas e estacionamentos do planeta – o que dá uma média aproximada de um carro para cada 5 pessoas vivas, no momento em que você lê este texto. Apesar de um vai e vem de crises nos anos recentes, segundo a OICA (Organização Internacional de Manufaturadores de Veículos Automotores), mais de 67 milhões de novos veículos de passeio foram produzidos no mundo em 2019 – contra 328 milhões de bebês no mesmo período.

Fato é que, para 2020, alguns futurólogos apostavam que a indústria automobilística estaria com sua fama na berlinda. Um dos fatores, além da crise ambiental da indústria do petróleo, seria o advento da gig economy, tão representada por aplicativos de carsharing como o Uber – quando você não precisa ter um carro para andar de carro. Somados a essa nova era, primeiros estudos sobre a geração Z (pessoas nascidas a partir da segunda metade da década de 1990), apontavam que esses jovens largariam mão do desejo do “meu primeiro carro”, que por tanto tempo foi símbolo da maioridade abastada nas gerações anteriores. Novas pesquisas, porém, mostram que o automóvel continua sendo um dos itens de consumo de primeira necessidade para mais de 65% dos entrevistados, segundo pesquisa da GfK de 2019. E mesmo que prefiram alugar um volante por um médio período do que ter a posse definitiva.

Esse novo jeito de pensar o carro pode não ter mais a fama de “membro da família”, como foi durante o boom industrial dos EUA nos anos 1950; nem ser símbolo de inclusão social como no Brasil da década de 1990/2000: a relação com o veículo deve se tornar um pouco mais pragmática. Para alguns jovens de hoje, inclusive, itens como potência e design teriam menos importância na compra do que fatores como ética e respeito ao meio ambiente.

A presença do automóvel, para desespero de progressistas da qualidade de vida, não parece tão disposta a desaparecer tão cedo. É um comportamento moldado pela influência poderosa da indústria automobilística, dominada hoje em dia pela China e com importância crucial no parque fabril de diversos países – incluindo o brasileiro, com mais de milhão de pessoas empregadas. Mas é também reflexo da tessitura das grandes metrópoles, que têm seu planos de mobilidade urbana focados nos veículos particulares, com prioridade para autopistas em detrimento da caminhabilidade, do transporte público ou de alternativas mais sustentáveis, como o uso de bicicletas. Estas, no caso, estão relegadas a duas pontas: as camadas mais pobres da população, centrada nas periferias, que adotam esse meio por necessidade, e núcleos de classe média que adotam a alternativa por utopia e ativismo.

UMA CULTURA POP E AUTOMOBILÍSTICA

A presença dos carros na cultura pop é uma constante desde a sua invenção. Essa retroalimentação acontece desde então, a fim de convencer o público que a posse de um automóvel é um direito e um dever inalienável de qualquer um; empurrando para o lado discussões sobre coletividade ou bem estar nos centros urbanos em favor de um certo… charme inflexível.

Não à toa, esse pensamento foi construído durante décadas pela indústria cultural dos EUA, que teve predominância no nosso imaginário com o uso do cinema durante boa parte do século 20 – ao mesmo tempo em que o país era a grande força de arranque do setor automobilístico. A construção desse cenário foi feita de mãos dadas e sobram exemplos que você tem aí no fundo da sua mente. Pode ser o fusquinha divertido Herbie ou o Batmóvel, a máquina do tempo sobre rodas de “De volta para o futuro”, o conversível de “Thelma e Louise” ou os charmosos volantes de “Green book: o guia” e “Conduzindo Miss Daisy”. Os carros são coadjuvantes de luxo – ou muita vezes bons protagonistas – de uma lista inumerável de filmes. Com a invenção dos “road movies” eles ganharam até seu próprio gênero cinematográfico.

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Em paralelo, o uso maciço do automóvel nas telas ajudou a levar os carros para o campo masculino, reforçando a ideia de que automóvel é “coisa de homem”. É algo que era visto com naturalidade no fim do século 19, quando eles começaram a ser produzidos e as mulheres tinham pouca participação prática na sociedade, mas que foi perpetuando-se na tela à medida que elas se desamarravam na vida real. Para cada Grace Kelly dirigindo pelas paisagens de Mônaco em “Ladrão de Casaca” ou Charlize Theron atropelando figurantes em “Mad Max: Estrada da Fúria”, há uma dúzia de 007s, James Deans, Vin Diesels e Steve McQueens para forçar a barra no sentido de que os rapazes são muito mais interessantes ao volante.

Steve McQueen, inclusive, é um bom exemplo de como a indústria automobilística tem conexões potentes com uma parente nem tão distante: a moda. No final dos anos 1960, dirigindo nas telas com “Bullit”, o ator era o supra-sumo do homem cool com seus óculos Persol, blazers de veludo cotelê e luvas de couro. Apaixonado pelo assunto, colecionava carros na vida real e ditava moda dirigindo no cinema.

MODA AO VOLANTE

A criação de moda e de automóveis, ambas filhotes da Revolução Industrial, se cruzaram bastante durante o século 20. A primeira intersecção veio por conta de Alfred Dunhill, agitador inglês que herdou a selaria do pai aos 21 anos, em 1893. Esperto, ele viu que a classe alta estava começando a dividir atenção entre as cavalariças e os primeiros carros e passou a produzir itens de couro para esse universo, especialmente trajes de proteção usados sobre as roupas. Resolveu assim o problema dos passageiros que, com os carros da época totalmente abertos, chegavam aos destinos cobertos de poeira das estradas. O negócio evoluiu, ele abriu suas primeiras flagships em Londres oferecendo uniformes para choferes e produtos de luxo para entusiastas do universo automobilístico e a Dunhill está aí até hoje como um dos clássicos do menswear britânico.

Mas não pense que a influência motorizada é restrita ao campo masculino: um dos maiores ganhos dessa troca foi a evolução da bolsa de mão. Antes um mero utilitário para carregar moedas ou como acompanhamento de bagagens em viagens de trem, a handbag começou a se tornar um item de design a partir da necessidade de um lugar para guardar as luvas do motorista – preciosos itens de proteção ao se guiar carros que não tinham pára-brisa. Os volantes ficaram mais anatômicos, os carros mais fechados, e as luvas caíram em desuso. Restaram as bolsas, que ainda sustentam boa parte do mercado de luxo.

A própria Coco Chanel não negava que a invenção do seu little black dress, em 1926, só foi possível pois as mulheres estavam finalmente se livrando de indumentárias exageradas e que o fato de ter um carro para se locomover foi um dos fatores que facilitaram a absorção desse dress-down. Tanto que a imprensa da época comparou o vestido com o Model T, primeiro carro popular produzido por Henry Ford, sucesso de vendas por 20 anos. Assim como a criação de Chanel, ele tinha linhas modernas para a época, era relativamente acessível e era… preto. Ford chegou a dizer que “o consumidor pode ter seu carro pintado de qualquer cor que quiser, desde que seja preto”. Chanel concordaria.

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O Model T, da Ford, à esquerda, e Coco Chanel.

Essa troca entre os dois campos sempre foi construída na base da praticidade e da identidade. “Na época da Chanel existia a ideia da simplificação do luxo, depois dos exageros do Belle Époque. Então o carro e a roupa vão seguindo esse mesmo momento de transformação da sociedade”, reflete Fernando Hage, professor de moda da FAAP. “Dentro desse contexto de modernidade, quando os dois objetos vão acompanhando o estilo de vida de uma pessoa, uma coisa influencia a outra. O carro que você dirige e o jeito que você se veste se tornam maneiras de mostrar a sua personalidade”.

Essa lógica vai fazendo mudanças nos costumes, sejam duradouras, como a diminuição do uso dos chapéus, que não cabem mais sob os capôs dos carros, ou marcos de época, tipo as meias brancas da época da brilhantina, usadas para combinar com as calotas de borracha branca que decoravam os pneus nos anos 1950. Hage aponta também o quanto a cor dos carros conversa com o vestuário e serve como marcador de tempo e de tendências: “são algumas questões de identidade visual que viram mais um objeto que ajuda a reconhecer o estilo de vida da pessoa. Como os carros marrons e musgo, que eram tão característicos dos anos 1970. Ou aqueles modelos que tinham um traço lateral com um tom diferente e que tinham as mesmas referências das camisas pólo da época, um padrão visual parecido”.

Mas com o passar do tempo, houve um esgotamento de ambas as indústrias na invenção de formatos ou revolução de grandes modismos. Como escreveu Machado de Assis (antes do primeiro carro sair às ruas), “o gosto da carruagem seria diminuto, se todos andassem de carruagem”. Daí que essas intersecções entre garagem e guarda-roupa começou a se voltar cada vez mais aos detalhes, seja nos materiais ou a uma certa ostentação de luxo com a troca de assinatura entre montadoras e grifes. Por aqui, Clodovil já assinou um Monza nos anos 1980 e Ocimar Versolato, um Citroën vinte anos depois. Fora, Gucci, Versace e Hermès foram algumas que também tiveram lançamentos automobilísticos. Já houve até edições limitadas da Levi’s com os bancos coberto de denim.

Hoje, em vez de tentar vender carros assinados por estilistas, as montadoras de luxo estão tentando vender a própria moda. A Zegna, por exemplo, tem uma parceria duradoura com a Maserati, disponibilizando em suas lojas uma linha de roupas e acessórios com o logotipo dos carros. Ao mesmo tempo, a grife oferece os tecidos dos seus lanifícios para estofamento dos bancos. Ricardo Almeida, no Brasil, é embaixador da Mercedes-AMG, para quem desenhou coleções-cápsula. A francesa Bugatti, cujo carro mais barato sai por volta de 2 ou 3 milhões de dólares, tem seus próprios produtos fashion.

É uma última cartada de uma indústria que, por mais que tenha presença garantida na vida contemporânea, não é mais tão bem vista assim. E, assim como a moda, está em crise na área de inovação e no footprint histórico – há muito mais carros no mundo do que o necessário, assim como há muito mais roupas. Ao mesmo tempo, ambas as indústrias foram atropeladas, nos últimos dez anos, pela tecnologia – que é de onde vem as últimas grandes novidades que movimentam o desejo atual.

Mas, enquanto a moda patina nesse assunto, as montadoras abraçaram de vez os computadores e estão tentando uma sobrevida com essa nova parceria. Seja nos estudos para automóveis que se dirigem sozinhos, seja nos modelos elétricos e ecologicamente “corretos” representados por Elon Musk e sua Tesla. O futuro ainda é incógnito, mas pelo visto está seguindo a estrada do “algo deve mudar para que tudo continue como está”.

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