Outras economias para outras modas

Entenda os conceitos da economia compartilhada e economia circular e conheça iniciativas que materializam essas práticas na moda.


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Imagine outras economias. Compartilhamento, colaboração, criatividade e circularidade se apresentam como alternativas à hegemonia econômica baseada na acumulação, competitividade e desigualdade que hoje regem o sistema da moda e tantos outros. Cada vez mais, suas mazelas sociais e ambientais são difíceis de remediar ou esconder: todos os anos, a cada cinco peças de roupa produzidas, três vão parar em aterros (Global Fashion Agenda) e o vestuário é a segunda categoria de produtos com maior risco de escravidão moderna (Walk Free Foundation).

“Quando falamos de economia, falamos dos jeitos que os recursos transacionam entre as pessoas”, explica Mari Pelli. Desde 2014, ela realiza projetos pautados pela colaboração e, em 2017, criou um aplicativo de trocas de roupas usadas chamado Roupa Livre (atualmente inativo por conta da pandemia de COVID-19). Em sua visão, quando falamos destas novas economias, damos “nomes diferentes para práticas distintas, porém complementares, e todas com um destino comum: construir um futuro seguro e justo para todos os seres”. As definições não se esgotam ou são unânimes, pois as experiências não estão concluídas tampouco são perfeitas. Para auxiliar na compreensão, listamos as diferenças e pontos de encontro entre elas, junto de iniciativas referências na moda:


A Economia Compartilhada e Economia Colaborativa surgem como formas de distribuir e horizontalizar recursos pré-existentes. “Tem a ver com o jeito de se organizar; é uma forma de gestão onde a gente se junta e cada um faz um pouco para darmos conta do recado”, diz a futurista e pioneira em novas economias Lala Deheinzelin, que criou uma metodologia de gestão estratégica para implementação destes novos modelos, chamada Fluxonomia4D. O foco da economia compartilhada e colaborativa é conseguir acessar, mais do que possuir. São redes de pessoas unidas com um objetivo e uma resolução em comum; parece um pouco óbvio, mas, na verdade, contradiz a narrativa econômica da competição e do “não tem para todo mundo”.

Muitas vezes, é listada junto da indústria 4.0 e de plataformas digitais, mas a prática não é necessariamente nova. A solidariedade e formação de redes colaborativas de trocas, produção e consumo é recorrente desde comunidades de povos originários até as comunidades periféricas. Na moda, as experiências passam por armários coletivos, guarda-roupa de aluguel, plataformas para trocar roupas usadas, bibliotecas de modelagens, bancos de tecidos e também encontros, debates e conversas que a desenvolvem no campo imaterial.

Já a Economia Criativa se volta para os recursos intelectuais, culturais e criativos que geram valor econômico. É um modelo de negócios pautado na criatividade e no campo simbólico de ser, fazer e produzir, onde a diversidade é um dos maiores atributos. Deheinzelin explica que a busca é pela compreensão de que “o valor daquilo que faço não está na coisa em si, mas no seu propósito, na sua comunicação, na forma como é feito, na sua reputação e historico”. No Brasil, a Economia Criativa gera um milhão de empregos formais e faz parte da Secretaria Especial da Cultura.

Além do consumo, precisamos igualmente atentar para as formas de produção. É nesse contexto que a Economia Circular se apresenta, pautada por 3 princípios: eliminação de resíduos e poluição desde o princípio, manutenção de produtos e materiais em uso e regeneração de sistemas naturais (Ellen MacArthur Foundation). A natureza é a própria referência para esse desenrolar, o que estabelece dois ciclos: o biológico e o técnico. No primeiro, tudo que vem da terra (os materiais biodegradáveis) deve voltar para ela de forma segura e saudável. No segundo, os recursos limitados (como o plástico) devem integrar uma cadeia fechada e serem aproveitados continuamente. Na moda, exemplos de circularidade são o upcycling e a reciclagem.

A Ideia Circular é uma iniciativa de educação e comunicação sobre design e economia circular no Brasil. Sua fundadora, Léa Gejer, cita a publicação do livro Cradle to Cradle (C2C) (do Berço ao Berço, em português), em 2002, por William McDonough e Michael Braungart, como um dos marcos do movimento e hoje a obra é referência nos trabalhos da Ideia. Para ela, uma forma de materializar os processos circulares é estabelecer critérios bem definidos de usos e medidas. Seu exemplo é o Instituto Cradle to Cradle de Inovação de Produtos, localizado nos Estados Unidos, que certifica produtos em cinco níveis, de acordo com cinco critérios: saúde dos materiais, circularidade dos produtos, energia renovável e clima, gestão da água e justiça social.

Nesse horizonte, é importante não perder de vista a real proposta de cada iniciativa. Por exemplo: a economia compartilhada está projetada para crescer em US$ 335 bilhões até 2025 e pode ser tão grande quanto o varejo em 2022. Mesmo com essa crescente, ainda lutamos contra enormes desigualdades (2.153 bilionários detém mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas (60% da população mundial) e crise climática. Não é raro propostas serem cooptadas e embaladas para parecerem subversivas, quando, na verdade, são apenas reproduções capitalistas. “A gente ‘produtificou’ tudo, então até colaboração virou produto”, diz Pelli. “Se não temos uma meta maior, entendendo a complexidade do sistema econômico como um todo, podemos estar tornando mais eficiente a lógica do sistema vigente. Precisamos enxergar as novas economias como caminhos para fazer fissuras, abrir brechas para outros sistemas”, conclui.

Tornando moda compartilhar

Olhando para as periferias, podemos ver o centro das novas economias na moda. “Quem nunca frequentou o guarda-roupa de tia, prima ou avó por necessidade? Acho que a periferia sempre dita sobre criatividades de consumo”, diz Daniela Ribeiro, sócia fundadora da Roupateca, uma biblioteca de roupas. “O que estamos fazendo é algo que está envelopado, ainda dentro de um contexto de privilégios, mas que acontece em muitos lugares de maneira cultural”.

Criada em 2015 na capital paulista por Ribeiro, a iniciativa “existe para fazer com que as pessoas percam o interesse em consumir de forma não criteriosa” e possam estabelecer outra forma de usar roupas, para além dos padrões convencionais de só comprar. “O que a gente sente é que as pessoas estão cada vez mais abertas a se relacionar com o consumo por meio do compartilhamento”, diz a fundadora. De fato, pesquisas da Ellen MacArthur apontam que 71% dos clientes expressam maior interesse em negócios circulares, como aluguel, revenda e conserto.

Comprar roupas sem necessariamente possuí-las pode ser uma forma de subverter a lógica vigente da moda, mesmo que por brechas. Ao mesmo tempo, tornar acessíveis alguns dos processos produtivos também é importante. O Ateliê Vivo (São Paulo – SP) é um exemplo: o espaço funciona como uma biblioteca de modelagens, uma escola e um laboratório têxtil. “[O Ateliê] propõe o encontro de tempo entre as pessoas para potencializar a economia experimental sobre processos criativos”, explicam Gabriela Cherubini e Flávia Lobo, integrantes do coletivo do Ateliê. As co-fundadoras, porém, questionam a chamada economia compartilhada: “esse termo tenta representar dentro da economia, dentro do capital, uma coisa que é espontanea”, dizem.

Colaborar para criar realidades

Riqueza, no mundo, não falta. O que falta mesmo é distribuição. Manter um sistema econômico focado em acumulação, competição e livre mercado faz com que as desigualdades sociais virem abismos: no Brasil, a renda do 1% mais rico é 34 vezes maior que a renda da metade mais pobre (PNAD/IBGE). Tal pavimentação econômica injusta começou na corrida colonial com a escravização de corpos negros e indigenas, amadureceu com a exploração de mulheres mediante o trabalho doméstico (que recai ainda mais sobre as pretas e pardas), e mesmo após a abolição, advento da modernidade e revoluções industriais, mantém-se firme explorando os mesmos de antes.Co

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Costurando Sonhos.Foto: Reprodução Costurando Sonhos.

Costureiras em servi\u00e7o no projeto Costurando Sonhos

Foi para isso que Suéli do Socorro idealizou, em 2017, em Paraisópolis (SP), o Costurando Sonhos, um negócio social que promove a capacitação e geração de renda, por meio da costura, para mulheres de várias comunidades do Brasil. Hoje, já difundido para outras periferias do país, tornou-se também uma marca. “A moda tem seus problemas, mas estamos conseguindo fazer transformação social por meio [dela]”, compartilha Socorro. Para ela, trabalhar em rede deve ser gerúndio se pretendemos remediar desigualdades sociais, raciais e de gênero. “O trabalho perto da casa [da mulher periférica] é muito importante, gerar renda local é muito importante. Quando você gera renda para uma pessoa, você gera renda por todo o entorno dela”.

Outra modalidade comum que personifica a economia colaborativa na moda são as lojas com várias marcas residentes, as lojas colaborativas, como a Agridoce. Localizada em Feira de Santana, na Bahia, foi fundada em 2016 por Milena Lopes Costa e tem, atualmente, 50 etiquetas integrantes. O foco é abrigar afroempreendedoras e mães, oportunizando um espaço para que essas mulheres negras possam desenvolver seus negócios – algo que o racismo estrutural muitas vezes impede. “Observamos o quanto é empoderador ter essa liberdade financeira para mulher ter uma fonte de renda, até pra ter acesso à maior conhecimento”, diz Costa. Com um sistema no qual cada marca aluga um espaço de acordo com suas necessidades, a fundadora reitera que, na loja, o compartilhado não é apenas o físico, mas também as experiências de vida.

Do linear para o circular

Nosso planeta é finito, mas os modelos convencionais de fazer moda ignoram essa realidade. Das fibras usadas para produzir roupas hoje, 87% é aterrada ou incinerada – o equivalente a queimar um caminhão de lixo cheio de tecidos a cada segundo. Outros 13% são reciclados de alguma forma, 12% são reciclados para usos de baixo valor e apenas 1% é reciclado em novas peças (Ellen MacArthur Foundation).

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Parceria MIG Jeans com Lojas GANG.Foto: Divulgação

A necessidade de ressignificar tanto desperdício foi um dos impulsos para a carioca Mayra Sallie, ao lado de Isa Rodrigues e Luana Depp, criar a MIG Jeans, em 2013. Inicialmente como brechó, passou por marca de upcycling e, hoje, é um hub de projetos focado em trabalhar criativamente os resíduos do jeans, que se desdobra entre colaborações com marcas e empresas e projetos educacionais. “Respeitar os processos da cadeia da moda é nossa prioridade, pois o trabalho que fazemos é voltado para as pessoas abrirem os olhos e os corações para darem chance às novas peças e produtos”, conta Sallie. A aposta da MIG Jeans segue o desenhado para os próximos passos da moda, com um mercado de segunda mão projetado para alcançar quase duas vezes o tamanho do fast-fashion em 2029.

Para o head de feminino da C&A Brasil, João Souza, “só os materiais sustentáveis no desenvolvimento de produto não são suficientes” e devemos “pensar como o [ele] se comporta na cadeia como um todo”. A marca é uma das grandes varejistas que têm olhado, ainda de forma tímida, para questões de circularidade na moda. Em 2017 criaram uma coleção com a certificação Cradle to Cradle (C2C) e, no mesmo ano, implementaram pontos de coletas de roupas usadas, de qualquer marca, em mais de 160 de suas lojas pelo país. Ao todo, já foram coletados mais de 100 mil itens. Destes, 70% foram encaminhados para reutilização e os outros 30%, para reciclagem.

Como pavimentar outras economias?

Olhar além do que os olhos podem ver não é só poesia. Superar a narrativa econômica baseada em lucro e acúmulo vem a partir de um novo olhar sobre o que produzimos, consumimos e como habitamos no mundo. O desafio é fomentar essa lente mais sensível às humanidades do que ao PIB, encontrando outras formas de medir sucesso e prosperidade. “A primeira coisa que trabalhamos é para que as pessoas enxerguem os recursos que elas têm além do monetário”, diz Deheinzelin.

O enredo exige a atuação de múltiplos atores e soluções, ante problemas tão complexos. No caso dos negócios convencionais, traçar uma mudança transitiva é essencial, mas para Pelli, falta um esforço genuíno das grandes marcas em de fato mudar. “[As empresas dizem] ‘eu posso reciclar, desde que eu continue vendendo minhas roupas por mês e desde que eu não mude meu modelo de negócios'”, comenta ela. Muitos tentam colocar essa responsabilidade de mudanças apenas na conta de quem consome. Segundo Gejer, “a responsabilidade do consumidor é mais ética, mas a indústria é a maior responsável por aquilo que ela coloca no mundo.”

O Estado também tem um papel chave a cumprir. “O que vai transformar mesmo, em grande escala, é quando o poder público assumir sua função. Acredito muito que [ele] precisa abraçar essa causa e criar políticas públicas para que consigamos avançar na economia colaborativa”, afirma Socorro. Como exemplos de intermediações promissoras, Gejer cita a Política Nacional dos Resíduos Sólidos (PNRS), e Pelli, a Renda Básica Universal. Já para Costa, o essencial seriam legislações que compreendam essas novas modalidades econômicas: “É um negócio diferente, as leis de contabilidade não se aplicam em totalidade a esse modelo”, explica.

O que dá sentido à vida, afinal, não é a acumulação de riquezas e a competitividade. Tampouco é isso que dá sentido à moda. Se ela é sobre criatividade e expressão, por que não desinventar a velha economia e inventar outras formas de transacionar recursos, baseadas no bem-viver, suficiência, solidariedade, bem comum e celebração da diversidade? Deheinzelin responde: “a moda é uma narrativa e tem um potencial agregador de promover mudança de hábito imenso.” Que possamos aproveitá-la, então, para criar sistemas justos e humanos, e não só reproduzir dogmas falidos.

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