Pessoas ainda são forçadas a produzirem roupas. O que podemos fazer?
No Dia Nacional de Combate ao Trabalho Análogo ao Escravo, contamos sobre iniciativas públicas e da sociedade civil e explicamos como contribuir para pôr fim a tais práticas.
Das 150 bilhões de peças produzidas no mundo, muitas são feitas de maneira forçada. O trabalho análogo ao escravo, também chamado de escravidão contemporânea, ainda é recorrente na indústria têxtil e da moda e assola todo o globo: dados do Índice de Escravidão Moderna (2018) apontam que 354 bilhões de dólares em itens produzidos sob essa violação tem o risco de serem importados por países do grupo G20; deste montante, mais de ⅓ são peças de vestuário. Com a pandemia, a ONU alerta para um possível aumento do crime.
No Brasil, políticas públicas de fiscalização e combate ocorrem desde 1995, mas foi em 2003 que o país firmou uma série de compromissos perante entidades internacionais de Direitos Humanos e tipificou melhor o crime. As operações no meio urbano eram bastante incomuns – por isso, o primeiro resgate de um trabalhador no âmbito da moda, numa oficina de costura, ocorreu oficialmente apenas em 2010. Na época, era difícil compreender que a violação não acontece apenas no meio rural, mas também nas cidades. Toda essa trajetória foi compilada no livro Trabalho Escravo na Indústria da Moda em São Paulo, lançado hoje, 28, pelo Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho – SINAIT.
Livia Ferreira, auditora fiscal do trabalho em São Paulo (SP), explica que a auditoria ocorre mediante “denúncias e com atividade planejada, que inclui o monitoramento de alguns setores problemáticos”, como o do vestuário. Elas podem ser feitas pelos próprios trabalhadores ou organizações da sociedade civil. Quando um empregador é auditado, fica a seu encargo fornecer toda a assistência (alimentação, moradia, rescisão, etc.) para o resgatado. Os auditores acompanham até o fim desse processo, mas Ferreira compartilha que na cadeia da moda “o procedimento demora mais, porque esse trabalhador está submetido não ao real empregador; precisa ir subindo as camadas de produção e repasse até verificar se existe outro [envolvido].”
Existe um padrão?
Seis milhões era o número de pessoas escravizadas nas Américas em meados de 1850. Hoje, 133 anos após a abolição da escravidão no Brasil, a vulnerabilidade chega primeiro em quem já tem um passado de exploração: a cada cinco trabalhadores resgatados em situação análoga à escravidão, entre 2016 e 2018, quatro eram negros. Pretos e pardos são ainda os mais empurrados para a marginalização que os impede de acessar direitos universais como moradia, saúde, alimentação e trabalho digno.
“[Eles] são envolvidos por falsas promessas de emprego, e quando chegam nas oficinas ficam em isolamento geográfico, servidão por dívida, jornadas exaustivas, todos habitando o mesmo cômodo, sob risco de incêndio e acidentes, trabalhando até 17h por dia” – Gustavo Accioly, procurador do trabalho.
Somamos a isso o fator gênero. No âmbito nacional, a maioria dos trabalhadores resgatados são homens, mas quando analisado apenas o setor têxtil e do vestuário, o número fica meio a meio. “Em São Paulo, o número de mulheres [resgatadas] aumenta e isso se deu por conta da fiscalização no âmbito da costura”, diz Ferreira. A realidade acompanha o contexto da modalidade de trabalho onde as fábricas estão nas próprias casas. “Há um certo flerte da atividade da costura com o trabalho doméstico, que supostamente se desenvolve no âmbito residencial, no sentido de que a mulher é responsável pela atividade da casa, de cuidar dos filhos… e da costura”, complementa a auditora. A maioria dessas mulheres são mães, muitas vezes condicionadas a deixarem seus filhos sob os pés das máquinas, o que alarga a violação e afeta o desenvolvimento pleno das crianças e adolescentes.
A superexploração é recorrente no setor têxtil desde o século passado, de norte a sul do Brasil, mas, em São Paulo, o crime está bastante vinculado à imigração. Na capital paulista (pólo que concentra 27% da mão de obra brasileira empregada na indústria têxtil) os bolivianos se tornaram a maioria dos imigrantes. Muitos chegam na cidade para trabalhar em oficinas de costura por meio do tráfico de pessoas. “[Eles] são envolvidos por falsas promessas de emprego, e quando chegam nas oficinas ficam em isolamento geográfico, servidão por dívida, jornadas exaustivas, todos habitando o mesmo cômodo, sob risco de incêndio e acidentes, trabalhando até 17h por dia”, explica Gustavo Accioly, procurador do trabalho.
Tal realidade perversa foi uma das motivações para o procurador criar, junto do Ministério Público do Trabalho, Organização Internacional do Trabalho e Unicamp, o projeto “TRABALHO ESCRAVO NUNCA MAIS #somoslivres”. Segundo ele, a ação pretende oferecer “uma oportunidade para criar e estimular a economia criativa de pessoas que já estiveram nessa situação de vulnerabilidade extrema, para chamar a atenção dessa mazela social”.
“A primeira etapa é o lançamento do nosso manifesto”, diz Accioly, um dos idealizadores do projeto. Trata-se de uma linha de camisetas assinadas pelo designer Eugênio Santos e confeccionadas por cidadãos que já foram submetidos a condições de trabalho escravo. As peças foram fotografadas pelo fotógrafo Guilherme Licurgo e serão lançadas nesta quinta-feira (28.01).
Além disso, a iniciativa ainda prevê um curso de corte e costura ministrado por Reinaldo Lourenço com objetivo de promover a inserção no mercado e a capacitação profissional. Ao longo de dois meses, os alunos produzirão quarenta looks no ateliê do estilista com auxílio dos profissionais Jeff Benício (especializado em história da moda e no cenário atual do mercado), Patrícia Martins (modelagem, corte e costura) e Eumira Silva (chefe de costura da marca de Reinaldo). Ao fim de todo o processo, no dia 8 de março, um desfile no Museu de Imigração do Estado de São Paulo, com styling de Yan Accioli, será transmitido por ELLE, parceira do projeto e responsável pela curadoria dos talks que acontecerão até lá.
Esperanças perdidas, esperanças resgatadas
“Trouxeram a gente com muita ilusão de esperanças que ia ser melhor”, compartilha Maria Rosa Nina, que faz parte do projeto “TRABALHO ESCRAVO NUNCA MAIS”. Costureira, ela viu seu sonho se tornar um pesadelo quando chegou da Bolívia em São Paulo, no ano de 2010. Seus dois filhos foram privados de estudar e ela foi condicionada ao trabalho análogo ao escravo em uma oficina de costura. Aos poucos, foi percebendo sua condição injusta e procurou formas de sair do trabalho forçado. Foi quando conheceu uma pessoa que ajudou na sua documentação e, assim, ela se apoderou dos seus direitos enquanto humana. “Foi pelos meus filhos. Consegui me libertar, abrir minha oficina e consegui que meus filhos voltassem a estudar.”
A costureira Maria Rosa Nina com camiseta-manifesto do projeto TRABALHO ESCRAVO NUNCA MAIS #SOMOSLIVRESFoto: Divulgação
Nina só começou a gostar da costura quando experienciou a liberdade. Antes, era sinônimo de violação. “Foi só quando consegui minha liberdade e comprei minhas máquinas, porque cada peça que se faz não é simples para mim; faço pensando em quem será que vai vestir, como vai vestir. Aí eu descobri que gostei”. No projeto, ela tem aprendido novas técnicas para aperfeiçoar seu trabalho e confidencia: “estou adorando, é uma oportunidade grande que está alcançando muitas pessoas. Eles [outros participantes] vão espalhar que todos, imigrantes ou não, temos direitos”. Ela cita como essencial o trabalho de entidades como o Ministério Público e organizações para que as pessoas conheçam seus direitos e saiam dessa condição. A história de Nina foi captada pelo Instituto Alinha, no documentário “Linhas Tênues”.
Nilton Vargas experienciou essa promessa nunca cumprida. Na Bolívia, ele sonhava em ingressar na faculdade, mas em 2007 mudou de rumo e veio para o Brasil em busca de duas coisas: seu irmão e um trabalho melhor. O primeiro ele encontrou, já o segundo, nem tanto. “Era difícil, a gente trabalhava até tarde, meia noite ou uma hora da manhã, aos sábados e aos domingos”, relata sobre seu primeiro emprego no país. Felizmente, ele conseguiu voltar para sua terra natal em 2008 e regressou a São Paulo em 2010 para trabalhar em uma oficina de costura com maior estabilidade e direitos básicos.
Ao longo da sua trajetória, Vargas participou de programas do Centro de Apoio e Pastoral do Migrante (CAMI), que oferece acolhimento e orientação aos imigrantes e refugiados para lhes assegurar seus direitos. Para ele, o acesso à informação é determinante para os trabalhadores saírem da condição de exploração. “Os cursos ajudam muito a saber quais nossos direitos como trabalhador”, conta, se referindo aos programas do CAMI e outros dos quais participou. Hoje, ele contraria as estatísticas. O costureiro tem sua própria oficina com cinco funcionários, conseguiu separar a casa do trabalho e cumpre jornadas normais de trabalho. “Muitas firmas procuram mão de obra barata, oferecendo R$ 5, R$ 7 por peça, mas minha oficina é certinha, tem contrato de trabalho e estou com a carteira pronta para assinar.”
Por que isso perdura na moda?
O embrião do trabalho análogo ao escravo, na moda e em qualquer seara, são as mazelas sociais geradas por um sistema econômico que se esforça em desumanizar pessoas. “Se a gente não tivesse uma população vulnerável, ela não seria explorada”, afirma Mércia Silva, diretora executiva do Instituto Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (InPacto). “Tem município que não tem creche, hospital, escola, transporte. Você deixa todos à mercê do que qualquer iniciativa pode oferecer”, conclui. A InPacto é uma organização que elabora estratégias setoriais para o enfrentamento do trabalho escravo em cadeias produtivas, convocando empresas para sua responsabilidade. Recentemente, a ONG lançou um Índice de Vulnerabilidade: ferramenta que cruza dados e analisa o quão vulneráveis à exploração são os trabalhadores em municípios brasileiros.
“Muitas empresas optam por terceirizar, e a regra básica é sempre buscar o melhor preço” – explica Marcel Gomes, diretor executivo da Repórter Brasil.
Acerca das peculiaridades do sistema de moda, terceirizar é um dos principais problemas. Com o advento da globalização, grandes marcas instalam suas operações onde podem produzir mais pagando menos. Terceirizados recebem 24% menos do que os contratados diretamente (CUT) e são vítimas da flexibilização de direitos trabalhistas. “Muitas empresas optam por terceirizar, e a regra básica é sempre buscar o melhor preço”, explica Marcel Gomes, diretor executivo da Repórter Brasil – organização que trabalha há 20 anos na investigação e divulgação sobre condições de trabalho e violações de Direitos Humanos no Brasil. O diretor também aponta a dificuldade dos trabalhadores e trabalhadoras, muitos deles informais, em fazerem parte de um sindicato. “São unidades fabris pulverizadas, com alta rotatividade, e isso dificulta o processo de sindicalização”, finaliza.
Além disso, fazer roupas é uma atividade que necessita de intensa mão de obra. Não é à toa que o mercado de moda concentra oito milhões de pessoas só no Brasil. A facilidade de ingresso no setor têxtil origina o match perfeito para tornar vulneráveis mais trabalhadores, explorando-os com altas demandas e preços baixíssimos. “Você aprende a costurar rápido, comprar uma máquina de costura é barato. Muita gente começa a trabalhar de qualquer jeito, no fundo de casa, e logo estão pegando muitas encomendas”, explica Silva. Isso se explica, em partes, pela competitividade que rege os negócios. “Há um elemento de competição e exclusividade, de querer preservar um fornecedor muito específico com alta qualidade, para que se garanta um preço baixo”, conclui a diretora.
Tanto trabalho acompanha pouca transparência. Dados do Índice de Transparência da Moda Brasil, indica que, das 40 grandes marcas e varejistas nacionais analisados em 2020, apenas 21% publica sobre seus processos e cadeia produtiva. Para Livia Ferreira, auditora fiscal do trabalho em São Paulo (SP), “muitas iniciativas importantes foram desenvolvidas por empresas para evitar que isso [trabalho análogo ao escravo] acontecesse, mas as medidas são insuficientes e continuamos com indícios de que as situações ainda acontecem, porém mais subterrâneas e graves”. Ela acredita que só haverá responsabilização da iniciativa privada mediante políticas públicas específicas que exijam transparência.
Distribuindo as responsabilidades, gerando mudanças
É importante não culpabilizar uma só empresa, pois o problema rege toda a cadeia da moda e é embrionário no atual sistema econômico. “As marcas que foram pegas não têm de ser demonizadas, isso é setorial. Elas foram flagradas porque a fiscalização chegou, mas muitas outras continuam produzindo nesse contexto”, diz Ferreira. Para Silva, devemos buscar pontes de diálogo com as empresas, pois pactos coletivos entre elas levam a mudanças mais palpáveis. A diretora também elenca uma virada na forma de fazer negócios para que o preço deixe de ser critério exclusivo na hora de contratar fornecedores. “Eles [setores comerciais] também devem saber perguntar sobre direitos humanos e outros critérios sociais”, pontua.
O poder público é essencial nessa equação. O desafio, porém, é seguir firme em um país mais na corda bamba do que nunca: “temos uma legislação que vem sendo degradada pelo governo federal (sobretudo na reforma trabalhista de 2017 no Governo Temer, que tirou direitos e enfraqueceu a fiscalização), e vive seu ápice agora, no governo Bolsonaro”, diz Gomes. Como exemplos de políticas públicas específicas que valem ser citados são a Lei Bezerra, que faz com que empresas paulistas flagradas utilizando trabalho análogo à escravidão percam suas inscrições no Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e sejam fechadas e impedidas de realizar qualquer transação formal; e a Lista Suja, um cadastro de empregadores, em âmbito nacional, que elenca aqueles com a mesma prática.
Organizações da sociedade civil, entidades de base e uma parcela do Estado não medem esforços para combater o trabalho análogo ao escravo, mas cidadãos e consumidores também podem desempenhar seu papel. Um exemplo de uma ferramenta para auxiliar na visibilização da cadeia produtiva da moda é o aplicativo Moda Livre, criado pela Repórter Brasil, disponível também em formato de site. Com ele, é possível encontrar informações sobre mais de 100 marcas que já foram flagradas com essa prática, em formato de ranking, além de dados relevantes sobre o crime no Brasil.
Foto: Reprodução
Esse é um exemplo de engajamento da sociedade civil, mas que não se resume a “comprar ou não comprar” uma peça de determinada marca, pois um problema coletivo não se resolve com ações individuais. As medidas vão além: urge a necessidade de cobrar de parlamentares um envolvimento com a erradicação do trabalho escravo e a promoção do trabalho decente; pressionar marcas e empresas por mais transparência e responsabilidade pela sua cadeia; fomentar o debate coletivo sobre o tema; e manter-se informado e alerta sobre como nossas peças são produzidas. Afinal, não é controverso que a moda, que se pauta na liberdade, siga aprisionando tantas pessoas para que roupas se materializem? A moda pode ser melhor do que isso. Tem que ser.
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