Todos os caminhos levam ao autocuidado?
Uma reflexão para além das máscaras faciais, dos vibradores e banhos de banheira.
Um ano e meio de pandemia obrigou até mesmo os mais avessos à solidão a abdicarem do mundo ruidoso e olharem para o que acontecia porta à dentro – não por uma busca romantizada de autoconhecimento, mas pela necessidade de aliviar os sintomas de um mundo mergulhado em caos. Com níveis de ansiedade cada vez mais altos e incerteza generalizada, não houve outra solução senão ouvir a si mesmo com mais atenção.
Neste cenário, seria difícil que termos como autocuidado e saúde mental não se tornassem mais latentes em nossos diálogos – pelo menos nos virtuais. Um levantamento realizado pelo Twitter em parceria com a Black Swan Data revelou um crescimento de 47% em conversas sobre bem-estar e 39% sobre saúde mental desde o início da pandemia, além de um aumento de 20% em menções à palavra “autocuidado”.
De acordo com Bruna Ortega, especialista em tendências da WGSN, os Millennials já vinham adotando rituais de bem-estar há algum tempo. “No entanto, a pandemia acelerou esse movimento e levou à adesão em massa. Isso continuará à medida que as pessoas passam a ficar mais em casa, seja pelo trabalho remoto ou por conta de um novo lifestyle”.
Mas do que falamos quando o assunto é autocuidado?
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, o termo abrange o direito individual de cuidarmos da nossa saúde 24 horas por dia, 7 dias por semana, e envolve hábitos de higiene, estilo de vida, fatores ambientais e socioeconômicos.
Em termos históricos e sociais, é impossível falar sobre o assunto sem mencionar Audre Lorde, escritora feminista, negra e lésbica, responsável por cunhar o termo em 1980. “Cuidar de mim mesma não é autoindulgência, é uma autopreservação e isso é um ato de guerra política”, disse Lorde. De acordo com a antropóloga Izabel Accioly, é sobre entender, inclusive, que a luta é pesada e adoece, e que para estar nessa resistência é preciso se cuidar.
É importante, então, entender que a noção de autocuidado não é aplicável da mesma maneira para todas as pessoas. O termo ganha contornos muito específicos de acordo com gênero, raça e condição social. Mulheres, especialmente negras e periféricas, estão habituadas ao papel de cuidadoras – responsáveis pela casa, pelos filhos, pelos pais e, em relacionamentos heterossexuais, também pelos parceiros. Neste cenário, autocuidado fala também de alívio na sobrecarga feminina e do direito de olhar com mais gentileza e atenção para si, sem que isso seja considerado egoísmo.
Nos dias atuais, porém, o conceito parece ter se concretizado em três principais pilares: cuidado com a pele, atividade física e momentos de indulgência. Uma busca rápida pela hashtag “autocuidado” no Instagram revela, além de frases motivacionais, poses elaboradas de yoga, cosméticos e imagens de antes e depois de perda de peso. Em uma das postagens, uma lista para cuidar de si aos domingos contém skincare completo, meditação, sessão especial com o vibrador e máscara facial. No TikTok, a mesma busca revela vídeos que mostram desde banhos de banheira a alongamento de cílios.
O termo ganhou proporções tão grandes que virou mote de ações publicitárias que vão de produtos de beleza a pacotes de viagem. Não é de se estranhar, então, que a tendência do autocuidado tenha vindo de mãos dadas com o aumento das compras online. Dados divulgados pela ABComm revelaram um aumento de 107,4% nas categorias de Beleza e Perfumaria durante o começo da pandemia. Outro estudo feito pela ABIHPEC mostra um aumento de 92,8% em vendas de máscaras faciais – um dos itens mais associados à tendência.
“O autocuidado até nasce no indivíduo, mas se completa na existência do outro. É uma jornada que pode ter dias de batom vermelho e de máscara no cabelo, mas precisa estar preenchido de senso crítico, saúde mental e empatia social”, Samantha Almeida, diretora do Twitter Next Brasil
Porém, quando enxergamos o autocuidado por essas lentes, associando-o obrigatoriamente ao uso de produtos e rituais elaborados, ele se torna inalcançável para a maioria das pessoas, gerando uma constante sensação de falta. “A frustração crescente da impossibilidade de viver esse ideal de plenitude vai causando ansiedade. Começamos a sentir que não temos o suficiente e que não estamos dando conta”, adiciona o psicólogo João Luiz Marques.
Dentro deste contexto, o que teoricamente era para trazer algum tipo de alívio e bem-estar, acaba se tornando mais uma causa de insatisfação. Quem é que nunca se sentiu culpado em pular a rotina de skincare depois de um dia pesado de trabalho? Ou de não ter conseguido fazer exercícios desde que a pandemia começou? Mais frustrante ainda é perceber que, mesmo utilizando todas essas ferramentas, os sentimentos incômodos continuam ali.
“Estamos vivendo um momento de crise social muito forte. Para sentir que não perdemos totalmente o controle da situação, pensamos: vou tentar, pelo menos, manter o controle sobre mim, sobre o meu bem-estar. Mas aí a questão é: onde buscar este bem-estar?”, questiona Izabel Accioly. Estamos todos ansiosos, exaustos, em luto e com medo, mas não existe máscara facial no mundo capaz de esconder isso. “A culpa vem quando passamos a acreditar que nós somos os únicos responsáveis pelo nosso cuidado, quando nos encarregamos individualmente de problemas que são coletivos”, explica a psicanalista Manuela Xavier.
Quando falamos de cuidado, quer dizer que existe algo em descuido – ninguém toma um remédio se não existe doença ou sintoma, não se busca solução se não há um problema a ser resolvido. Este descuido não é, necessariamente, algo individual. “É possível estar confortável em um mundo desconfortável? Não sei se tem autocuidado que resista a uma sociedade em desequilíbrio”, diz Samantha Almeida, diretora do Twitter Next Brasil.
Então, talvez, mais importante do que a ferramenta ou o método que escolhemos para solucionar nossos incômodos, seja de fato entender o que tem pedido esse olhar mais atento. “Acho impossível falar de autocuidado sem dar destaque para o protagonismo da saúde mental e a inserção dessa pauta em todos os níveis sociais. Esse é o grande efeito que enxergo da pandemia. A pergunta maior que fica é: o que satisfaz as reais necessidades humanas? O que cuida por completo?”, questiona Samantha.
“Essa busca deve ser por soluções que são próprias, não podemos universalizar o que é individual. O que é que te faz sentir bonita, por exemplo? O que é que me faz sentir bem? Isso é você quem vai descobrir”, aconselha Manuela.
Assim, se no fim das contas você descobrir que o que te faz bem de verdade é uma máscara facial, uma sessão a mais de terapia ou uma noite em frente à TV comendo pizza, tudo bem. Desde que possamos fazer isso com mais consciência – de nós mesmos, dos outros e do mundo à nossa volta. “O autocuidado até nasce da ‘persona’, no indivíduo, mas se completa na existência do outro. É uma jornada que pode ter dias de batom vermelho e de máscara no cabelo, mas precisa estar preenchido de senso crítico, saúde mental e empatia social”, completa Samantha.
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