Busca por equilíbrio e harmonia está acabando com nossos nervos
Novo conceito de ortorexia psicológica aborda obsessão moderna com autoaperfeiçoamento emocional e espiritual.
Do grego orthos (correto) e orexis (apetite), a ortorexia é um termo cunhado em 1996, pelo médico Steven Bratman, que define a obsessão por uma alimentação saudável. Partindo deste conceito, a psicoterapeuta baseada em Londres Seerut Chawla batizou de “ortorexia psicológica” um movimento atual que tem observado. No novo recorte, há uma fixação com um suposto autodesenvolvimento e expansão, que devem ser constantes e analisados microscopicamente.
A hipervigilância com as menores flutuações do sentir, pensar e agir revelaria a faceta mais consciente do ser. “Algumas promessas feitas pelo mundo do bem-estar são delirantes. E assim que o placebo inicial passa, as pessoas relatam que estão se sentindo pior”, explica a psicoterapeuta em um dos seus posts no Instagram (um dos terrenos mais férteis desta lógica). “A ideia é que não importa quais as suas circunstâncias pessoais, se você seguir os seus passos, vai alcançar o que eles mostram ter”, complementa.
“Eu me vi em um ponto em que eu não tinha mais noção do que era possível fazer, porque eu sempre achava que dava para ser mais”, compartilha a estudante de psicologia da UFBA Anne Virgínia. “Nos meus atendimentos (a estudante faz parte do plantão psicológico da universidade), eu percebo dois movimentos complementares: a necessidade de ser melhor para o mundo, em um formato que se encaixe nele, e, consequentemente, a necessidade de se conhecer para entender o que há de errado em si e melhorar para o mundo”, explica.
Mas como falar de subjetividade sem considerar a objetividade – história, sociedade, política e economia? A pandemia se alastra, o país bate recorde de óbitos e desemprego e, de acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, 55,2% dos lares no final de 2020 não sabiam se teriam comida no dia seguinte. É esperado desconforto, cansaço, morte e fome. Mas há uma forte tentativa, descolada de contexto, que quer fazer você se sentir bem.
E só depende de você
Na busca pelo nirvana, o foco está no eu. A obrigação é apenas sua de se fazer confortável e bem nutrida. O fast-food emocional é vendido sob a promessa de se conhecer para se relacionar com mais harmonia consigo e com o outro, além de produzir melhor (sempre). Mas acaba digerindo pessoas sobrecarregadas, egoístas e que se culpam.
“Não é possível se blindar das interferências externas e das limitações internas. Isso leva a um ideal de onipotência do sujeito contemporâneo”, explica o psicanalista Lucas Liedke. “Ninguém vai conseguir tudo e sozinho. A responsabilidade pelo sucesso ou fracasso não está apenas na nossa mão”, continua. “Gosto de pensar no ‘eu ideal anabolizado’, quase um senso atual de bem-estar de que você tem que estar bem consigo mesmo, acreditar no seu potencial, se fechar para o que é negativo e, se você tiver muita autoconfiança, a angústia é eliminada. É um narcisismo dilatado, que se perde da realidade.”
A jornada do ‘eu iluminado’ frequentemente é parametrizada em um sistema externo de cobrança. “O grande trunfo foi que a sistemática empresarial foi internalizada no âmbito individual. Muito do autoaperfeiçoamento faz parte de uma lógica que autores, como Christian Dunker e Vladimir Safatle, chamam de sociedade do desempenho ou subjetivação neoliberal, que é o modelo empresarial de si mesmo”, afirma o psicólogo Dassayeve Távora Lima.
“A gente passou a se cobrar nesse nível, não precisamos mais de um patrão nos pedindo o relatório”, diz o psicólogo, que também é o idealizador do podcast Saúde Mental Crítica e mestrando em Psicologia e Políticas Públicas pela Universidade Federal do Ceará.
O estado inalcançável de equilíbrio constante seria até capaz de gerar uma sociedade mais pacífica. “Pouco tempo atrás, eu estudava bastante o autor Carl Rogers, que acredita em uma revolução silenciosa, ou seja, a gente faz terapia, melhora internamente, e esse avanço reverbera nas pessoas ao nosso redor”, explica Dassayeve.
“Isso nunca aconteceu. Eu não estou dizendo que não é importante você se cuidar, mas sem nenhuma ilusão de que nós, mudando enquanto indivíduos, vamos mudar o mundo. Nós somos reflexos do contexto. Claro, não uma imagem direta, tem várias mediações aí. Mas se o mundo em que eu vivo continua sob o imperativo da competição, do trabalho alienado e da exploração, eu, sozinho, vou conseguir mudar essas estruturas? Não vou”.
Membrana celular
A astróloga Claudia Lisboa também não acredita na ideia de desenvolvimento pessoal como um projeto competitivo narcisista. Porém, Lisboa afirma que cuidados pessoais podem ter impacto no ambiente e que as marcas que carregamos não são apenas causadas pelo contexto.
O mapa astrológico mostra potências e tendências que são seguidas da maneira que cada um quer, ou pode. Filhos gêmeos, por exemplo, têm percursos diferentes. “No mapa, eu tenho indicações de qual geração você pertence, como você foi nutrido e alimentado. Isso mostra que não existe astrologia separada de fluxos e movimentos sociais, como não depende só de nós mesmos”, diz.
O que acontece hoje, segundo Lisboa, é a banalização de diferentes ferramentas terapêuticas e espirituais e o deslocamento da intenção para uma lógica de produção. Além disso, não há ponto máximo de evolução e as condições do “se conhecer” são muito diferentes. Seja terapia, yoga, mapa astral, banho de folhas, reiki ou skincare, a possibilidade de alcance não é igual para todos.
E mesmo que exista o acesso, não está só na sua mão: terapia demanda tempo e não bloqueia os efeitos do caos político. O pêndulo vai desde a despolitização do sofrimento e culpabilização do indivíduo até a isenção social, como ignorar a própria responsabilidade e chamar um Uber para aglomerar no bar, depois de um longo dia de home office e milhares de mortos. Tudo pela saúde mental.
Melhor no digital
“Eu tenho percebido na internet que a evolução espiritual tem virado um mercado perigoso pela perspectiva do reencontro consigo mesmo de maneira individual”, afirma a sacerdotisa, pedagoga e poeta Ìyá Omiladê. “Meditar, rezar e buscar um lugar espiritual são estimulados principalmente agora, com muitas pessoas enfiadas em casa. Quando, na verdade, esse lugar só é alcançado – com ressalvas – a partir do que você vai produzir para a comunidade”, continua. Do ponto de vista das africanidades, explica ela, a perfeição não é um objetivo e nem o individual é um meio. “Deus, na perspectiva cristã, é onisciente, onipotente e onipresente. Então, você o coloca como perfeito. Para nós, Olodumarê, o nosso ser supremo (diferentemente do que as pessoas acreditam, somos monoteístas), é tão incrível que criou os orixás para que eles o ajudassem a fazer o mundo, cada um com sua função”.
Mas, para a sacerdotisa, mesmo quem sorri na meditação na live e passa a fórmula de sucesso, provavelmente não está tão bem. “Deve estar pirando, até eu estou”, conta.
A lamentação das mortes e os nervos ainda mais frágeis, junto com a necessidade de evolução rápida e obrigatória, pode criar ciladas e ampliar discursos fáceis e aproveitadores. De João de Deus a Osho, episódios passados podem se repetir nesta nova e enfraquecida temporada. “Certos gurus crescem a partir da estética do ‘deboísmo‘ e da positividade. A gente compra isso”, opina.
É como se estivéssemos em um mercado ao ar livre, com vários pratinhos de comida nigeriana, indiana, japonesa e outros que provamos desesperadamente. “A pessoa belisca todos em busca de um sabor que a agrade, mas já passou por tantos que confundiu o paladar, não consegue diferenciar os sabores e se encontrar. Vira uma miscelânea e ela continua no mesmo lugar, com amargor na boca”, compara Ìyá Omiladê.
“É preciso experimentar lugares e pessoas, mas considerando a sua individualidade, a sua coletividade e o que você acredita para a vida. Você pode experimentar uma comunidade de candomblé, mas ela pode não parecer nada com você, como uma comunidade de candomblé que seja fascista e acredite nesse governo”, afirma.
Há uma busca por linhas espirituais distintas e uma tentativa de reproduzi-las em qualquer contexto, independentemente dos preceitos que as fundamentam. “Não é por acaso que cada vez mais o ocidente tem se apropriado do mindfulness, mas é importante destacar que, em muitos contextos orientais, a atenção plena faz parte de um escopo bem maior, tem a ver com a realidade social, cultural e espiritual”, explica o psicólogo Dassayeve Távora Lima. “Aqui, é entendido como uma forma de autocontrole, de desenvolvimento de potencialidades e capacidades. Você descola a atenção plena da cultura e espiritualidade, e ela vira uma coisa de hipervigilância, que é extremamente estressante”, continua.
A meditação, então, vira um esvaziar de mente para fazer hora extra no sábado e ganhar pontos com o diretor da empresa, que faz o mesmo com o CEO. “Nós somos seres humanos, estamos sujeitos a conflitos e variação de humor. A lógica da hipervigilância é paralisante. Você fica angustiado, entende que não pode sentir isso e tem que estar plenamente atento ao que acontece para melhorar”, diz o psicólogo.
Controle da emoção
O mesmo prego é constantemente fixado pelo martelo do autoconhecimento: o controle das emoções. “Tem um discurso perigoso, que vemos muito em alguns gurus e coachings, de que temos que vigiar e regular as nossas emoções, reprimir a raiva e transformar inveja em força de vontade”, afirma o psicanalista Lucas Liedke. “O problema é que já reprimimos muita coisa. É mais sobre tentar não reprimir tanto. Já abafamos inconscientemente as nossas pulsões, aquilo que não cabe no social, no princípio civilizatório, no trabalho. Pedir mais é cruel”. Segundo Liedke, lidar com uma emoção difícil é melhor do que tentar fazê-la passar “porque ela não cabe em uma situação ou não combina com o meu eu idealizado”.
A dominação não garante maior agilidade com o tratamento de questões internas nem agiliza o ritmo de produção. Ignorar as influências do mundo é utópico, assim como não considerar que ele é um mercado e as pessoas já são entendidas como marcas. É possível se adaptar (com rebeldia) a essa forma de existir, ou até mesmo se rebelar.
Mas, para quem não pode/quer romper totalmente, dá para não ser engolido. Cuidado apenas com possíveis armadilhas. “Autoconhecimento é muito legal, mas pode ser uma cilada. Para a psicanálise é um mito, consideramos uma promessa falsa. (Jacques) Lacan mandava embora o paciente que dizia que queria se conhecer. Se achamos que um dia vamos nos conhecer plenamente, caímos em um tombo”, conta o psicanalista.
“Sempre há uma grande parte que não enxergamos e não reconhecemos como nossa. O objetivo de um processo de análise não é esvaziar o inconsciente e dominá-lo, mas talvez não ser tão dominado por ele. Ele existe e tem um efeito importante na nossa vida”, explica.
E, caso seja possível e desejado, fazer terapia ajuda. Não a do feed, mas em uma sala do Zoom, com um profissional habilitado (universidades também oferecem atendimentos), ou presencialmente, quando isso for viável. “Existe uma demografia muito específica e tipo de personalidade a quem os conteúdos de ‘cura’ são destinados. Eu não gosto da glorificação da cura e não suporto o pornô da vulnerabilidade, especialmente como ferramenta de marketing”, opina a psicoterapeuta Seerut Chawla em uma postagem no Instagram. “Então, de agora em diante, eu vou fazer mais posts para pessoas como eu: conteúdo de terapia para quem odeia conteúdo de terapia”, finaliza.
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