Será que bordadeiras são realmente valorizadas na moda?

Para além da imagem dos ateliês franceses de alta-costura, o trabalho manual precisa ser melhor reconhecido, valorizado e bem-pago.


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Em um dos episódios da série 7 Days Out, da Netflix, somos levadas para os setes dias que antecedem um desfile de alta-costura da Chanel: casting, montagem do cenário, prova de roupas e, claro, os ajustes finais de cada look da coleção antes de entrar na passarela. O episódio nos transporta às quatro casas de alta-costura da marca, onde são costuradas e bordadas, à mão, todas as peças que serão apresentadas no desfile. Cada peça leva, em média, 160 horas para ficar pronta. Os detalhes mais estonteantes (e extenuantes) ficam por conta dos bordados: plumas, pedrarias e pequenos adornos exclusivos costurados um a um, com agulha e linha e nada mais.

Mulheres em salas brancas, bem iluminadas e decoradas, são as protagonistas dessa “linha de produção” artesanal e, juntamente com os artesãos em sua oficinas como nas guildas da Idade Média, essa imagem é, provavelmente, o que vem à mente quando pensamos na áurea que envolve slogans como “feito à mão”, “luxo”, “alta-costura” ou, ainda, “sob medida”. Mas a indústria da moda não é um ateliê da Chanel e a realidade das artesãs é bem mais complexa, e menos romântica, do que uma superprodução cinematográfica ou das imagens nos livros de história da arte.


Making-of the CHANEL Spring-Summer 2015 Haute Couture Collection

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Camila, Ana e Priscila são três mulheres trabalhando com bordado e fazeres manuais para a indústria da moda e integram o grupo de 8,5 milhões de pessoas que trabalham formalmente como artesãs no Brasil. O artesanato — categoria utilizada nos dados oficiais e que abarca uma enorme diversidade de artesãs — movimenta R$50 bilhões por ano e corresponde a cerca de 7% a 8% do PIB nacional. Mas especialistas do próprio IBGE estimam que esses valores são muito maiores porque não dão conta de quem trabalha informalmente com o ofício. Artesãs, é importante ressaltar, porque quase 90% são mulheres.

Camila Belotti (36) se formou em design gráfico em 2009. Depois, seguiu para uma pós-graduação em design editorial e, na sequência, para um master focado em fotografia, estilo e ilustração de moda, em Londres. Uma parte da sua vida profissional foi em agências de design e publicidade, trabalhando majoritariamente para moda e para a indústria da beleza. Também ilustrou livros e trabalhou com estamparia até chegar no bordado manual. Não que Camila não tivesse tido contato com o bordado antes. Ainda na faculdade, conheceu o trabalho de artistas experimentais utilizando bordado e outras técnicas. Mas antes disso, ela já tinha herdado a caixinha de bordado da sua vó — que estava lá guardada para quando chegasse o momento.

A experiência em uma grande agência, como diretora de criação, a levou ao limite e, em 2014, resolveu dar um tempo e se inscrever em um curso de bordado. “Eu comecei a bordar sem muita pretensão, mas minhas professoras insistiam que eu levava jeito”, relembra Camila. Sem trabalho e com tempo, ela começou a desenhar e a bordar até que foi apresentada a uma pequena marca de moda, a Laundry, onde começou a vender seus trabalhos artísticos. Dali, outros clientes começaram a vir, de pedidos para criações autorais até bordados para desfiles e nomes da moda. O talento de Camila fez com que ela conseguisse trabalhar com uma gama diferente de marcas, como Cavalera, Vivara, Emannuele Junqueira, Insecta, Minimal, Modem, entre outras.

Trabalhando com bordado há 15 anos como forma de complementar a renda depois de se aposentar do trabalho como secretária executiva, Ana Maria Fernandes (67) compõe uma leva mais antiga de bordadeiras. Aprendeu bordado ainda criança, com 8 anos e ajuda da mãe, que também bordava. Ana cresceu cercada de agulhas e linhas.

Sem tempo e sem orçamento

Mas se de um lado a indústria da moda é ótima em criar uma percepção de valorização, exclusividade e luxo para com os trabalhos manuais, com peças que chegam ao varejo custando mais de cinco dígitos, nos bastidores há uma sistemática desvalorização — e podemos chamar até de exploração — de quem realmente faz esse trabalho. Tanto Camila quanto Priscila dizem que o comum no mercado são orçamentos apertados e prazos insanos. “Financeiramente, nosso trabalho não é reconhecido”, complementa Ana.

“Já passei por desenvolvimentos e bordados não pagos a propostas feitas para bordar blusas e camisetas à mão com linhas e pedrarias por R$12”, lembra Priscila. Já Camila conta um caso muito emblemático quando trabalhou com uma marca de luxo e festa: “A responsável pelo time de artesãs havia combinado um valor de R$ 45 por peça – já era baixo, mas como ia testar uma técnica nova, aceitei. Eu criei as ilustrações com exclusividade para a marca e bordei no tule e na renda. Quando entreguei todos os trabalhos, ela me disse que eu havia entendido errado e que me pagaria R$ 45 por tudo o que eu havia feito, o que ela disse ser ‘o valor padrão'”, relembra Camila. O preço de venda inicial dos vestidos no site da marca é de R$ 3.500.

Essa experiência, que não é pontual, desconstrói a ideia amplamente aceita de que produtos caros necessariamente são resultados de uma rede produtiva justa. Pode acontecer, como não pode. Trabalhar com o mercado de luxo exige mais tempo, técnicas e materiais específicos e bordar em tecidos como seda, tule, renda é muito mais complicado já que uma única peça pode levar 60 horas para ficar pronta (quase 8 dias de trabalho em um dia de 8 horas) – mas, como vimos, aceitar o desafio nem sempre significa ganhar mais.

Priscila diz que as pessoas dessa indústria parecem não entender que existe um processo criativo no fazer manual. Se a ilustração é autoral, é preciso criar o desenho, riscar o desenho com cuidado no tecido, estudar os pontos certos, entender os materiais e as cores, estudar o custo, cronometrar as horas. “Assim como um estilista precisa sentar e planejar uma coleção com 200 modelos diferentes, nós também precisamos. Existem poucas marcas hoje que realmente pagam o verdadeiro valor que nosso trabalho vale”, salienta Priscila.

Tempo também é uma questão. Na moda, prazos curtíssimos têm levado criadores à exaustão. Parte do trabalho análogo à escravidão, que já se tornou uma doença crônica na confecção, é resultado não só do baixo orçamento, mas também da normalização do “é pra ontem”. No trabalho manual, o “pra ontem” também é praxe. “Eu trabalhei para uma marca de Brasília que queria 80 camisetas bordadas à mão, com ilustração autoral e estamparia. Eu tive uma semana e meia para fazer”, destacou Camila. “Embora as pessoas tenham seis ou três meses para criar uma coleção, elas te jogam no limite. Então, você precisa trabalhar de 14h a 18h num dia para cumprir esse prazo”, completa.

Trabalhar horas a fio para conseguir cumprir com prazos insanos afeta diretamente a saúde do corpo. Parecido com o trabalho da costura, os fazeres manuais têxteis exigem movimentos repetitivos dos mesmos membros, muitas horas sentada numa posição inadequada com pescoço e tronco inclinados para frente e um olhar fixo. O resultado é um acúmulo de problemas: alterações na coluna, dores nas costas, punhos, ombros, além de dores de cabeça, desconforto nos músculos abdominais, esforço dos olhos e edema nos pés devido ao acúmulo de fluidos corporais.

Feminilização do ofício e outras possibilidades

Para Camila, parte dessa desvalorização está na própria ideia de que o fazer manual é simples e banal: “ainda tem muito desprezo com o artesanal. Tipo ‘ah, se a minha mãe faz, minha vó faz, é fácil e é rapidinho’. Ainda tem muito essa postura”.

Do ateliê da Chanel aos relatos de Priscila, Ana e Camila, passando pelos dados do IBGE, fica claro que são as mulheres à frente desse ofício. O fazer manual relacionado ao têxtil foi historicamente generificado na sociedade capitalista ao se consolidar no âmbito doméstico. A consequência dessa feminilização é a sua desvalorização quando vamos para o espaço de trocas, o mercado.

Outro problema é não existir uma tabela guia, algo que possa minimamente regular essas trocas. O bordado manual pode partir de centavos por bordado, passar por vestidos de luxo por R$45 e peças inteiras por R$200 ou chegar em R$800 a R$ 1000 fora da indústria da moda. A ação coletiva por meio de sindicatos e cooperativas normalmente é a forma como profissionais conseguem se organizar para garantir que suas demandas sejam atendidas, mas a maior parte das profissionais acaba trabalhando isolada, de casa ou do próprio ateliê, desconectadas dessas possibilidades.

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Bordado de Camila Belotti para Brennda AraujoDivulgação

As três entrevistadas afirmaram que tiveram experiências boas e ruins com a moda. Para Camila, o melhor a fazer, porém, foi respirar outros ares, focando mais em trabalhos autorais, encomendas e nas artes visuais. “Embora eu goste muito de trabalhar com roupa e com moda, eu evito. Demora a pagar, paga mal e os prazos são insanos. Isso sem contar as pessoas, marcas e estilistas que não te dão crédito”, explicou ela

Ana afirma que a soma final do seu trabalho com bordado é positiva porque ama o que faz. Priscila segue na moda, trabalhando fixo na Paula Raia e fazendo trabalhos diversos no seu tempo livre. Mas para continuar, ela criou sua própria estratégia: “escolhi trabalhar com materiais mais nobres para deixar meu trabalho único e bem característico, o que foi uma forma também de me adaptar ao mercado de um jeito que eu não sofresse tanto financeiramente”, finaliza.

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