Como moda voltou a costurar afeto, dor e loucura

Criar pode ser uma tentativa de dar conta daquilo que não se entende e, agora, estilistas voltam a mostrar o poder das roupas em tratar dos traumas psicológicos.


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Célio Dias estava em um relacionamento amoroso e morava em São Paulo no ano passado. Dos três anos de relação, dois foram vividos juntos, na pandemia, em dois apartamentos, nos bairros da Bela Vista e de Higienópolis. Foi neste último que o estilista da LED descobriu um diário, que revelava traições. Com o fim do namoro, meses depois, Dias retornou à sua Belo Horizonte natal e, em junho deste ano, as mesmas páginas viraram estampa e combustível da coleção Sinto Tanto.

A história de dor e amor contada pela grife na passarela da São Paulo Fashion Week, com peças de alfaiataria, crochês de efeito tridimensional com estruturas de ferro e coletes de metal em formato de coração, não é comum apenas à linguagem do estilista, mas da própria história da moda, que volta, em diferentes formatos, a explorar os conflitos emocionais.

Referências às emoções humanas já foram recheio da produção de criadores seminais para nosso entendimento sobre o poder da roupa em transformar em segunda pele os sentimentos, dos estilistas Yves Saint Laurent a Alexander McQueen, dos artistas Arthur Bispo do Rosário a Elke Maravilha. As dores fazem parte do processo criativo e, num momento em que o mundo encara traumas profundos, a relação de afeto, sofrimento e loucura parece estar mais presente do que nunca em nossa roupa.

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LED.
Foto: Divulgação

No caso de Célio, a coisa foi além. Após o término, o estilista precisou usar medicação, entrou em um princípio de depressão e descobriu o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), que logo começou a tratar. Pela primeira vez desde a separação, ele ficou em São Paulo para preparar o desfile. O que por si só foi desafiador, porque a cidade havia se tornado pano de fundo das lembranças difíceis.

“Construí a coleção em três anos, que foi quanto o relacionamento durou. Sabia que queria falar disso, mas queria me sentir seguro, porque a exposição seria muito grande”, revela Célio que, para aumentar a confiança e reduzir custos, chamou amigos para desfilar. “A coleção era parte da minha vida e fazia mais sentido investir em pessoas que sabiam da minha história.”

O desfile, que surgiu de uma conversa que nunca aconteceu teve um amplo alcance midiático, explica o estilista, que, no íntimo, esperava por meio dele um pedido de desculpas do ex, que nunca veio. E questionou-se: “Amor, então, é isso?”.

Fazer poesia o resto da vida

Indagações e tentativas de definir sentimentos, revisitar traumas são pontos de partidas comuns a muitas obras. A criação é um ensaio simbólico que busca dar conta do insustentável vivenciado por alguém, seja a dor, seja o prazer –ou os dois juntos.

“‘Amor’ é uma palavra que diz respeito a uma tentativa de dar nome a uma experiência. Se alguém tentar nomear, vai passar o resto da vida fazendo poesia, e poesia é uma costura que se pretende a nomear, e transmitir, o inominável”, explica Vera Iaconelli, psicanalista e membro da Escola do Fórum do Campo Lacaniano, em São Paulo.

Essas investidas emocionais para classificar o sentimento encontraram em Alexander McQueen o sublime e a melancolia, como no desfile de verão 2011 anbientado dentro de uma caixa de vidro que simulava uma clínica psiquiátrica. Outro dos gênios da costura, John Galliano transita por esses caminhos sinuosos desde o início de sua carreira.

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Maison Margiela.

Foto: Divulgação

Em sua mais recente coleção à frente da Maison Margiela Artisanal, desfilada neste mês na semana de alta-costura de Paris, ele criou uma performance, com tiroteios e vestidos de tule, ambientada num Velho Oeste fictício que assiste à história de amor sangrenta de um casal apaixonado. O estilista, no entanto, ofereceu pesadelo em vez do sonho enlatado, transformando as roupas na poesia citada por Iaconelli.

Por aqui, o desfile de formatura de Alexandre Herchcovitch na Faculdade Santa Marcelina, em 1993, incluía 40 looks com camisas de força. Ao longo de quase três décadas de carreira, o estilista usou reflexões sobre a morte e alçou sua caveira a um status pop no país.

Criação que não poupa

Yves Saint Laurent é outro exemplo de criador motivado por pulsões e indagações emocionais. Diferentemente dos colegas, seus ensaios não recaíam tanto em temáticas, mas na reestruturação do sistema, por meio de um desmonte de atribuições de gênero, ou por meio das novas formas de produção.

“A grande questão é sobre como essa pessoa (Yves Saint Laurent) conseguiu inscrever seu nome na história tentando dar conta de uma ‘desorganização’ (pessoal) por meio da criação artística, apesar de todo o sofrimento”, afirma o psicanalista Leonardo Lopes, que possui linha de pesquisa voltada ao estilista argelino.

Em vida, Saint Laurent foi diagnosticado como maníaco-depressivo. O estilista foi internado em manicômios diversas vezes e submetido a tratamentos de choque. A cada coleção, ele alternava sua crise depressiva profunda, acompanhada pelo uso abusivo de álcool e outras drogas.

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Yves Saint Laurent alta-costura, inverno 1982.

Foto: Reprodução | Helmut Newton

Algo na criação o sustentava, mas não dava conta de sentimentos avassaladores que incidiam, sobretudo, em seu corpo. O psicanalista explica que “essa experiência subjetiva de despedaçamento se traduziu na criação de paradoxos, que ele incluiu em suas coleções. Primeiro, invertendo como acontecia a relação da moda com a sociedade (com a criação da linha de prêt-à-porter em paralelo com a de alta-costura, uma afronta aos puristas da época)”.

O estilista também levou o jeans para as passarelas, outro movimento de esmaecer fronteiras, que também ficou explícito na quebra de padrões de ‘masculino’ e ‘feminino’ provocada pela criação do smoking para mulheres, até hoje um dos pilares da marca.

Imagem e palavra

Na psicanálise, a imagem, como a que um estilista tem de si ou de suas criações, está diretamente ligada à constituição do ‘eu’. “Está calcada na linguagem, então, não é só visual, mas o que a gente significa a partir dela”, explica Vera Iaconelli.

A necessidade de se incluir em uma moldura é comum a todos nós e é estrutural, logo, difícil de ser vencida. A moda envereda por esses caminhos de construção da personalidade e esconde, ou revela, rachaduras de nossa própria existência.

“Quando você pensa que a imagem é tão estrutural para a consciência de si, então, o que você coloca ou tira dela, como a roupa, vai conversar com o ‘eu’”, associa Iaconelli. Dessa forma, a tentativa simbólica de muitos criativos em formar um patchwork emocional é, por consequência, um atestado de suas próprias fragmentações.

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Manto da Apresentação, de Arthur Bispo do Rosário. Divulgação

A ex-modelo e multiartista Elke Maravilha, por exemplo, montou um colar por 40 anos com adereços presenteados ou coletados ao longo da vida, desde uma placa que recebeu da avó russa até uma chave do cemitério de Colatina, no Espírito Santo. Ela construiu a peça até o fim da vida, em 2016.

Mas, talvez seja o artista sergipano Arthur Bispo do Rosário o exemplo máximo no Brasil dessa relação pessoal com o objeto de moda transformado em fragmento do “eu”. Afinal, indaga Iaconelli, “o que ele fazia o tempo todo senão uma tentativa de costurar os pedaços, de fazer as palavras circularem?”.

Encontro com Deus

Para entender como a obra de Arthur Bispo do Rosário atravessou a costura sob o prisma da dores psíquicas – no caso dele, a esquizofrenia – é preciso voltar algumas tramas. Nascido em 1909 no município de Japaratuba, cidade do Sergipe conhecida por suas rendeiras e bordadeiras, aos 16 anos ele ingressou na Escola de Aprendizes Marinheiros, em Aracaju.

No ano seguinte, alistou-se na Marinha de Guerra, no Rio, onde atuou por nove anos até ser desligado pelos conflitos nos quais se envolvia. Foi ser vulcanizador no setor de transporte, nos 1930, mas seu pé foi esmagado numa fábrica e, sem ter como trabalhar, virou “faz-tudo” na casa da família do advogado Humberto Leone.

Na madrugada de 22 de dezembro de 1938, no casarão dos Leone, em Botafogo, ele teve uma revelação, vendo a si mesmo descendo dos céus, ao lado de sete anjos, numa imagem que lhe tomou como um raio. Peregrinou até o Mosteiro de São Bento, no centro da cidade, onde se apresentou aos frades como “aquele que veio julgar os vivos e os mortos”.

Logo, Rosário seria encaminhado ao hospício da Praia Vermelha, de onde foi transferido para a Colônia Juliano Moreira, onde finalmente foi diagnosticado como esquizofrênico.

Desse dia em diante, o artista começou sua produção com elementos da cultura popular, a exemplo dos reisados. Em sua obra, há também referências náuticas, como os paletós de marinheiro que tanto conhecia, e a utilização de materiais têxteis.

“No manicômio, ele vai trabalhar com tecidos dos lençóis. Pega esse material, desfia para fazer um novelo de linha, costura e borda depois. O mesmo era feito com os uniformes de marinheiro”, explica o curador do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, no Rio de Janeiro, Ricardo Resende.

Organização menos desastrosa

Ele ouvia vozes que lhe apontavam como enviado de Deus para organizar o caos do mundo. Ao longo dos anos, então, passou a tecer o Manto da Apresentação, sua obra mais famosa, que deveria ser usado no encontro futuro com o Todo Poderoso. Repleto de bordados e desenhos, no verso a peça foi estampada com uma costura de palavras.

Ele decidiu se trancar por sete anos em uma das celas da instituição, com agulha e linha, para bordar a escrita de estandartes e fragmentos de tecido.

Foi só em 1982 que despertou o interesse da mídia e dos críticos, expondo pela primeira vez seus quinze estandartes no Museu de Arte Moderna do Rio. Recebeu mais convites, mas negou todos por não se considerar artista, apesar de saber que era percebido como tal. Bispo do Rosário reforçava estar em uma missão, que chegou ao fim em 1989, quando morreu aos 80 anos.

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Detalhes do manto criado por Ronaldo Fraga para Milton Nascimento. Entre os bordados, há trechos de composições e as cores do nascer do sol entre as montanhas de Minas Gerais.
Divulgação Ronaldo Fraga

“As costuras da linguagem, da arte e da religião tentam dar um contorno que não existe, que escapa. Bispo era obsessivo nesse sentido, o seu objetivo era infindável em produzir aquilo que eram os contornos para ele manter a sanidade”, analisa Vera Iaconelli. “Cada um arranja o seu jeito, e nós estamos sempre tentando criar uma certa organização, menos desastrosa, entre o real, o simbólico e o imaginário.”

Além do próprio Museu Bispo do Rosário, no Rio de Janeiro, centenas de trabalhos do artista agora estão expostos até 2 de outubro em “Bispo do Rosário – eu vim: aparição, impregnação e impacto”, em cartaz na sede do Itaú Cultural, em São Paulo.

O interesse por sua obra também tomou o trabalho do estilista Ronaldo Fraga, que já produziu uma coleção inteira inspirada no artista e, agora, refez sua ideia sobre o Manto da Apresentação para o figurino da turnê derradeira de Milton NascimentoMilton Nascimento.

O ex, mais uma vez

Foi também com costuras e pulsões que Leonardo Alexei, diretor criativo da Alexei, semeou sua coleção de estreia na Casa de Criadores, apresentada neste mês. O ponto de partida foi a vulnerabilidade, logo, também a força, de estar novamente apaixonado. Nesse desconforto ele se encontrou na literatura de Clarice Lispector e mergulhou na psicanálise.

“Fui envolvido por sua poesia e pela tentativa de dar forma ao que é sentido. Ela (Lispector) tenta narrar um sentimento e não consegue, sempre fica no sussurro”, diz o estilista.

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Alexei.

Foto: Marcelo Soubhia/@agfotosite

Com nome de A Imitação da Rosa, de um poema de Lispector, a coleção trouxe silhuetas amplas com estrutura, patchworks e brilho. Nos 17 looks, há diferentes estereótipos, como a noiva que encerra a apresentação, numa menção clara à alta-costura.

Também estão presentes referências às raízes caipiras do estilista, nascido em Londrina, no Paraná, a High School Musical e a Amy Winehouse – “duas coisas distantes, que para mim fazem sentido”, diz– , estampas de fotos do seu bolo de aniversário de 30 anos e também marcas da própria pele.

“Sangue, hematomas, veias e tatuagem. Eu fotografei e fizemos uma colagem com pinturas e colocamos em um vestido que se chama ‘A Violência’. Ele parece delicado de longe. Quando eu o mostrei à minha costureira, ela achou lindo, mas, ao chegar perto, tomou um susto, disse que era meio macabro”, diverte-se.

O laço que envolve a coleção, que traz ainda referências ao universo do skate, uma cena que inicialmente o abraçou na solidão de São Paulo, é a tentativa de entender seu desejo e transformá-lo em roupa. “É o narcisismo que todo artista tem, de tentar se conhecer e colocar isso em algo.”

Ao sair ovacionado da passarela, Alexei disse ter sentido uma “coisa” no corpo, sem saber muito bem descrever. A profusão de sentimentos envolvida naquela apresentação e nas roupas, o estilista conta, fizeram até que um amigo tivesse uma crise de ansiedade e parasse na ambulância.

Assim como ocorreu para Célio Dias da LED, o ex também veio à mente. “Tentei ligar para ele, mas não atendeu.” Voltou-se, então, aos amigos e à celebração do desfile. “Deu muito certo e todo mundo ficou emocionado. Digo que a coleção é sobre dor, mas, no fim das contas, nos divertimos”.

Afinal, os processos de dor são também de cura, e a moda parece mesmo englobar todo tipo de sentimento.

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