Jonathas de Andrade mostra o Brasil por brasileiros
Representante do país na Bienal de Arte de Veneza, o artista alagoano trabalha com o diálogo e com processos didáticos para ampliar as vozes apagadas pela sociedade.
“Fiquei com medo do julgamento em relação ao lugar de fala, pois minha pesquisa envolve assuntos delicados. Mas acredito radicalmente no processo de troca e no lugar do encontro. Não é sobre falar pelo outro, mas falar com o outro”, argumenta Jonathas de Andrade sobre seu novo filme, Olho na Rua, idealizado em exercícios pedagógicos e teatrais com moradores de rua de Recife. Comissionado pela Fondazione In Between Art Film, de Beatrice Bulgari, o trabalho faz parte da mostra Penumbra, no Complesso dell’Ospedaletto, em Veneza, um evento paralelo à Bienal de Arte, ambos recém-abertos ao público e em cartaz até novembro deste ano.
O filme, assim como boa parte dos trabalhos de Jonathas, se baseia em diálogos com personagens-atores no limite entre a realidade e a ficção, transformando sua obra numa espécie de inventário da cultura popular e de todas as questões que tensionam essa sociedade: adultos analfabetos ou operários braçais de Recife, trabalhadores de um canavial, uma comunidade de surdos no Piauí, pescadores de uma região de Alagoas, mulheres indígenas do Pará, atrizes de um grupo de teatro de Pernambuco e, dessa vez, um conjunto de 100 moradores de rua, recrutados pelo artista durante a pandemia com a ajuda de ONGs e assistentes sociais.
Ele sugeriu que essas pessoas em vulnerabilidade social fizessem exercícios simples, como olhar-se no espelho, organizar alimentos, formando naturezas-mortas, preparar e deliciar-se com uma refeição ou criar uma roda de reivindicações, incentivando a discutir identidade, classe e visibilidade. Ao final, cada um encara a câmera com doçura, confiança e orgulho, e assim são vistos pelo espectador em suas individualidades. “Sempre quis trabalhar com moradores de rua, mas não tinha encontrado o tom. No meio da pandemia, fiquei muito arrebatado com o aumento da miséria e comecei a pensar que talvez o caminho fosse realizar uma refeição celebrativa. Seria uma forma de chegar mais perto dessas pessoas e mostrar o brilho de cada uma. Porque elas são invisibilizadas não só pelo poder público, mas também por todos nós, privilegiados, que vivemos nessas cidades”, explica o artista.
Frame do vídeo Nó na garganta (2022), de Jonathas de Andrade.Imagem de obra comissionado e produzido por Fondazione in Between Art Film
Não é apenas com Olho na Rua que Jonathas arrebata os visitantes de Veneza, ávidos por arte que emociona. Com o Coração Saindo pela Boca, ele ocupa todo o Pavilhão do Brasil dentro dos Giardini della Biennale e traduz em esculturas, obras pop e vídeos sua observação de nossos ditos populares mais arraigados.
“Tudo que é factual no Brasil de hoje é fora de sentido, propósito ou razão. Nesse caminho, essa coleção de expressões vira um sistema que, na sua literalidade, traduz as alegorias do país. As palavras parecem estar falando sobre imagens oníricas, mas na verdade carregam muito da temperatura do momento”, diz, ao lado de esculturas carnavalescas, e algumas cinéticas, que representam “cabeça oca”, “língua solta”, “costas quentes”, “bunda mole”, “fura-olho” e “dedo podre” uma sutil sugestão para o que nos espera no segundo semestre deste ano. A ideia de criar formas com papel machê, em parceria com artistas venezianos, expressa a admiração de Jonathas pelos carnavalescos que desenvolvem as alegorias do Brasil por meio de diversos enredos e saberes populares.
Obras da exposição “Com o coração saindo pela boca”, de Jonathas de Andrade, no Pavilhão do Brasil, na Bienal de Veneza.Foto: Cortesia Ding Musa / Fundação Bienal de São Paulo
Filho de uma pedagoga, professora de escola da rede pública, Jonathas sempre viu a linguagem como uma expressão da identidade nacional. “Esses ditos são sedimentados, atravessam gerações, corpos, racialidades e etnias. E isso para mim fala tanto sobre a solidez de uma cultura como sobre a angústia que habita nossa sociedade. São reflexos de um presente cru, sem sentido e alucinante. Foi uma forma que encontrei de falar sobre um Brasil absolutamente complexo e plural”, revela o artista, que reuniu 250 provérbios, que tomam partes do corpo para expressar sensações, comportamentos e maneiras de estar no mundo. O resultado? Eles traduzem o cotidiano surreal em que vivemos e certa anestesia ou apatia diante de tantos disparates. Não à toa, o público literalmente “entra por um ouvido e sai pelo outro”.
No centro do pavilhão um “coração sai pela boca” e, de tempos em tempos, comprime o público, cobrindo as outras obras e a porta de saída. A ideia é colocá-lo justamente numa situação incômoda, de imprevisibilidade e negociação do espaço. “Com o coração saindo pela boca”, assim como com tantos outros ditos, é revelado o sentimento de medo quando se está na eminência de uma tragédia, e em momentos de absoluta emoção.” Nas paredes, expressões como “faca nos dentes”, “lamber os beiços”, “olho do furacão”, “das tripas coração” e “orelha quente”, entre outras, são representadas por meio de fotografias impressas em recortes de papelão, que retomam a estética de ilustração pop de Lichtenstein.
Fotografia impressa em papelão faz referência à expressão faca nos dentes.Foto: Cortesia Ding Musa / Fundação Bienal de São Paulo
Outra imagem traz a expressão “fogo no rabo”.Foto: Cortesia Ding Musa / Fundação Bienal de São Paulo
Detalhe da escultura em forma de orelha expostana porta do pavilhão brasileiro em Veneza.Foto: Cortesia Ding Musa / Fundação Bienal de São Paulo
O grande “nó na garganta” que toma o corpo de tantos brasileiros é traduzido por um filme que intercala imagens de partes do corpo, num ritmo pulsante, e vistas de desastres ecológicos, propondo uma reflexão sobre o que é, de acordo com o artista, a maior ferida do Brasil de hoje. “Acho que há um grande embaralhamento do presente. A humanidade vive uma espécie de desconexão com a natureza em cidades adoecidas, e ao mesmo tempo é muito difícil sair dessa rede que a gente construiu. Eu oscilo entre uma percepção mais melancólica e uma mais participativa dessa condição. E o delírio aparece, aqui, como um caminho para tomar fôlego.” Nunca precisamos tanto dele.
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