É hora de canalizar a sua surfista interior
Enquanto o sol está brilhando, a moda te convida a fechar os olhos e ouvir o som das ondas para reapresentar o surfwear.
Você deve se lembrar de Blue Crush, um dos filmes mais famosos do início dos anos 2000. Estrelado por Kate Bosworth, o drama adolescente acompanha Anne Marie, que está se preparando para um grande torneio de surfe na esperança de melhorar a vida de sua irmã e amigas. Se tratando da indústria de entretenimento da época, era de se esperar que u longa com garotas correndo de bíquini fosse um tanto sexualizado. Felizmente, não foi assim.
Centrado na carreira, desenvolvimento e objetivo da personagem, Blue Crush conta uma história de surfe autêntica, narrada de uma perspectiva feminina. Por isso, talvez tenha refletido no crescimento do esporte, inspirando uma geração inteira de jovens surfistas, como contou Kate em entrevista à New York Magazine. Enquanto isso, as não praticantes se agarravam ao guarda-roupa do filme. Os shorts jeans, as pulseiras de macramê e as camisetas estilo anos 1970 eram a chance de canalizar ao menos um pouco da determinação e paixão da protagonista.
Blue Crush, 2002. Foto: Divulgação
Naquele período, era comum vestir marcas de surfe da cabeça aos pés, mesmo que você nunca tivesse encostado em uma prancha. A maior provavelmente era a australiana Billabong. A label nasceu em 1973, na casa do surfista Gordon Merchant, e, em alguns anos, se tornou um fenômeno exportado para o mundo todo, com licenças internacionais e patrocinando os maiores nomes do esporte. As suas conterrâneas Rip Curl e Quiksilver também foram essenciais para a definição do visual.
Entretanto, na década de 2010, após anos de vendas em queda, muitas dessas etiquetas desapareceram, algumas entraram com pedido de falência e nem todas sobreviveram. Além da óbvia mudança promovida pelo império do fast fashion, houve uma dissolução na forma que as subculturas eram expostas na internet. De repente, surgiram novas e, agora, elas eram apresentadas com os facilitadores digitais. É aí que o apelo do surfwear empalideceu, envelhecendo mais como um souvenir havaiano cafona e menos como um movimento contracultural.
Constatar isso foi um tanto triste. Embora seja associada à imagem tropical polinésia pelo imaginário coletivo, a moda do surfe nunca foi uma coisa só. “Viajo pelo mundo inteiro, então o meu guarda-roupa varia de acordo com o lugar onde estou”, explica a surfista Michelle des Bouillons, logo após uma sessão de surfe em Nazaré, no litoral de Portugal, onde ocorrem as maiores ondas do mundo. A carioca, considerada a primeira mulher a surfar a onda da Viola, preza por conforto, qualidade e durabilidade em suas roupas.
Além das variações climáticas e culturais de cada país, o estilo está sujeito a alterações de acordo com o passar do tempo. Nos anos 1950, por exemplo, ele era definido pelos jeans extralargos. Depois, as silhuetas limpas assumiram o controle, seguidas das influências psicodélicas da década de 1970 e dos logotipos de 1980. A cada evolução, o denominador comum era os valores antissistema, que, mais tarde, se tornariam a base do streetwear.
“O surfe é um estilo de vida, você o vive dentro e fora da água. Se trata de ideologias, movimentos e valores que ultrapassam o esporte”, comenta Michelle. Nada disso, porém, era creditado com o vigor que deveria. É que, lá atrás, de maneira silenciosa, o impulso da modalidade acabou sendo substituído pelo skate, como retratado em Lords of Dogtown. Lançado em 2005, o filme se baseia no documentário Dogtown and Z-Boys, do surfista e skatista Stacy Peralta, que acompanha a transição entre as duas práticas.
Em termos de estilo, o que aconteceu é que, nas grandes capitais, onde os círculos de moda prosperavam, o skate possuía maior capital cultural. Isso explica a virada de Shawn Stussy, por exemplo. O designer californiano iniciou a sua carreira no surfe nos anos 1980, mas para fazer o seu nome e, claro, dinheiro, precisou expandir a sua perspectiva para outras subculturas. “São modalidades diferentes com investimentos e limitações diferentes, mas ambos carregam um sentimento de liberdade e representação. Espero que o surfe evolua cada vez mais”, deseja Michelle.
Agora, 20 anos depois do seu último auge, a temporada de verão 2023 sinaliza um retorno da aura surfista. Na Coperni, os maiôs de surfe viraram blusas. Na Dsquared2 e na Jacquemus, havia biquinis por toda parte. Na Isabel Marant, foi vista uma profusão de artesanato. Já na Emilio Pucci, os padrões vibrantes estavam prontos para a praia. Na Courrèges, o espírito litorâneo e o urbano convergiam. E na Proenza Schouler, com cabelos molhados e peles úmidas, as modelos aparentavam ter acabado de sair da água salgada.
O que todas essas marcas pareciam dizer é que, vendo de fora, há algo especialmente desejável na imagem de uma surfista. O corpo dourado, a camisa desbotada pelo sol, a devoção pelo oceano… É difícil não se atrair. De forma quase intangível, o fascínio parece ultrapassar a roupa para se tornar um estado de espírito aspiracional centrado na liberdade, bem-estar e beleza. Michelle des Bouillons concorda: “O universo do surfe está dentro de cada um de uma maneira, mesmo que não pratique o esporte. A minha avó amava ir à praia observar”.
Raf Simons, verão 1998. Foto: Divulgação
Décadas atrás, no verão de 1998, até Raf Simons, que nunca foi um grande fã de referências solares, se rendeu ao imaginário. Enquanto Alice, de The Sisters of Mercy, reverberava alto, homens de preto cruzavam a passarela. Eles não eram típicos surfistas, pelo contrário. Eram pálidos e sequer eram modelos de verdade (o casting foi feito por anúncios de rádio). Mas, em suas costas nuas, havia um detalhe: palmeiras pintadas.
Ali, o estilista belga refletia sobre a ideia da roupa com um pé na realidade e outro na fantasia, da que fala de histórias verdadeiras e também das ironias que a cerca. Mas, principalmente, da generosidade da roupa que convida de aspirantes a profissionais a canalizar o espírito de uma subcultura, em que todos têm o direito de sonhar.
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