De “White Lotus” aos menus, vinhos sicilianos são a bola da vez

Mineralidade, frescor e outros atributos dos rótulos produzidos no Sicília conquistam enófilos e provam que a vinicultura vai muito além do Marsala na ilha italiana.


Theo James, como Cameron, e Meghann Fahy, como Daphne Sullivan, em White Lotus
Theo James, como Cameron, e Meghann Fahy, como Daphne Sullivan, em White Lotus. Foto: Divulgação



“Parece que há um bocado de minerais vulcânicos nesses vinhos”, comenta a personagem Daphne (Meghann Fahy) num episódio da segunda temporada da série The White Lotus (HBO), ciranda de problemas de gente rica e tensões sexuais rodada na Sicília. “Podemos nos embebedar e, amanhã, nossa pele, nosso cabelo e nossas unhas estarão brilhando”, ela conclui, instigando seus amigos a visitar uma vinícola siciliana na região do vulcão Etna, nordeste da ilha italiana.

A visita acontece numa das propriedades da vinícola Planeta, entre as maiores da Sicília, com videiras em várias microrregiões da ilha. O sommelier da cena sugere aos dois casais começar por um vinho branco de Carricante, uva típica da região. Harper (Aubrey Plaza), enfurecida com a turma, toma uma taça atrás da outra, amarra um pileque e fala o diabo descabelado na cara de todo mundo. 

Mas recomendamos tranquilidade ao entrar no mundo dos vinhos sicilianos, porque bafafá é tudo que eles não inspiram. Vá devagar, devagarinho, há muito a descobrir. A quem busca novas emoções, a viagem à Sicília (in loco ou na taça) é plena de surpresas. A começar pela Carricante, que origina vinhos sexy, de acidez vibrante, fruta fresca e a mineralidade que os solos vulcânicos de fato levam ao líquido. Pra que bater boca quando se tem tanta elegância na taça? Não fica chique.

“A Sicília de hoje, com suas uvas autóctones, oferece uma diversidade incrível, maior do que em outras regiões clássicas da Itália”, diz Manoel Beato, chef sommelier do Grupo Fasano. Carricante, Nero d’Avola, Nerello Mascalese, Frappato, Grillo, Catarratto e outras castas de nomes diferentões fazem a cabeça de quem sabe das coisas e ganham cada vez mais popularidade.

plantação de uva

Colheita na vinícola Planeta. Foto: Divulgação

Uma pesquisa recente da agência Colangelo & Partners, especializada no mundo da bebida e da comida, aponta a Sicília como a região vinícola mais cobiçada pelo público estadunidense, seguida por Paso Robles (Califórnia), Douro (Portugal), Piemonte (Itália) e Mendoza (Argentina). Tá na moda.

Beato fala em “Sicília de hoje” porque nem sempre foi assim. Em sua recente passagem pelo restaurante Fasano de Nova York, onde implantou a carta de vinhos, ele pôde constatar o frisson siciliano no Hemisfério Norte. Porém, há 25 ou 30 anos, a ilha amargava a fama de produzir vinhos medíocres. Mesmo seu ícone, o vinho fortificado de Marsala, havia sido banalizado e se tornado sinônimo de bebida para uso culinário – frango ao Marsala é um clássico da gastronomia cafona.

Alguns produtores, no entanto, passaram a valorizar as uvas próprias do lugar, as tais autóctones. Deixaram de dar tanto valor às castas internacionais, ainda presentes na ilha, como Cabernet Sauvignon, Syrah ou Chardonnay, buscando cores e sabores locais. Capricharam no cultivo e na vinificação das pratas da casa e elevaram a Sicília ao posto de região-sensação. “Tudo o que a gente não imaginava que fosse acontecer no sul da Itália”, constata o sommelier.

Uma das lições que se pode tirar dessa história é a máxima do “seja você mesmo”. Outra, bem interessante para quem bebe, é a atraente relação custo-benefício dos rótulos da ilha. “A Sicília não é produtora de vinhos caríssimos. Os grandes rótulos sicilianos são mais econômicos do que os grandes Barolos do Piemonte ou os Brunellos de Montalcino da Toscana”, diz Jessica Marinzeck, sommelière e gerente de marketing da importadora Celllar Vinhos.

Isso não quer dizer que um grande vinho siciliano seja exatamente barato para a maioria dos orçamentos. Produtos de alta gama da Sicília, porém, equiparam-se em qualidade aos das regiões superstars do centro e do norte da Itália, símbolos de status para quem ostenta com vinho. Entre elegantes e delicados ou intensos e encorpados, na certa você deve encontrar um siciliano para chamar de seu – e pode ser amor à primeira taça. “São vinhos sedutores, amigáveis, fáceis de gostar. Encantam desde o iniciante até o wine geek”, diz Jessica.

Só não vale tentar fazer tratamento de beleza com vinhos de solo vulcânico – ressaca sempre fez mal à pele, em qualquer grau. Com moderação, conheça algumas das principais uvas sicilianas que Jessica, Beato e a reportagem de ELLE indicam.

Nero d’Avola (tinta)

Nero d’Avola é a uva mais conhecida da Sicília, cultivada em todas as suas microrregiões. Mãe de vinhos robustos e generosos, a casta mudou tudo e apontou um caminho de personalidade para a ilha. Manoel Beato situa o rótulo Duca Enrico (TodoVino), elaborado pela vinícola Duca de Salaparuta, como um marco.

garrafa do vinho Duca Enrico

Duca Enrico, um dos primeiros sicilianos a se destacar. Foto: Divulgação

“Foi o primeiro supersiciliano a trazer sinais de modernidade, mostrando que ali era possível produzir muito além de vinhos rústicos e banais. A partir do começo dos anos 1990, novos produtores, inspirados pelo Duca Enrico, aprimoraram técnicas e passaram a apresentar excelentes vinhos”, diz o sommelier.

Arredondado, encorpado e com potencial para envelhecimento, o Duca traz as características da Nero d’Avola em seu esplendor: muita fruta vermelha madura, toques de especiarias e flores. Versátil, a uva também gera vinhos de corpo e teor alcoólico mais baixos. Esse perfil elegante pode ser alcançado em regiões montanhosas da Sicília, onde a altitude fornece maiores frescor e acidez à uva.

Há grande oferta de rótulos de Nero d’Avola no Brasil, alguns de precinho bem atraente (tipo 50 pratas), que a gente encontra em supermercado. Nossos especialistas indicam alguns dos que valem a pena, na faixa dos R$ 160 a R$ 240: Feudo Maccari Neré (Decanter), Planeta Plumbago IGT (TodoVino), Donnafugata La Bella Sedàra (World Wine), Mazzei Zisola (Grand Cru) Donnafugata Sherazade (World Wine), Nero di Lupo Azienda Agricola COS (Wines4U). 

garrafa de vinho siciliano donna fugata

Donnafugata La Bella Sedàra: boa opção de Nero d'Ávola. Foto: Divulgação

Nerello Mascalese (tinta)

Quando se fala em delicadeza e elegância nos vinhos sicilianos, muito se deve à Nerello Mascalese, uva apelidada por alguns especialistas de Pinot Noir italiana. Assim como a cepa francesa de Borgonha, a Nerello gera tintos leves, de taninos macios e pouco agressivos, menos intensos na cor e puxados para a acidez.

“Esses vinhos têm muito a ver com nosso clima, são tintos de verão, cheios de frescor e vivacidade”, diz Jessica Marinzeck, que declara sua preferência por esta cepa autóctone. Frutas silvestres como morango, cerejas, toques herbáceos, de canela e outras especiarias são comuns nos vinhos de Nerello. Encontram bom par com a Nerello Cappuccio, blend que muitos produtores gostam de fazer.

Alguns exemplares bons de taça são Vinupetra Etna Rosso (Cellar Vinhos), Alta Mora Guardiola (World Wine), Contrada Monte S. Nicolò Etna Rosso (corte de Mascalese e Cappuccio, na Zahil) e Donnafugata Dolce & Gabbana Cuordilava Etna Rosso (World Wine).

Frappato (tinta)

Menos conhecida, Frappato é outra uva de taninos delicados, que costuma aparecer em vinhos de corte com Nero d’Avola ou em carreira solo. Uma das microrregiões mais propícias para seu cultivo é Cerasuolo Vittoria, no sudoeste da ilha, mas há belos Frappatos nas redondezas.

A Frappato gera vinhos com sensação de frutas vermelhas frescas no nariz e na boca, além de toques florais e de especiarias. A cor rubi intensa pode enganar e nos fazer pensar que se trata de um vinho encorpadão, mas ele pode ser muito sedoso no paladar, suculento e dono de uma marcante acidez.

Manoel Beato indica dois rótulos de alta gama: O 100% Frappato IGP COS (Wines 4U) e o blend com Nero d’Avola Occhipinti Il Frappato Terre Siciliane (Ricardo Bohn Gonçalves Vinhos). O varietal Mandrarossa Frappato IGT (Zahil Rio) e o blend Planeta Cerasuolo di Vittoria DOCG (Grand Cru) também valem a prova.

Carricante (branca)

O vinho que faz a chata da Harper soltar o verbo durante a degustação em White Lotus é Planeta Etna Bianco (Grand Cru), varietal da uva branca Carricante.  Nasce no Etna, nordeste da Sicília, uma das regiões mais celebradas da ilha pelo solo vulcânico e pelas altitudes que garantem frescor aos vinhos.

garrafa de vinho siciliano etna bianco com campo florido ao fundo

Planeta Etna Bianco: aquele do porre da Harper. Foto: Divulgação

“O solo mineral contribui para que a Carricante desenvolva uma acidez marcada e refrescante. Também são vinhos um pouco mais encorpados, têm textura e bastante complexidade”, diz Jessica, adiantando o que você pode encontrar numa taça de Carricante do Etna.

Outra vinícola de respeito que cultiva Carricante no pedaço é Donnafugata, responsável por incrementar o buzz dos vinhos sicilianos em sua parceria com a grife Dolce & Gabbana. Donnafugata D&G Isolano Etna Bianco (World Wine) é luxo não só no rótulo, mas no pot-pourri de frutas brancas, cítricas, notas florais e de mel, salinidade e toque mineral.

Outros rótulos interessantes da casta são Alta Mora Etna Bianco (World Wine), Tenuta delle Terre Nere Etna Bianco Superiore (Mistral) e Generazione Alessandro Tainara Etna Bianco (Sonoma).

Grillo e Catarratto (brancas)

Grillo e Catarratto são outras uvas brancas sicilianas populares também difundidas no Brasil. A primeira agrada a quem gosta de vinhos cítricos, leves e secos. Tem aromas de cascas de laranja e limão, flor de laranjeira, mineralidade. Um par perfeito para pratos de sabor sutil.

Catarratto tem perfil menos aromático, maior volume em boca e predominam frutas de polpa branca no aroma e no paladar, com algum floral, citricidade e, mais uma vez, final mineral. Jessica recomenda sua harmonização com frituras, especialmente das comidas do mar.

Boas apostas para quem quer conhecê-las são Curatolo Arini Grillo Borgo Selene (Decanter), Nicosia Grillo (Zahil), Duca di Salaparuta Calanica Grillo (TodoVino), Donnafugata Anthìlia Catarratto (World Wine).

Vinhos de sobremesa

Os vinhos fortificados de Marsala, oeste da Sicília, são tradicionalmente elaborados com as brancas Grillo, Catarratto e Inzolia. São rotulados de acordo com o nível de açúcar (do seco ao doce) e sua coloração pode variar do dourado ao rubi (neste caso, quando vinificados com castas tintas como Nero d’Avola, Nerello Mascalese e Pignatello). 

Seu uso na culinária popularizou o estilo, mas também fez com que perdesse importância em relação a fortificados como Porto, Jerez ou Madeira. Há um movimento de resgate do Marsala por produtores cientes de sua nobreza. Caso do Curatolo Arini Marsala Fine Semisecco (Decanter) e do Marco de Bartoli Vecchio Sampere Ventennale (Coletânea Vinhos).

Na Sicília são feitos outros tipos de vinhos doces, de colheita tardia ou passificados. No último caso, a bebida é vinificada com uvas passas, que levam seu açúcar concentrado à taça. Donnafugata Passito de Pantelleria Ben Ryé (World Wine) é produzido com uvas Zibbido (nome siciliano para a Moscatel de Alexandria).

Quanto ao frango ou ao filé de mignon ao Marsala, não precisa cortá-los do caderno de receitas. O molho de vinho siciliano reduzido com échalotes, alho, cogumelos, manteiga, farinha e caldo de carne é uma delicinha. Claro que não é aconselhável usar um Marsala de alta categoria na panela, a não ser que se rasgue dinheiro como a Tanya (Jennifer Coolidge) de White Lotus. Há opções baratinhas, próprias para esse fim. Em vez de cafona, você pode chamar de cozinha de afeto. Tá na moda também.

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