Escrever por quê?

Sobre palavras, falantes e os enigmas de um escritor "ilegível"


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Essa coisa de escrever é uma loucura. Tantas teses, tanta regra, tanto conselho, tanto se diz sobre isso, como fazer, como usar, assunto que não tem fim nem amarração muito geral e definitiva que se possa levar a sério. Mas existem pontos altos, ou baixos, vai saber, de todo jeito são pontos que se destacam porque parece que encostam em algum terreno sensível da questão, faz com que ela abra assim as mãos com alguma receptividade. Que questão? Essa sobre do que se trata quando falamos de escrever.

Quando somos pequenos, nós das culturas com alfabetos, se há certas condições pra isso, somos informados da importância da escrita, de aprender a escrever.

Mesmo povos sem esse esqueleto alfabético desenvolveram formas de escrita. Povos indígenas brasileiros pré-colonização, por exemplo, com seus grafismos, seus registros em objetos e superfícies, os que ficaram, os feitos para desaparecer com o tempo e os que foram apagados à força. Passamos e recebemos mensagens, fazemos a ligação entre fala e letra e, assim nos dizem, é como se faz e ponto final, tudo serviria para nos comunicarmos. Em geral aceitamos a explicação, porque afinal ninguém parece estar fazendo muitas perguntas sobre isso, só seguimos com nossas cartilhas e gramáticas, mais ou menos padronizadas.

Mas, se algo nos sufoca, talvez a gente sinta cair a ficha de que essa coisa das palavras quando não piora ajuda. Que ela faz diferença. E isso tem a ver com esse fato: falamos. Mesmo antes de aprendermos a falar, mesmo se não nos comunicamos verbalmente, tipicamente, somos atravessados pela palavra, esse é um dos nossos lances complexos, e é também um lance único.

Quem escreve escreve. Mas que tipo de coisa? Por que alguém escreve? Quer dizer, por que alguém escreve quando não tem um objetivo muito dado, desses que já existe um entendimento sobre? E escreve de que maneira? Que se faça disso uma comunicação, uma profissão, uma carreira, um rótulo visto de certa perspectiva, é uma coisa. Mas por que cargas d’inferno alguém diz, não, agora eu vou escrever aqui?

De todas as respostas a essa pergunta de “por que escrever” ou “por que seguir escrevendo?” a minha preferida é a estilo Clarice Lispector. “E eu sei?”. Não é a mais eloquente, mas me parece muito verdadeira. Um eu sozinho não dá conta disso, não. Um saber todo engomado ou descabelado em série também não. Uma certeza não dá nada e sem nada fica difícil. Uma dúvida abre portas.

Assim, pessoalmente, gosto da linha desse não saber curioso, perguntador. Ela é torta, não coincide demais com seja lá o que for.

Os psicanalistas adoram debater a escrita, não sem motivo. Alguns levam essa conversa à frente ou para os lados com muito interesse, alguns com muito brilho. E com chateações, as sempre necessárias chateações, contra elas muita coisa boa se levanta.

Um debate desses, dos mais famosos, envolve a obra de James Joyce. Mais especificamente sua escrita, sua tão comentada ilegibilidade até ou depois de certo ponto. As pessoas se divertem muito com isso, arrumam brigas internas ou entre turmas, o pessoal da literatura e o da psicanálise. Trocando farpas, e, dentro de “casa”, bombas.

James Joyce não sei se estava se divertindo em algum ponto do caminho, mas ele aprontou alguma coisa ali, alguma coisa que não passou despercebida. “Vocês podem ler Joyce, por exemplo. Então vocês verão como isso começou a se produzir. Vocês verão que a linguagem se aperfeiçoa e sabe brincar, sabe brincar com a escrita. Joyce, eu admito que ele seja ilegível”, isso é Jacques Lacan, o sempre encrenqueiro, sempre com muito o que fazer, todo enrolado com suas formalizações, com seu inconsciente estruturado como linguagem, com os saltos de seus ensinos, mexendo com seu nó. Uma paixão dedicada.

Lacan levantou algumas lebres misteriosíssimas, provocações bacanas e questões cabeludas sobre “o texto Joyce”. Assim mesmo, como se Joyce fosse aquela escrita, e ser uma escrita, o nome de uma escrita, isso vai longe, não é qualquer coisa.

Ainda não se cansaram de apontar os erros, burradas, precipitações sacadas e grandes acertos de Lacan nesse episódio, nessas jornadas de Joyce, coisa que se fosse uma árvore já teria dado maçãs, pêras, goiabas, cobras e lagartos, rios, pontes e overdrives, borboletas. Também tem isso, a pessoa deixa uma obra e sabe-se lá o que ela vai aprontar com quem aparecer pelo caminho. Joyce e suas palavras trituradas, suas peles de cobra, sua escrita sonoríssima, seu trabalho de pesquisa, seus trovões, seus fluxos, seu jeitão de dar seu jeito, isso mexeu com o francês.

O psicanalista Ram Mandil em seu Efeitos da Letra diz que Joyce fazia “por meio da escrita um empilhamento, uma deposição de camadas de palavras sobre palavras”. E continua. “O que se regenera, na verdade [nessa escrita], é o impacto traumático da linguagem sobre o ser falante, a tal ponto que, deixando-se levar pelo riocorrente (riverrun) joyciano, percebemos que cada língua não passa de uma forma de defesa, de uma forma de apaziguamento, de adormecimento do que há de enlouquecedor e impositivo em nossa relação com as palavras”. Dá o que pensar, vale a pena puxar esse fio.

O que está bastante em jogo aí é o sentido e as relações de produção de sentido. Não que não possa haver sentido, que todo e qualquer sentido seja uma prisão. Nem adianta também dizer somente que muitos sentidos são possíveis para depois sentar a bunda no clichê da multiplicidade de narrativas. Tem a ver com criação não com “criativos” em cativeiro.

Tem a ver com o “e eu sei?”. Porque Clarice se escrevia, e como escreveu, ela sustenta que era sem saber. O que não quer dizer que tenha sido de qualquer jeito, que não tenha dado notícia das vezes que se encontrou se desconhecendo, dos seus processos.

Escrever pode ter a ver com isso. Uma “linguagem de exceção”, como disse a psicanalista Colette Soler, em relação com o mundo e com o que cabe, sobra ou transborda dele, com como se diz e escreve mundo, como se dizer e se escrever no mundo, como ele é dito e escrito. Relação com como é dizer escutar, ver, imaginar, viver. Relação com o que não para de se escrever ou de não se escrever. As dores do mundo, como isso nos implica e vai complicando. Ou pior, simplificando demais e mais, fazendo mercado de existir.

Lembrei agora de Carolina Maria de Jesus, do livro Quarto de Despejo que até hoje é muitas vezes reduzido ao seu aspecto de sintonia da denúncia , de retrato da realidade, quando ela já havia dito e escrito: escrever ali era também era sonho, alimento, desafio, era não coincidir com o resto. Quiseram prender Carolina no sentido posto, enfiá-la no quartinho, mas ela não deixou.

Em paralelo às análises literárias ou psicanalíticas de Joyce e ao quanto ele encontrou algum prazer em deixar mapas sem tesouro para confundir o futuro, podemos aceitar seu convite. De ler alguma coisa pelo fluxo, de jogar esconde-esconde radical com a escrita, com a linguagem, com a vida. Ir por aí pra procurar sem tanto saber, sem tanto achar e sem guardar caixão.

Vivian Whiteman, escritora e psicanalista, é editora especial da ELLE e escreve sobre moda, sociedade e comportamento.

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