“Ninguém tem paciência com mulher que sofre violência doméstica”

Na segunda reportagem da série sobre violência contra a mulher, ONGs reforçam a importância da escuta empática no atendimento a vítimas de agressão.


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Quando uma mulher sofre violência em casa, podem ser necessários anos para preencher a lacuna entre o momento em que ela procura ajuda pela primeira vez até a hora em que, enfim, consegue seguir em frente, deixando o episódio em seu passado. Nesse processo, a escuta empática, humanizada e sem julgamentos é uma etapa fundamental para as ONGs que oferecem atendimento à mulher. “Ninguém tem paciência com a mulher que sofre violência doméstica. Ela vai reclamar uma vez para alguém, a pessoa vai se sensibilizar, vai dar força para ela sair dessa situação. Ela vai reclamar uma segunda vez, já vai ouvir ‘eu já te falei o que você tem que fazer’. Na terceira, a pessoa já vai falar ‘você não larga porque você não quer'”, diz Samara Ribeiro, responsável pela gestão e liderança nacional da Rede de Apoio e Acolhimento do projeto Justiceiras.

Ao longo desse processo, ela se vê isolada na dor, diz Anne Wilians, diretora-presidente do Instituto Nelson Wilians, focado em ações de empoderamento e justiça social. “Como ela não consegue sair desse ciclo, que se repete e cada vez fica mais abusivo, não consegue mais contar com as pessoas com quem dividia essa dor. Porque elas passam até a cobrá-la por estar passando por aquilo. Isso a afasta do seu meio de convívio. A rede de apoio e de acolhimento vem ser amiga dessa mulher. É a sororidade na prática.”

Além de ser um ombro no desabafo, a escuta empática ajuda a lidar com o trauma. “Eu vejo isso em quase 100% dos casos que chegam até o meu escritório: a dificuldade de falar de forma organizada sobre o que aconteceu. O congelamento, a dissociação, a dificuldade de entrar em contato com aquilo. Às vezes, passo duas horas e meia conversando com a mulher, mas ela não consegue entrar no assunto. Ela não lembra. Então, ser provocada a falar é uma forma de reorganizar a jornada dela, a trajetória”, diz Izabella Borges, advogada, psicanalista e cofundadora do projeto Sentinelas, que busca empoderar mulheres com informações sobre violência de gênero, saúde e autoconhecimento.

No Justiceiras, essa rede inclui orientação jurídica, médica, psicológica, socioassistencial e apoio e acolhimento a meninas e mulheres que sofreram violência doméstica. “A advogada vai explicar quais são os direitos dela. A mulher tem muitas dúvidas e, dentro da situação da violência doméstica, estando fragilizada, é ainda mais difícil entender. A atuação da psicóloga é fundamental, porque a ajuda a compreender que ela não está louca, não está vendo coisa onde não tem, não está aumentando a gravidade da situação”, diz Samara. “Na hora que acontece, ela acha absurdo, mas aí o cara vem e promete que vai mudar e ela começa a diminuir a gravidade do que ele fez. E ela só entende quando ele torna a fazer na mesma intensidade ou pior. Quando a gente não atua nisso, o feminicídio está fadado a acontecer”, alerta Samara.

Essa sequência, diz ela, é chamada de ciclo da violência, e pode se repetir muitas vezes até que a mulher consiga deixar um relacionamento abusivo. “A gente tem a primeira fase, que é a evolução da tensão, quando as reclamações começam a ser mais incisivas, o homem começa a humilhar a mulher, ofendê-la. Aí, nós temos a explosão, com xingamentos e ofensas mais graves, que evolui para objetos sendo jogados, o soco na parede. Até que a mulher está sendo vítima diretamente da violência física, moral e psicológica. Ali, ela toma uma decisão de se separar, mas quando o homem entende que está perdendo o controle sobre ela, que ela está querendo desistir do relacionamento, ele, que também está adoecido, volta atrás.”

Nesse momento, afirma Samara, uma nova etapa do ciclo tem início, fazendo parecer que tudo vai mudar. “Ele se mostra arrependido, presenteia. É o que a gente chama de fase de lua de mel: ele promete que vai ser o melhor companheiro do mundo, o melhor pai, o melhor marido, vai ajudar nas tarefas de casa. Isso dura um período curto, e a gente volta para a primeira fase. Aí, vêm de novo a explosão e a lua de mel.” Nessa escalada da violência, diz Samara, a tendência é que a cada repetição a situação piore e, quando chega ao limite, se nada é feito, pode acabar em feminicídio.

Por que ela não consegue ir embora?

Mas, se a mulher está sofrendo e correndo riscos, por que não abandona logo a relação? “É uma lacuna preenchida pela dependência financeira, emocional, pelo medo do julgamento social, da solidão. Às vezes, o cara tem uma situação econômica melhor que a dela. Se eles têm filhos, a mãe não vai oferecer a mesma qualidade de vida que o pai, ela não quer ficar sem os filhos, então, aceita passar por essa situação”, afirma Samara. “Ela vai ficando presa a todas as exigências que esse homem faz: ‘não quero que trabalhe, quero que cuide da família, quero que fique em casa’. Isso cria essa dependência, inclusive financeira, que impossibilita que a mulher rompa o ciclo da violência,” completa Izabella.

Mas pedir ajuda já é um primeiro passo transformador, ainda que a mulher não consiga sair de casa logo depois. “Uma sementinha é plantada. A partir do momento em que ela pediu ajuda, conversou com alguém, entendeu que não está louca, não está sozinha, que tem, sim, saída, ela vai pensar sobre isso toda vez que o cara humilhar e agredir. Ela vai refletindo até o dia em que não aceita mais e sai da relação. Isso pode ser em três meses ou em até 10 anos, quando a saúde emocional dela já minguou, ela já perdeu toda a sua rede de apoio pessoal. Ele já a afastou de todo mundo. E aí, esse processo acaba sendo mais demorado, mas nunca por um fator só, e sim por diversos”, avalia Samara.

De vítima a sobrevivente, um longo caminho

E quando a mulher enfim consegue se livrar do relacionamento abusivo, o problema está resolvido? “As pessoas têm essa idealização de que é só fazer a denúncia e pronto, mas a verdade é que se inicia um capítulo muito difícil quando a mulher decide denunciar”, afirma Izabella.

No Justiceiras, conta Samara, nessa etapa da jornada da mulher ela é encaminhada por uma assistente social para a rede existente no seu município para ter acesso a serviços gratuitos, como psicoterapia. Em São Paulo, há ainda programas como o “Tem Saída”, convênio entre o poder público e empresas que oferecem emprego a mulheres em situação de violência.

Para Izabella, embora a vulnerabilidade social e econômica seja um agravante, toda mulher tem potencial para ser vítima, já que não há um perfil específico para os casos de agressão doméstica. “Tem mulheres ricas que sofrem violências sofisticadas e complexas, como fraudes patrimoniais. A mulher se casa com um homem que dá uma vida de princesa para ela. Ele a obriga a não trabalhar, eles se casam em regime de separação total e, quando ela se separa, perde absolutamente tudo. É importante que a gente tenha em mente que toda mulher tem uma vulnerabilidade específica. Se a gente for pensar numa mulher famosa, a vulnerabilidade dela pode ser a exposição pública. Ou uma mulher que sempre teve uma vida de riqueza, de repente ela tem tudo cortado, e uma série de procedimentos distribuídos no âmbito de família, criminal. E ela sequer vai ter condições de contratar um escritório para defendê-la em tantos procedimentos. Então, ela se vê numa violência institucional”, afirma.

Daí a importância de ouvir a mulher sem julgá-la. “A escuta empática é uma ferramenta muito importante, empoderadora. A mulher consegue reorganizar toda a história da vida dela, a narrativa, incluindo o capítulo da violência, mas dando uma nova forma para esse capítulo, deixando-o apenas um capítulo e não como o fator determinante de toda a sua vida”, opina Izabella.

“A mulher vai recair, vai querer voltar e precisa estar fortalecida para entender que uma relação saudável não tem que ocorrer daquela forma. E que aquela pessoa não é a única para ela. Ela pode seguir a vida. Se ela tiver filho, tudo bem. O cara tem que pagar pensão, ser presente na vida do filho, mas ela não tem que se manter em uma relação que coloca a vida dela em risco, que mina sua saúde emocional, seu psicológico, a faz esquecer quem ela é”, diz Samara. E ainda que muito precise ser feito em termos de políticas públicas, a Lei Maria da Penha é um avanço e tanto. “O atendimento nas delegacias em geral precisa melhorar 200%, e as Delegacias da Mulher precisam aumentar em quantidade, mas o atendimento lá já é muito mais humanizado. Hoje em dia, a gente tem o amparo da lei e, quando a mulher tem o conhecimento de como essa lei funciona, ela consegue fazer valer”, diz.

Como ajudar ou procurar ajuda

Sentinelas

Compartilha informações sobre violência de gênero, saúde e autoconhecimento nas redes sociais. Dá orientações em relação aos canais e instituições que podem ser procurados em caso de violência e assédio. Instagram: @sentinelasdelas

Justiceiras

De forma online, oferece orientação jurídica, médica, psicológica, socioassistencial e rede de apoio e acolhimento a meninas e mulheres que sofreram violência doméstica. Basta preencher o formulário disponível no site e no Instagram @justiceirasoficial

Compartilhando Direito (Instituto Nelson Wilians)

Focado no empoderamento e na justiça social, o Instituto tem uma série de programas, como o Compartilhando Direito, para atender principalmente adolescentes, jovens e mulheres, sempre por meio de parcerias com outras instituições. Instagram: @institutonw

Rede Feminista de Juristas (Defemde)

Fazem atualmente um trabalho de advocacy, lutando pela criação de políticas públicas que combatam a discriminação de mulheres e ajudem a promover a igualdade de gênero. Instagram: @defemde

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