Abdômen trincado: entre o ataque e o fetiche

Para conseguir o six pack, muita gente vive rotina de atleta e até faz procedimentos estéticos invasivos. Em contrapartida, os músculos transformam mulheres fisiculturistas em alvos de comentários ofensivos.


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Foto: Daniel Roseberry para Schiparelli



O abdômen trincado está na moda. Literalmente. Em sua coleção mais recente, a grife Schiaparelli colocou, como parte de vestidos ou como peças únicas, um corset diferente, imitando um torso com o famoso six-pack. A peça foi criada usando como molde os manequins realistas Pascal e Pascaline, nomeados assim pela própria Elsa Schiaparelli, fundadora da marca. No fim do ano passado, as peças viralizaram nas redes sociais por conta de Kim Kardashian, que usou um vestido com o corset em sua festa de Natal.

Os seis gominhos na barriga sempre fizeram parte do padrão de beleza. Eles já estavam lá nas estátuas de Michelangelo. Depois da febre do bumbum malhado, o abdômen sarado é a obsessão fitness da vez. Camila Coelho, Deborah Secco e Mayra Cardi, por exemplo, não escondem suas barrigas definidas nas redes sociais. Intervenções estéticas, das menos invasivas, como massagens, até as mais complexas, como a lipoaspiração alta-definição (mais conhecida como lipo LAD), se tornaram um sucesso.

Porém, de acordo com Angelita Jaeger, professora e pesquisadora da Universidade Federal de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, e autora do artigo “O músculo estraga a mulher? A produção de feminilidades no fisiculturismo”, de 2011, por mais que o six-pack seja um sonho de consumo, ele, no corpo da mulher, ainda é um tanto questionador. “O músculo foi construído socialmente como uma característica ao mundo masculino. Quanto mais forte, mais musculoso, mais homem ele era”, fala. “Na mulher, os músculos torneados subvertem a noção de feminilidade.”

Show do corpo

O culto ao corpo torneado parece ser intrínseco à nossa sociedade, mas, na realidade, ele é um fenômeno relativamente recente. Em meados do século passado, a noção de saúde deixou de ser apenas “não estar doente” e se englobou o bem-estar psico-social completo. E isso dependia inteiramente de você. “O que é ótimo e horrível, já que ser gordo ou magro deixou de ser uma coisa da vida, uma característica herdada da família, mas uma responsabilidade sua, resultado das suas escolhas”, diz Denise Bernuzzi de Sant`anna, historiadora e autora dos livros História da Beleza no Brasil (2014) e Gordos, magros e obesos: a história do peso no Brasil (2016). “É assim que surge a noção de que, se você não é magro, você é um fracassado.”

Porém, a obsessão pelo corpo perfeito estourou de vez apenas nos anos 1980. “Ele estava nas propagandas de TV. Houve um aumento de academias de ginásticas, o lugar onde os homens e mulheres mais sedutores da época se encontravam nessa ideia de que ter o físico malhado era sinônimo para se sentir bem e feliz”. Difícil não lembrar de Jane Fonda, certo?

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Em sua última coleção couture para a Schiaparelli, Daniel Roseberry criou falsos six-packs como vestidos e acessórios.Foto: Daniel Roseberry para Schiparelli

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É nessa época, também, que os concursos de fisiculturismo se popularizam no Brasil. Inclusive as versões femininas. “E é também nesse momento que surge toda a maquinaria para construir esse corpo musculoso, como a musculação, as dietas, suplementos e intervenções”, fala Angelita Jaeger.

Porém, mulheres fortes não foram uma invenção dos anos 1980. No começo do século 19, elas já circulavam pela Europa fazendo exibições. “Eram artistas que exibiam seus músculos e forças. Erguiam plataformas com cavalos, com peso. Era um espetáculo”, conta a especialista. Na época, elas eram um “espécime exótico”. No século seguinte, elas também despertariam uma reação semelhante. Já que mesmo a musa fitness Fonda não era musculosa, mas longilínea.

Em 1991, quando os concursos de fisiculturismo estavam bombando, a atleta Bev Francis mostrou, de acordo com Angelita, o físico feminino mais musculoso já visto, mas perdeu a competição para Lenda Murray, visivelmente menor do que ela. “Porque a Lenda era vista como ‘mais bonita’ dentro do padrão de feminilidade”, explica a historiadora. No Brasil, a Confederação Brasileira de Musculação, Fisiculturismo e Fitness pediu, em 2008, que as atletas fisiculturistas diminuíssem em 20% o volume muscular de seus corpos. “Eles alegaram que era uma questão de saúde e estética. Mas descobri, depois, que os campeonatos de fisiculturismo femininos não estavam mais despertando tanto a atenção da imprensa porque as mulheres estavam tão grandes quanto os homens. Elas borravam a noção de feminilidade e, por isso, foram impedidas indefinidamente de potencializarem seus músculos”, conta Angelita.

“Nossa, está feio”, “Por que você está ficando igual a um homem?”… Esse tipo de comentário é frequente para a fisiculturista Vanessa Alcântara, que compete nas categorias de wellness. “E rolam muitas outras coisas, apesar de eu achar que não sou tão musculosa assim, há mulheres muito maiores do que eu”, fala. Ela não está sozinha. A página de influenciadoras como Gracyanne Barbosa e Juju Salimeni também estão cheias desses tipos de mensagens. “Porque elas vão contra a ideia de que todas as mulheres são mais fracas do que os homens”, fala a historiadora.

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Arnold Schwarzenegger em 1976.Foto: Getty Images

E esse “preconceito” fica claro, inclusive, na representação dos super-heróis na cultura pop. Depois de ganhar sete vezes o concurso de fisiculturismo Mr. Olympia, Arnold Schwarzenegger foi escalado como o protagonista de Conan, o Bárbaro (1982). “As mulheres fisiculturistas contemporâneas a ele não chegaram a assumir papeis similares”, comenta Angelita Jaeger. E, mesmo anos depois, as personagens superpoderosas continuam sendo retratadas com a musculatura pouco trabalhada. Recentemente, Brie Larson causou espanto ao optar por ficar musculosa para viver a Capitã Marvel.

O abdômen definido fica bonito no Instagram?

Não é uma tarefa fácil conquistar os gominhos na barriga. É preciso ter um estilo de vida muito semelhante a de uma atleta, com uma dieta bastante regrada e muitas horas de musculação. Sem falar em massagens e drenagens para tirar o inchaço. “Ele não é para todas as pessoas. Não é para quem trabalha o dia todo sentado e tem apenas 30 minutos na correria do dia para fazer exercícios. Ele precisa de toda uma parafernalha e nem todo mundo tem tempo ou dinheiro para fazer o mesmo. Assim, caímos em um paradoxo para a sociedade brasileira. Quanto mais a obesidade cresce no país, mais um abdômen trincado te coloca em uma posição de privilégio”, fala Angelita.

Se tem a barriga sarada, você não é apenas bonito, está em forma, mas também ganha uma série de representações subjetivas e adjetivos muito valorizados no mundo que todo mundo quer ser empresário, dono de si. “Você é uma pessoa perseverante, vencedora, com determinação. Forte, batalhadora”, fala Denise. “Elas se mostram como empreendedoras do próprio corpo, que, por ser sarado, abre portas. Elas frequentam restaurantes badalados, vão em hotéis maravilhosos, conquistam um companheiro lindíssimo. E, para ter uma vida semelhante, é preciso ter um corpo como o delas”, complementa Angelita.

“O corpo, hoje, é a sua identidade. Não é mais a sua alma, de onde você veio, onde cresceu. Você é o que você expressa fisicamente”, Denise Bernuzzi de Sant`anna, historiadora

As fisiculturistas como Vanessa precisam se dedicar de 10 a 15 anos para construir um corpo musculoso. Para furar a cadeia de acontecimentos e apressar as coisas, muitas pessoas que aspiram o físico de uma musa fitness costumam lançar mão de procedimentos estéticos.

O Brasil é o país que mais faz cirurgias plásticas no mundo, de acordo com a ISAPS (Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética). Em levantamento feito em 2018, a entidade percebeu que o país registrou a realização de mais de 1 milhão de procedimentos invasivos. As intervenções mais procuradas foram a lipoaspiração e a implantação de silicone. Terreno perfeito para uma cirurgia que promete criar um corpo sarado virar hit.

Barriga sarada instantaneamente?

A lipoaspiração de alta-definição foi, de acordo com o cirurgião plástico Laercio Guerra, desenvolvida pelo médico colombiano Alfredo Royos em 2007. “A lipo LAD, como ela é mais conhecida, é uma evolução da lipoaspiração. Ela esculpe melhor o contorno corporal valorizando as transições musculares”.

Não há nenhuma estatística dizendo quantas pessoas foram atrás de fazer o procedimento, mas o especialista diz que, no consultório, houve um aumento significativo na procura pela lipo LAD. A cantora Ludmilla e sua mulher, Bruna Gonçalves, fizeram a intervenção. A youtuber Viih Tube e a ex-BBB Flay também já admitiram que passaram pela nova lipoaspiração. “As pessoas procuram esse procedimento para conseguir um aspecto mais tonificado do corpo”, afirma Guerra.

Em janeiro deste ano, no entanto, a morte da influenciadora Liliane Amorim, de 26 anos, aqueceu a discussão relacionada à lipo LAD. A também influenciadora Thaynara OG, de 28 anos, contribuiu para a reflexão ao desabafar dizendo que havia ficado uma semana internada na UTI após fazer a mesma intervenção.

Angelita Jaeger cita a antropóloga Mirian Goldenberg: “O corpo, no Brasil, é um capital. Ele se tornou o nosso passaporte para frequentarmos determinados espaços.” Assim, para algumas pessoas, faz sim sentido se arriscar. “O corpo, hoje, é a sua identidade. Não é mais a sua alma, de onde você veio, onde cresceu. Você é o que você expressa fisicamente”, complementa Denise Bernuzzi de Sant`anna.

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