Da moda para a beleza: por que tantos criativos estão fazendo essa transição?

Tanto fora quanto dentro do Brasil, profissionais do mercado de moda se aventuram na beleza e traçam novos caminhos na indústria.


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Ilustração @gusbalducci



Há quem acredite que os mercados de moda e de beleza são diferentes e até concorrentes. Apesar das diferenças entre os dois, eles vivem sob o mesmo teto da indústria – e um não vive sem o outro. A beleza de um editorial de moda pode complementá-la ou atravessá-la, causando estranhamento e mudando completamente seu conceito; da mesma forma, o styling de um photoshoot de beleza também influencia completamente em seu resultado final.

Nos últimos anos, o mercado de beleza se tornou a menina dos olhos da indústria tida como feminina, com lançamentos de marcas e produtos quase diariamente, novas tecnologias sendo pesquisadas, novos hábitos sendo adotados e um fluxo de dinheiro altíssimo movimentando tudo isso. Esse movimento, no entanto, não é de todo novo: os perfumes sempre foram assets importantes para as grandes etiquetas de luxo, que dependem de produtos mais acessíveis para, de certa forma, democratizar seu nome.

Com os olhos voltados para o mercado de maquiagem e skincare, vários criativos da moda resolveram deixar as roupas de lado para se jogar tanto na criação de novos produtos quanto no conteúdo em torno deles. Fora do Brasil, Jenna Lyons, que foi diretora criativa e presidente da J. Crew, acaba de lançar uma nova marca de beleza em colaboração com o maquiador Troi Ollivierre, a LoveSeen. Focada em cílios postiços, a estilista diz que sua mudança de indústria tem um lado pessoal bem forte – à W Magazine, ela conta que sofre de uma condição genética rara que causa perda de cabelo e cicatrizes na pele e que sentia falta de cílios postiços naturais, de cores diversas e que emulam uma beleza do dia-a-dia, sem muita montação.

“Fui para o mercado de beleza porque acredito que ele é mais gostoso de trabalhar, de pirar, de criar… A moda é mais fechada e exclusiva”, Jana Rosa

Francisco Costa, que esteve à frente da direção criativa da Calvin Klein por treze anos, também se aventurou nas frutíferas terras do skincare. No fim de 2018, ele lançou a Costa Brazil, linha de beauté que usa ingredientes originalmente brasileiros em produtos sustentáveis. Apesar da mudança de área, Costa contou, em entrevista à ELLE Brasil, que sente falta da moda e que não vê a hora de voltar.

Do lado de cá

O recente interesse da brasileira e a explosão de crescimento absurda da indústria da beleza no país também convenceu vários profissionais que eram fundamentalmente de moda a mudar de área. É só reparar no número de marcas que nasceram nos últimos anos, no boom das YouTubers que fazem tutoriais de beleza e cuidados com a pele e nos termos que entraram no vocabulário comum de qualquer pessoa para entender porque esse mercado se tornou tão atraente. Foi nessa época que Julia Petit, que por anos comandou o Petiscos, site referência de moda fácil e descomplicada, começou a se ver cada vez mais atraída pelo mercado de beleza. “Quando comecei a fazer vídeos de make para o Youtube, a percepção das pessoas da internet era que eu era muito mais de beleza e isso acabou se cristalizando. Mas, pra mim, as coisas sempre estiveram muito juntas, as duas falam da aparência das pessoas, de tendências de comportamento e de contextos de consumo”, explica.

Em 2015, Petit lançou sua coleção de maquiagem com a MAC Cosmetics e a figura mudou de forma. “Ao começar a trabalhar com eles, vi que a criação de uma coleção englobava todo um pacote de marketing muito interessante, o desenvolvimento de cores, de perfil de cliente, para quem a gente está criando… Qualquer pessoa que faz vídeos de maquiagem no YouTube previu que as pessoas começariam a cuidar mais da pele. As meninas queriam que a maquiagem performasse melhor”, continua.

Foi assim que, em meados de 2019, nasceu a Sallve, marca de skincare fácil e acessível que tem Julia Petit como uma das sócias. Com a proposta de criar uma comunidade e entender as demandas de suas potenciais clientes, a marca faz turnês mensais – agora online – por todo o Brasil, a fim de entender quais as particularidades de cada região. Com apenas dez produtos lançados, a Sallve já é sucesso de público e carrega legiões de fãs.

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Julia Petit é a fundadora da Sallve, uma das marcas mais importantes de skincare pop no país.Foto: Divulgação

Petit também observa que a movimentação por um mercado de beleza mais inclusivo e democrático aconteceu na mesma época em que as consumidoras pararam de buscar exclusivamente por conteúdos aspiracionais e começaram a se interessar por pessoas e marcas onde elas se enxergavam – e, ainda que já tenha começado a trilhar esse longo caminho, o mesmo ainda não aconteceu com tanta força na moda. “A beleza veio muito pra exercitar o oposto que é o que a gente via na indústria. Sempre falavam para não usar listras que engorda, comprimento xis para não achatar… Muito do que é feito e falado mantêm as pessoas ansiosas, detestando quem elas são. A gente, na Sallve, nunca vai ser assim”, argumenta Petit.

Outra referência de moda e de “looks do dia” que investiu no mundo da beleza foi Camila Coutinho, uma das grandes blogueiras de moda e inovadoras da indústria como um todo. Após transformar seu blog em um portal, a recifense lançou, no fim de 2020, a GE Beauty, sua marca de produtos para cabelo. “Eu não sou uma guru de beleza, nunca me caracterizei assim. Não faço tutoriais, mas me interesso por beleza de uma maneira muito pessoal. Sei cuidar do meu cabelo, fazer uma make legal, saio sem maquiagem ou de cabelo molhado, e sempre dei essas dicas de maneira muito simples”, explica Coutinho. Na sua marca, os xampus, condicionadores e leave-ins podem ser turbinados por boosters que personalizam a experiência para cada consumidora.

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Os produtos da GE Beauty de Camila Coutinho são customizáveis com a ajuda de séruns especiais.Foto: Divulgação

A decisão de investir em uma marca de beleza, não de moda, vem de um lugar de questionamento de padrões – que, na indústria de beauté, está mais avançado do que na moda. “São assuntos que eu já vivia, mas que eu não falava. Óbvio que a beleza é um assunto que está misturado em tudo que a gente vive como mulher, mas eu comecei a me interessar também pelo discurso na página dois, o discurso da autoestima. Por que a gente acha certa coisa bonita?”, questiona. “Esses valores estão muito claros nas minhas três marcas (Camila Coutinho, Garotas Estúpidas e GE Beauty). Na GE Beauty, a gente materializou em produto esses conceitos.”

Uma nova seara de conteúdo

Jana Rosa já havia trabalhado como repórter do Chic, na MTV falando sobre moda, como roteirista e figurinista e com uma marca de roupas própria, a Agora Que Sou Rica, antes de decidir fundar a Bonita de Pele. Ela começou a arquitetar o projeto de um veículo-comunidade para amantes de skincare no começo de 2018, com a pretensão de ser um espaço para quem quer saber mais sobre o assunto, não somente para iniciados. Quase três anos depois, o portal já conta com mais de 320 mil seguidores, uma caixa de produtos (a BoniBox) que esgotou em um dia e um ranking anual de melhores produtos do ano eleitos pelas suas leitoras. “A Bonita cresceu muito rápido. Acho que tive sorte e estratégia. Sabia que era um assunto que ia bombar, gostava dele e não tinha ninguém falando apenas de skincare. Na época, todas as criadoras de conteúdo começaram a querer falar do assunto também e muita gente vinha até nosso Instagram porque queria saber ainda mais”, explica.

Segundo Jana Rosa, a beleza é um mercado com muito mais possibilidades. Ao perceber isso, migrou da moda para falar de um assunto que sempre gostou, mas que não havia espaço para ser debatido e aprendido de forma democrática. “A beleza se renova mais que a moda por causa da tecnologia. Nela, há uma constante pesquisa e tecnologia de produto. Na verdade, eu fui para ela porque acredito que é um mercado mais gostoso de trabalhar, de pirar, de criar. A moda é mais fechada e exclusiva”.

Fundada no alicerce da exclusividade, a moda ainda tem um grande caminho a percorrer para se tornar democrática – e talvez nunca alcance verdadeiramente esse status. “Comecei a gostar de beleza quando fui passar quatro meses em Nova York e vi a infinidade de produtos disponíveis. Eu não tinha dinheiro para comprar uma bota, mas pra comprar um gloss, eu tinha”, lembra Stella Spinola, que se formou em moda na FAAP e se encantou com o mundo da beleza em um intercâmbio que foi fazer na cidade norte americana. Spinola trabalhou alguns anos com criação de produto na Olympiah e, logo que voltou de sua viagem, começou a fazer pesquisa para a Riachuelo – o que tornou a mudança para o mercado de beauté mais fácil. Hoje, ela trabalha na Beauty Streams, um bureau de tendências que pesquisa somente sobre a indústria de beleza.

“Óbvio que a beleza é um assunto que está misturado em tudo que a gente vive como mulher, mas eu comecei a me interessar também pelo discurso na página dois, o da autoestima. Por que a gente acha certa coisa bonita?”, Camila Coutinho

“Eu acho que a beleza conseguiu se reinventar melhor. Quando a gente pensa em moda, quando você pensa no topo, você pensa em coisas muito inacessíveis. Hoje em dia, se você pensar no topo em relação a beleza, você pensa em uma marca como a Glossier“, continua Spinola. O fato de que qualquer pessoa, independente do manequim, consegue usar um produto de pele ou uma maquiagem, também facilita essa democratização. “Como o mercado de moda tem muito mais tradição, para eles é muito mais difícil e chocante mudar algumas coisas. A beleza é mais jovem, tem pessoas mais jovens liderando.”

Para Carol Vasone, jornalista de moda e de beleza que já passou por veículos como UOL, Bandeirantes, Globo e ELLE, “a moda não está mais tão na moda”. Para ela, a mudança não foi tão drástica, já que ao cobrir moda, sempre era necessário muitas vezes olhar para a beleza. “Quando entrei na moda oficialmente, era a época em que o Gilberto Gil era Ministro da Cultura. Ele colocou a moda ali e ela sempre me interessou como comportamento”, comenta a editora. Segundo ela, o reflexo de um tempo que ela via tanto na indústria fashion acabou se perdendo e a beleza ocupou esse espaço. “A beleza tinha mais movimento. Decidi segui-lo. Ela me trouxe essa possibilidade de diversidade, inclusão e mais mudança por meio da tecnologia.”

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