Na #PelePossível de Magô Tonhon

Formada em arquitetura, a maquiadora, educadora em beleza e mestre em filosofia Magô Tonhon combina seus múltiplos saberes para injetar diversidade e inclusão no mercado em que atua.


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“Vim do interior paulista. De uma cidade média que não vale a pena ser nomeada”, brinca Magô Tonhon sobre suas origens. “De lá, só sinto falta do céu, da minha mãe y dos lanches. Prefiro o solavanco violento da capital do que a calmaria angustiante do interior.” Aos 34 anos, a arquiteta (formada pela Unesp) e mestre em Filosofia (USP) conta que foi ao chegar na metrópole paulistana que conseguiu se encontrar. “Fui designada menino ao nascer y criada para corresponder às expectativas do gênero que me deram. Tenho muito orgulho de ter engravidado de mim mesma. Me pari sozinha e renasci em São Paulo”, relembra.

Atualmente, Magô se apoia em seu repertório plural de formações para trabalhar com o que verdadeiramente ama: a beleza na diversidade. “Uma vez, uma pessoa leu a minha mão y me disse que eu morreria se trabalhasse isolada sem contato com as pessoas. Isso de ficar 12 horas em frente a um computador não é para mim. Trabalhar com as pessoas no tête-à-tête sempre me interessou mais”, revela. Demorou para que ela entrasse no mundo da maquiagem, mas tudo o que aconteceu antes dessa virada contou muito para construir o que vive hoje. “Não é porque minha história na beleza começa em 2015 que ela tem só cinco anos de idade. Meu começo foi comigo descobrindo, há muito tempo, como colocar sobre a minha pele aquele universo tão grande de possibilidades que eu jamais havia imaginado poder explorar.”

Ela é metade da dupla LGBeauté que compõe ao lado de Rapha da Cruz, a quem ela descreve como “amiga-irmã-sócia”. Juntas, desde 2016, as duas prestam serviços de consultoria para diferentes empresas que estão se abrindo para a diversidade e a inclusão. “Beleza para mim é comprometimento social, é reconhecer os limites entre os diferentes corpos que habitam o mundo. Assim, é preciso recuperar um sentido coletivo de beleza. A contribuição dos movimentos sociais não pode ser entendida como mera opinião. É produção y contribuição científica”, argumenta.

Enquanto maquiadora, já trabalhou com nomes consagrados do mercado da beleza como Jake Falchi, Helder Rodrigues e Robert Estevão. E, ao lado de Rapha, vem desbravando um caminho disruptivo e poderoso no setor. Lembra da maquiagem do desfile de Vicenta Perrotta na Casa de Criadores, em 2019? Pois então, leva a assinatura da equipe LGBeauté. O mesmo vale para a campanha #EscuteSuaPele, da gigante Avon, cuja beleza foi executada remotamente, via instrução oral, em uma demonstração hardcore das habilidades do duo. “Foi muito desafiador”, relembra. Em entrevista à ELLE Brasil, a beauty artist e professora da Escola Madre fala sobre as hashtags que popularizou em seu perfil no Instagram (#PelePossível, #BornToPalpitar e #SinalizaORetoque), seu ponto de vista a respeito do futuro da indústria dos cosméticos, suas ideias transgressoras a respeito do que é (ou, pelo menos, do que deveria ser) beleza e a mensagem importante que pretende disseminar com seu trabalho.

Qual é o seu olhar para a indústria de beleza hoje? Quais são as continuidades e rupturas que vêm acontecendo nos últimos anos?

Para mim, é basicamente impossível falar de beleza fora do próprio corpo. Este, por sua vez, está sempre sendo mediado pelo que se apresenta como norma do que é belo ou desejável. A indústria cria y emite discursos y realidades em que o nosso corpo é o alvo. Você pode até tentar fingir que não habita um corpo específico. Que esses discursos “não têm nada a ver comigo”, mas eu não recomendo a alienação. Por isso, quando se fala da indústria da beleza, as mudanças que eu enxergo são as últimas concessões que foram feitas a esses corpos dissidentes. Quando a gente compara com o passado, percebemos que essas brechas (porque ainda são só brechas) já foram bem mais fechadas.

Se você tivesse que definir beleza, como faria isso?

Beleza para mim é luxo. Mas é também um gesto. Como nas artes, o gesto importa y o lugar de onde ele vem igualmente. Isso colabora para o que se vê em uma obra. Portanto, beleza, para mim, é um exercício, um processo. Uma vez, uma multiartista estudiosa (que é, inclusive, uma das minhas maiores referências de comprometimento ético na vida), a Jota Mombaça, me disse que ‘se debatia’ em seu próprio gênero. Eu também escavei a beleza que há em mim. Todo meu olhar para a beleza está atravessado pelos diálogos que estabeleci no decorrer da minha vida. Aliás, não deveria existir nenhuma noção de beleza que não estivesse conectada com as nossas próprias vivências. Beleza para mim é comprometimento social, é reconhecer os limites entre os diferentes corpos que habitam o mundo. É preciso, assim, recuperar um sentido coletivo de beleza. A contribuição dos movimentos sociais não pode ser entendida como mera opinião. É produção y contribuição científica. Ou seja, quando alguém envolvido em algum desses movimentos traz indicações a respeito de diversidade y inclusão, é preciso ouvir. Principalmente, porque não queremos transformar a norma, mas criar algo novo. Afinal de contas, beleza é sobre vida, mas é mais sobre a vida de algumas do que de outras, não? Sendo assim, essa beleza hegemônica é também sobre morte. Y aí, dá para ignorar isso? Existe estética sem ética? Então, não é sobre me acharem bonita. Beleza, para mim, é exatamente esse esforço de descolar-se de uma narrativa excludente, de se entender individualmente y conquistar o seu próprio respeito de si.

#PelePossível é um projeto lindo e necessário. Conte mais sobre ele, por favor.

Eu criei a #PelePossível quando fui entendendo a cilada que parte do mercado de beleza produz: a ideia de uma “pele perfeita” é uma extensão do que se calcificou como beleza hegemônica. No entanto, a hashtag vai para além disso. Não é sobre aplaudir quem assume a sua própria pele ou melhora essa relação de autoestima frente ao espelho. Não queremos disputar o conceito de normalidade de pele. O normal é sempre branco, cisgênero, rico, magro, hype, jovem, sem deficiência y etc. Tudo o que está fora disso é considerado “imperfeito”. Essa é a promessa das bases, de modo geral: “corrigir as imperfeições”. Em paralelo a tudo isso, surgiu também a #SinalizaORetoque. Se você for até o perfil no Instagram de certos profissionais de maquiagem, vai perceber que, nos comentários, há várias pessoas dizendo coisas como “meu sonho é ter uma pele como essa”, “quem dera saber fazer uma pele assim”. No entanto, essa tal pele almejada está abarrotada de retoque y não há sinalização alguma a respeito disso. Parece algo banal, mas é grave. Basta lembrar que até há pouco tempo as propagandas de máscara de cílios tinham, na verdade, cílios postiços. Assim, quando entendemos que beleza é também o que se entende socialmente como saudável, estamos criando uma questão de saúde pública ao aceitarmos a distorção de nossas imagens, de nossos reflexos. Nesse sentido, até o governo poderia ser mais rígido frente às irrealidades que nos são vendidas em anúncios por aí.

Outro projeto de sua autoria que vem ganhando cada vez mais notoriedade é o #BornToPalpitar. Como surgiu a ideia?

Eu fiquei muito incomodada com a abordagem da edição do primeiro episódio do programa Born To Fashion, do canal E!. Ao mesmo tempo em que ele diz estar interessado em realizar o sonho de revelar uma “cara nova” para a moda também apela para discursos escorregadios y perigosos na minha opinião. O foco que eles dão à trajetória da dificuldade é o que chamo de estética da precariedade. De repente, me vi diante de uma produção que não fez o mínimo da lição de casa. Não estudou o público alvo que desejou apresentar. E, vale lembrar, a articulação institucional das pessoas trans y travestis brasileiras tem mais de 30 anos de história! Como estes são temas que eu também abordo no meu perfil no Instagram, resolvi criar o quadro #BornToPalpitar em que comento episódio por episódio as escolhas da edição, a maneira como se apresentam as questões que cada episódio envolve y as tretas que acontecem. A produção se orgulha de ter uma pessoa trans na bancada, mas eu me pergunto: até quando vamos nos orgulhar pelo mínimo? É explícito que, se houve preparação de equipe para falar dos assuntos que brotam na interação entre pessoas cis y trans, esta preparação foi frágil. Não chegou nas pessoas que editam, por exemplo. Ao tentarem neutralidade, a edição acaba refletindo o pensamento de quem concebeu a narrativa, né? É um reality show com pessoas trans pensados para pessoas cis y com escolhas muito centradas no olhar cisgênero sobre as pessoas trans y travestis. Esta escolha poderia ser legítima, desde que a cisgeneridade fosse o tema nomeado. Mas não o é. Fica parecendo que as coisas são como são porque somos trans y travestis y não porque a sociedade, dentre outras coisas, privilegia a cisgeneridade y a branquitude. Criei o Born To Palpitar para ecoar entre as pessoas que estão à minha volta no Instagram as abordagens que a gente gostaria de ver na televisão sem deixar de destinar apontamentos às apostas oferecidas pela edição do programa.

“Beleza é sobre vida, mas é mais sobre a vida de algumas do que de outras, não? Sendo assim, essa beleza hegemônica é também sobre morte. Y aí, dá para ignorar isso? Existe estética sem ética?”, Magô Tonhon

Você assinou a beleza da campanha #EscuteSuaPele da Avon. Como foi esse processo?

A campanha era referente à linha de produtos da Avon de cuidados com a pele. Eu assinei essa beleza ao lado da minha sócia Rapha da Cruz. A hashtag, inclusive, é até bem parecida com a #PelePossível, né? Y eu levo muito a sério essa história de ouvir o que a pele tem a dizer. A produção das imagens rolou em um contexto pandêmico, ou seja, o set de filmagem pré-pandemia foi suspenso. Tivemos que definir um passo a passo básico para que cada personagem convidada realizasse a sua própria maquiagem no dia. Remotamente, explicávamos o que tínhamos pensado a respeito da beleza y íamos orientando cada uma delas a fazer as aplicações no próprio rosto. Inclusive, levamos em consideração o que muitas delas já estavam acostumadas a executar no dia a dia. Foi muito legal y desafiador.

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O desfile de Vicenta Perrotta (fotos abaixo) foi um momento importante para a sua carreira, sim? Conte mais sobre essa experiência.

Em novembro de 2019, pela primeira vez, eu y Rapha tivemos a oportunidade de assinar a beleza de um desfile na Casa de Criadores. A apresentação em questão era a da etiqueta de Vicenta Perrotta. Na ocasião, oferecemos treinamento para uma equipe de 43 profissionais de beleza a respeito de questões éticas. Falamos sobre cisgeneridade (principalmente porque tratava-se de uma equipe majoritariamente cisgênera) y questões mais específicas a respeito dos cinco blocos distintos de maquiagem y cabelo que elaboramos de acordo com o conceito desenvolvido por Manauara Clandestina, diretora de arte do desfile da Vicenta. Levando em consideração a identidade de gênero, o nome, os pronomes y até os arrobas de cada modelo, desenvolvemos um roteiro correspondente para que os profissionais que fossem trabalhar com cada uma delas as tratassem da maneira mais respeitosa possível. Afinal, modelo também é gente y merece tratamento adequado. Sou nova no mercado de beleza y, em certa medida, queria me manter assim. Digo isso porque não quero cooptar com a soberba que, por vezes, assola quem está nesse circuito há mais tempo. Acho fundamental separar a ideia de autoridade com a de vilania. A hierarquia não implica em um passe livre para a tirania. A gente se recusou a fazer parte dessa selvageria que se vê por aí.


Como é ocupar esse lugar de educadora de beleza?

Começamos na Escola Madre com o curso Beleza É Diversidade que já está na sua segunda turma (vagas abertas para as aulas que vão acontecer de 5 a 9 de outubro). É um curso muito distinto do que se oferece em escolas de beleza de modo geral. A gente retoma a ideia de que nenhum campo profissional pode deixar de lado a sua própria história. Todas as tretas que a gente vê acontecendo por aí (denúncias de racismos, transfobias y machismos) envolvendo diversos setores do mercado de beleza poderiam ter sido evitadas se estes infratores, anteriormente, tivessem se dado ao trabalho de entender o contexto em que eles se inserem. Seja pelo desconhecimento ou pela recusa desses conteúdos, é isso o que acontece. É isso que torna o nosso curso tão urgente: as pessoas, nitidamente, ainda estão muito despreparadas para lidar com críticas y crescer a partir delas. Esse tipo de “crise” já é parte indissociável do modelo de sociedade em que vivemos. Por fim, uma reflexão: o que essa onda de tretas revela sobre o mercado? A gente está vendo ruir um núcleo antigo y rígido (cisgênero y branco) da beleza e da moda que não quer largar o osso. Aliás, ainda insistem em respostas parecidas com as que sempre nos deram até 2020. Eu fico me perguntando até que ponto essas pessoas vão conseguir prosseguir imaginando que o inferno são sempre os outros?

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Editorial “Brasileirinhas”, para Vicenta Perrotta com fotografia de Tata Guarino.

Qual mensagem você está tentando passar na sala de aula?

Para gente, é urgente repousar as ferramentas de trabalho y refletir sobre o que estamos fazendo com elas. Este curso é, basicamente, para refletirmos sobre quais bases nossas práticas estão fundamentadas. É preciso lembrar que o trabalho que uma pessoa faz está intimamente ligado a sua posição na sociedade. Por isso, o resultado de qualquer trabalho nunca será só resultado de um esforço pessoal y orgânico. Não funciona como goiabas em goiabeiras. Principalmente quando o que está em jogo é um pensamento binário que separa de um lado você, pessoa “boa” que está sendo questionada por quem está do outro lado (pessoas “más”) que estão te questionando. Não deveria ser possível desassociar a ideia de que nós somos frutos de um meio y por isso jamais seremos neutras, muito menos nossas práticas. Neutro, só o subtom da minha base, o marrom da minha sombra y o pH daquele shampoo para bebê. Como bem definiu minha amiga taróloga Giulianna Nonato, o curso poderia ser chamado de “Banquete de reflexões bem servidas para quem tem fome de mudança”.

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