De onde vêm e para onde vão os seus cosméticos?

Em um bate-papo com a ELLE Brasil, Sarah Jay, documentarista e especialista em beleza limpa, fala sobre os impactos da indústria nos oceanos.


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Estima-se que 150 milhões de toneladas de lixo já estão depositadas em ambientes marinhos. A cada ano, este número aumenta em, pelo menos, 8 milhões – e quanto mais crescem os mercados de consumo, mais este número tende a subir. Até 2027, a expectativa é que o mercado global de cosméticos esteja avaliado em 380,2 bilhões de dólares (um aumento de 5,3% em comparação com 2019). A conta é fácil: se a indústria de beleza é uma das que mais cresce no mundo, seu impacto no meio ambiente só pode ser tão grande quanto. Além da quantidade de lixo gerado, fórmulas nocivas à fauna e à flora e a retirada excessiva de matéria-prima formam a receita perfeita para catástrofes ambientais.

Frente a este cenário preocupante, pessoas como Sarah Jay se colocaram na linha de frente da mudança. A canadense foi responsável por conceber e produzir o documentário Toxic Beauty (2019), que aborda a falta de regulamentação na indústria de cosméticos. A produção recebeu uma indicação ao Emmy Internacional em 2021. A partir desse estudo, fundou a All Earthlings, uma consultoria especializada em eliminar ingredientes de origem animal escondidos nas cadeias de produção. Parte de sua pesquisa está no uso do esqualeno, ingrediente derivado de fígado de tubarão bastante usado na formulação de produtos para a pele.

No bate-papo abaixo, Sarah fala abertamente sobre os verdadeiros impactos da indústria de cosméticos nos ambientes aquáticos e as expectativas para um futuro caso mudanças não aconteçam.

Qual a mudança mais urgente que precisa acontecer em direção a uma beleza mais limpa?

Embora a revolução da beleza limpa esteja acontecendo, as marcas ainda precisam adotar uma visão mais holística, considerando todos os aspectos de um produto – não apenas o que está presente em sua fórmula ou seus efeitos na saúde humana, mas também sua embalagem e os impactos que estas têm no meio ambiente. A indústria não consegue lidar com o que é mais prejudicial e com efeito mais duradouro: o excesso de poluição plástica. Todos os anos, 8 milhões de toneladas de plástico entram em nosso oceano, além das estimadas 150 milhões de toneladas que atualmente circulam em ambientes marinhos. E o mercado continua a ser inundado com novos produtos o tempo todo, quando o foco deveria estar no desenvolvimento de produtos multiuso, por exemplo, ou na redução de nossa dependência dos cosméticos de maneira geral.

Além do plástico, como o uso de ingredientes tóxicos nas formulações dos produtos entram nessa equação?

A indústria da beleza continua a usar produtos químicos nocivos que vão se bioacumulando em ambientes aquáticos, causando a diminuição de espécies de animais e eventos extremos de branqueamento de corais. O movimento blue beauty, por exemplo, começou com a discussão acerca do protetor solar. O número crescente de itens na categoria que são biodegradáveis e seguros para recifes no mercado é um reconhecimento dos danos que os produtos de beleza podem causar em nossos oceanos e na saúde pública. Os governos em áreas turísticas foram forçados a reconhecer os impactos que esses ingredientes têm na vida marinha, mesmo em níveis baixos. Como resultado, lugares como Ilhas Virgens Americanas, Havaí, Key West, Bonaire, Palau, Aruba e México exigiram o uso de protetor solar seguro em suas praias. É importante notar, no entanto, que esses ingredientes preocupantes também estão presentes em inúmeros outros produtos de beleza, não apenas protetores solares, e que existem muitos outros ingredientes que podem prejudicar os ecossistemas marinhos. Idealmente, as proibições deveriam acontecer por ingrediente e não por categoria de produto. Também deveriam ser medidas globais, e não regionais.

O uso de ingredientes retirados de ambientes marinhos para compor a formulação de cosméticos, também é preocupante?

Sim. As algas marinhas, por exemplo, estão se tornando cada vez mais populares na indústria de cosméticos por suas propriedades hidratantes e anti-inflamatórias. Além do já muito popular esqualano, que geralmente é derivado de fígado de tubarão, moluscos, crustáceos, pó de pérola, guanina e âmbar também são matérias-primas para o mercado e que com certeza não deveriam ser utilizados. Na natureza, moluscos e crustáceos, por exemplo, desempenham um papel vital nos ecossistemas oceânicos, reciclando nutrientes e servindo como filtros no fundo do oceano, conectando o fitoplâncton a carnívoros maiores na cadeia alimentar, como peixes e baleias.

“O consumo consciente individual não vai resolver a crise climática. A mudança deve vir de cima para baixo – dos governos e das marcas”, Sarah Jay.

Geralmente, o consumidor acaba assumindo responsabilidade individual, mudando hábitos pessoais de consumo. Mas qual o papel das grandes empresas neste processo? A mudança não seria maior se partisse delas?

Com certeza. Sabemos que 90 gigantes produtores industriais são responsáveis pela maioria das emissões de gases de efeito estufa. Ao mesmo tempo que existe uma narrativa que faz com que os consumidores acreditem que eles são os culpados. Um ônus injusto recai sobre eles para que naveguem pelas brechas de rótulos, entendam os impactos de ingredientes indecifráveis e escolham entre opções limitadas no mercado. Isso não quer dizer que nossas ações individuais não contribuam ou que usar nossas vozes para responsabilizar as marcas não ajudará a orientá-las na direção certa. Mas o consumo consciente individual não vai resolver a crise climática. A mudança deve vir de cima para baixo – dos governos e das marcas.

Quais as principais ações que uma marca deve ter para fazer a diferença?

Repensar, redesenhar, reformular, reabastecer. O design de produtos convencionais segue um modelo linear – do berço ao túmulo. E, infelizmente, os oceanos se tornam este túmulo de efluentes tóxicos e plásticos. Muitas marcas têm programas de devolução e oferecem embalagens feitas de plástico reciclado pós-consumo. Porém, essas soluções não são suficientes, devido ao escopo e à gravidade do problema do plástico da indústria de beleza. A reciclagem só nos leva até certo ponto e é imperativo que os resíduos de plástico sejam evitados em primeiro lugar. As marcas devem priorizar a mudança para embalagens de vidro e papel e avançar para se tornarem totalmente recarregáveis e com zero desperdício. É possível que os produtos sejam projetados para circularidade, que sejam multiuso. Agora, com relação aos ingredientes nas formulações, basta pensar: se eles representam um risco para o meio ambiente, são simplesmente inseguros para consumo humano e vice-versa. Devemos reconhecer a saúde humana e ambiental como um só.

O que podemos esperar para o futuro dos nossos oceanos caso essas mudanças não aconteçam?

Sinceramente, os cosméticos são apenas uma pequena parte de nossas preocupações diante do aquecimento global, da insegurança alimentar e da elevação do nível do mar. Não há “fronteiras” em nosso planeta compartilhado. A água que circula dentro de cada um de nós é a mesma água que circulou através de nossos ancestrais e a mesma água que circula pelos sistemas climáticos, oceanos, lagos e rios. As linhas que traçamos entre as pessoas e o planeta, entre a terra e a água e até mesmo entre si são ilusões. Se basearmos nossas decisões no que melhor atende nossos oceanos, outros impactos negativos seriam mitigados. Os oceanos são os pulmões do nosso planeta e fornecem serviços ecossistêmicos essenciais sem os quais não podemos viver.

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