Apetamina faz sucesso nas redes e preocupa autoridades

Em busca de um corpo de Kim Kardashian, com cintura fina e bundão, garotas investem em suplemento sem registro na Anvisa. Além de aumento do apetite, produto provoca sonolência, diminuição da concentração e pode causar problemas de saúde graves.


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Arte: Mariana Baptista



Renato Siqueira, 47 anos, trabalha como personal trainer há 10 anos em São Paulo (SP) e, a cada nova cliente que recebe, o pedido é quase sempre o mesmo: “barriga sarada, pernas definidas e bumbum levantadinho”. No início da carreira de Siqueira, as modelos dessas garotas eram as mulheres fruta, como a Mulher Melancia e a Mulher Pera. Mas, com a disseminação das redes sociais e a pressão estética que é potencializada por elas, o corpo mais desejado é, atualmente, o de Kim Kardashian. De cintura fina e bunda redonda, a socialite e empresária tem um corpo estilo ampulheta que, na gringa, é chamado de “slim thick” (“magro com sustância”, em tradução literal para o português), em que a barriga é sarada e há gordura apenas nas partes “certas”, como as coxas e nádegas.

Para conseguir este padrão corporal o quanto antes, algumas mulheres preferem usar substâncias para acelerar os efeitos da malhação. “Elas utilizam produtos como anabolizantes, porque é um atalho para ter o corpo que querem sem ter que fazer um plano de treinamento e de alimentação bem regulados”, fala Renato Siqueira. Mas o mundo roda e o mercado ganha novas alternativas. Os suplementos alimentares se tornam, então, maneiras menos estigmatizadas de potencializar a musculação. E o que tem feito mais sucesso – e causado preocupação em especialistas e órgãos reguladores – é a apetamina.

Vendido em forma de xarope ou pílulas, o produto, feito pela empresa farmacêutica indiana TIL Healthcare, é divulgado como um suplemento vitamínico e “estimulante de apetite”, usado por mulheres que se acham muito magras e que, mesmo indo à academia, não conseguem ganhar peso ou massa muscular tão rapidamente. Uma colher de chá do xarope contém 2 miligramas de ciproeptadina, que age como anti-alérgico e cujo um dos efeitos colaterais é o aumento de apetite. “Ele bloqueia o receptor H1 no hipotálamo, o que aumenta a fome”, diz o médico endocrinologista Lúcio Henrique Vieira, do Centro de Obesidade e Diabetes do Hospital São Lucas Copacabana, do Rio de Janeiro (RJ). Uma reportagem do BuzzFeed News, da Inglaterra, mostrou uma usuária do produto que foi de 50 kg para quase 60 kg em apenas uma semana. Além da ciproeptadina, a apetamina também contém 150 mg de lisina, que melhora a imunidade; além de quatro vitaminas do complexo B, que aumentaria o vigor físico e evitaria a fadiga muscular.

Por parecer, na teoria, o suplemento perfeito para quem quer ter o corpo de Kim Kardashian o quanto antes, a apetamina é um sucesso nas redes sociais. Os conteúdos relacionados ao produto aparecem na hashtag “apetamin” (“apetamina” em inglês) no Tik Tok, que tem quase 12 milhões de visualizações. De acordo com o Google Trends, as buscas pelo termo “xarope de apetamina para aumento de quadris” teve um crescimento repentino nas últimas semanas. No Instagram, há também uma infinidade de publicações com resenhas sobre a substância e posts em que garotas e jovens mulheres mostram os resultados do uso produto, exibindo o quanto seus corpos se tornaram mais curvilíneos após tomarem de 10 ml a 15 ml do suplemento 20 minutos antes de cada refeição.

A apetamina é amplamente vendida em regiões como Ásia, África e América Central e Latina, mas não regulamentada em lugares como Estados Unidos e Inglaterra. A reportagem entrou em contato com a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) que disse informou não existir nenhum medicamento ou alimento registrado no Brasil com o nome de Apetamina. “Suplementos alimentares são dispensados de registro, mas devem seguir regras específicas de limitações de ingredientes e condições de fabricação. No caso de suplementos contendo enzimas e probióticos, o registro é obrigatório”, disse o órgão. A ciproeptadina, antialérgico presente no composto da Apetamina, é aprovada isoladamente no Brasil, mas não há estudo sobre a segurança da interação dele com outros itens da fórmula do xarope.

Porém, mesmo sem ser regularizada, conseguir apetamina não é difícil. Basta uma busca rápida na Amazon estadunidense para encontrá-la à venda. No Brasil, sites obscuros oferecem pacotes em que, na compra de três cartelas do produto, você ganha uma de graça. O fácil acesso ao suplemento, além da glamourização do uso dele, fez com que as autoridades aumentassem a fiscalização.

Muita fome e muito sono

A YouTuber AshaGrand começou a tomar apetamina para recuperar o peso que havia perdido em sua rotina corrida como mãe. Em uma certa noite de 2019, morrendo de fome em casa, ela decidiu dirigir até o drive-thru de uma lanchonete próxima. “Estava na rodovia e ficava tentando me manter acordada até que, quando percebi, eu tinha batido o carro contra duas caminhonetes que estavam estacionadas”, contou em seu canal do YouTube. O vídeo da batida é impressionante: como estava dormindo, ela não freou o carro e bateu em alta velocidade nos veículos que estavam parados. “Graças a Deus nada aconteceu comigo”, narra a influenciadora, que saiu sem nenhum arranhão do acidente.

Lendo por cima a composição da apetamina, parece que o xarope é tudo o que uma rata de academia quer. O problema, no entanto, são os efeitos colaterais, que podem causar acidentes e problemas de saúde. “Esse princípio ativo isolado é geralmente usado em pacientes em ambiente hospitalar que não têm massa muscular, como idosos, pessoas que têm HIV em estado avançado. Ainda assim, a ciproeptadina não é a primeira opção no tratamento”, diz Lúcio Henrique. Além do aumento de apetite, o anti-alérgico dá muito sono, diminui a concentração, causa confusão mental, boca seca e intestino preso. Os primeiros sintomas foram a causa do acidente de Asha.

Apesar da sonolência ser o efeito mais comum, a apetamina pode causar problemas mais graves. Um estudo de caso feito por médicos da Escola de Medicina e Ciências da Saúde da Universidade George Washington, em 2020, mostrou uma mulher de 40 anos que, após tomar a apetamina, teve sintomas que incluíam fadiga, desconforto abdominal e icterícia. O documentário “Curvas Perigosas: Ficar gostosa ou ficar doente?”, da BBC, mostrou como a mãe da modelo Altou Mvuama entrou em coma, provocado por toxicidade hepática após consumir o xarope.

“Em casos mais graves, o uso indiscriminado da apetamina pode causar insuficiência renal, hepatite, insuficiência hepática, colástase (diminuição do fluxo biliar) e icterícia”, enumera o endocrinologista Lucio Henrique.

Histórias como a de Asha e Altou fizeram com que autoridades da Inglaterra tomassem uma atitude. Em uma carta enviada em maio ao presidente do Instagram, assinada pelo presidente do NHS (Serviço Nacional de Saúde britânico), o órgão enfatiza que a apetamina traz “danos graves” físicos e mentais e pressiona a rede social a excluir publicações que comercializem e que divulguem os efeitos do suplemento. “Estamos preocupados com os impactos sobre a saúde física e mental causados pela promoção deste medicamento e recomendamos veementemente que demonstre um dever de cuidar dos seus clientes e reprima a venda desse perigoso produto”, diz o documento.

Em resposta, um porta-voz do Facebook, empresa que é dona do Instagram, afirmou que o “bem-estar da nossa comunidade é a nossa maior prioridade”, acrescentando que a compra e venda de medicamentos “não médicos ou prescritos” é estritamente contra as regras do uso da rede social.

Para a BBC, a MRHA (Agência Regulatória de produtos medicamentosas e de saúde, da Inglaterra) disse que está investigando a venda e a distribuição do suplemento no Reino Unido.

Não há uma pílula ou xarope seguros que transformem o corpo das pessoas no de Kim Kardashian. Ainda mais se levarmos em conta que a socialite é também conhecida pelos procedimentos estéticos que fez para construir o visual que tem atualmente. Porém, se quer tonificar o corpo, o ideal é que você volte ao básico: exercícios físicos e uma alimentação balanceada. “Os estudos mostram que uma dieta equilibrada já proporciona todos os nutrientes presentes na apetamina. Um paciente bem nutrido não precisa do suplemento alimentar”, afirma o endocrinologista Lúcio Henrique.

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