Pigmentocracia e skincare
Produtos com nomes como "clareador" ou "branqueador" começam a sair do mapa em alguns países, mas a pergunta continua: por que quem tem a pele escura ainda precisa lidar com microagressões coloristas no universo do skincare?
“Quando eu tinha apenas 3 anos minha mãe me flagrou com uma bituca de cigarro na mão, tentando me queimar. Eu sabia que quando formava casquinha, a pele de baixo ficava branca. Pensei que aquele cigarro poderia causar as marcas que eu precisava para me embranquecer”, desabafou a historiadora Giovana Xavier no documentário Negritudes Brasileiras, idealizado por Nátaly Neri e apoiado pelo YouTube Brasil.
Giovana não é a única mulher negra que se viu diante desse desejo. Ao programa Saia Justa, do canal GNT, a rapper Karol Conká contou que chegou a tentar descolorir a pele com água sanitária quando pequena porque sofria preconceito na escola.
O sentimento anti-negritude não é uma pauta nova, infelizmente. Parece, no entanto, que diante da dor e indignação de acontecimentos recentes como o assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos, estamos passando por um momento de tentativa acerto de contas racial – por todo o mundo.
A relação do skincare
Uma nova onda de críticas envolvendo a indústria fez com que gigantes do setor ao redor do globo repensassem o portfólio de produtos com os termos “whitening” ou “lightening” (do inglês, branqueador ou clareador) nos rótulos.
A polêmica começou na África, Ásia e Oriente Médio, onde ainda se vendem produtos com a promessa de branqueamento da pele. Acusadas de racismo, diversas marcas optaram por tirar do mercado linhas que, de alguma forma, propagam o conceito de colorismo.
Em comunicado oficial, o grupo L’Oréal afirmou que irá remover os termos branco e branqueador (no inglês, white e whitening) e clareamento (fair, fairness, light ou lightening) de todos os produtos cuja função é homogeneizar o tom da pele.
Na Índia, a Unilever também decidiu mudar o nome da linha “Fair&Lovely” (na tradução literal “Clara&Bonita”), após ter a campanha questionada nas redes por seu racismo. Outra gigante, a Johnson & Johnson, decidiu interromper as vendas da linha Clean & Clear na Ásia. Pode demorar um pouco, no entanto, até que todos os produtos sejam de fato retirados das prateleiras.
Estamos falando de um nicho de mercado de peso — principalmente nos países onde começaram essas movimentações. A indústria global de produtos para clarear a pele foi estimada em US$ 4,8 bilhões em 2017 (cerca de R$ 18 bilhões). A maior parte dos consumidores vem da Ásia e da África.
Os produtos com essa finalidade vão de sabonetes, cremes e esfoliantes a pílulas e injeções voltadas para a diminuição da produção de melanina (pigmento que dá cor à pele). De acordo com a Organização Mundial da Saúde, o país com maior percentual de consumo desses produtos é a Nigéria (cerca de 8 entre 10 mulheres). Na Índia, são 6 entre 10 e, em seguida, na China, 4 entre 10 mulheres.
“A indústria, principalmente de skincare, não dialoga com pessoas negras. É como se a gente fosse excluída e não utilizasse esses produtos. Isso acontece desde o momento que existe um protetor solar com cor, mas não conseguimos achar a versão adequada para pele retinta.” Daniele DaMata
“O processo de clareamento de pele está ligado a uma herança colonial persistente. Mulheres de pele mais clara são as referências exaustivamente colocadas como sinônimos de beleza, desejo e sucesso. É a maneira mais rápida, porém muitas vezes perigosa, que muitas mulheres encontram de ter acesso aos privilégios brancos”, coloca a dermatologista carioca Julia Rocha.
Os clareadores têm indicações específicas para uniformizar áreas com acentuação da cor – hipercromia. “Dentre as patologias que frequentemente resultam na alteração da tonalidade da pele encontram-se o melasma, a hiperpigmentação pós-inflamatória (secundária à acne, após procedimento cirúrgico ou picada de inseto, por exemplo) e as farmacodermias. Clareadores como ácido azeláico, hidroquinona, retinóides, ácido kójico, ácido fítico, ácido tranexâmico, quando usados sob supervisão médica, configuram-se numa abordagem terapêutica eficaz e segura”.
O problema está no uso sem supervisão desses produtos com o objetivo de clarear a ponto de mudar a tonalidade da pele. “Essa questão com produtos clareadores é algo que acontece há muito tempo. Mas dessa vez conseguimos colocar as marcas como responsáveis e não atacar as mulheres negras que clareiam a pele”, diz a maquiadora e influenciadora digital Daniele DaMata, fundadora da primeira escola de maquiagem para pele negra do país.
A dermatologista Júlia Rocha adverte para os perigos de utilizar produtos clareadores sem orientação médica: “Podem ocorrer irritação, queimadura, ardência, coceira, surgimento de estrias ou aparecimento de lesões acneicas e outras desordens pigmentares nos locais da aplicação”, diz a especialista.
Para a influenciadora digital Maraisa Fidelis, o raciocínio é lógico: “O padrão enaltecido pela sociedade é o branco. Quanto mais clara a sua pele, melhor você é. Então, imagine ser negra e crescer numa sociedade assim? É totalmente compreensível ver pessoas passando clareadores no corpo todo com a esperança de clarearem um ou dois tons de pele. Uma pessoa negra já tem menos oportunidades e entre uma pessoa negra de pele mais clara e outra de pele mais escura, a sociedade opta por aceitar a tonalidade mais clara”, declara.
O que é pigmentocracia?
Estudiosos também chamam isso de pigmentocracia — o fato da violação social do indivíduo estar intimamente ligada a quão escuro é o seu tom de pele. “Dizemos que o colorismo é como o degradê do racismo. E não por acaso algumas indústrias se beneficiam disso. Como a indústria de produtos para clarear a pele”, diz Luana Génot, fundadora e diretora executiva do Instituto Identidades do Brasil (@ID_BR), mestra em Relações Étnico-Raciais e autora do livro Sim à Igualdade Racial (Pallas).
“Essa questão com produtos clareadores é algo que acontece há muito tempo. Mas dessa vez conseguimos colocar as marcas como responsáveis e não atacar as mulheres negras que clareiam a pele”. Daniele DaMata
O conceito de pigmentocracia começou lá atrás, com o colonialismo, onde o padrão eurocêntrico foi disseminado por diversas partes do globo. “A gente continua vivendo em um país muito racista, onde o colorismo impera. Então, pessoas com pele clara, mesmo negras (ou negras de pele clara), ainda usufruem de mais benefícios do que pessoas de pele negra retinta ou pele negra escura. Lá fora, isso é muito visível. Principalmente em países como a Tailândia e a Coreia, existe realmente uma valorização da pele branca, da pele mais clara”, acrescenta Monalisa Nunes, dermatologista especializada em pele negra.
Por trás dos perigos físicos dessa prática, estão feridas emocionais. “O padrão de beleza imposto pela sociedade força uma perfeição inexistente. Desta forma, entende-se que a pele escura não é agradável. Existem manchas que são patologias e precisam de cuidados dermatológicos, mas vemos pessoas querendo clarear o tom natural da pele para estar mais próxima do ideal de beleza que nos é apresentado”, coloca a neuropsicóloga Maria da Consolação André, autora de “O ser negro: um estudo sobre a construção de subjetividades afrodescendentes”.
O problema está nas microagressões
“Safiya Noble, uma pesquisadora que gosto muito, da Universidade de Illinois em Urbana-Champaign, nos Estados Unidos, diz que um dos efeitos mais danosos do racismo está nas microagressões. São agressões que a gente sofre no dia a dia e que as pessoas não vão necessariamente caracterizar como racismo, mas são as pequenas pedrinhas que constroem a grande estrutura que nos embasa no dia a dia, na nossa linguagem. E, para mim, o uso dos termos ‘lightning’ ou ‘whitening‘, que visam embranquecer, ou ‘clareador’, usado em tantos produtos como bb creams, ainda que sejam para tratamento de questões de pele, representam essas microagressões“, diz Luana Génot.
É importante entender que o racismo acontece independentemente da intenção do emissor. E que as tais microagressões estão por toda parte. “A indústria, principalmente de skincare, não dialoga com pessoas negras. É como se a gente fosse excluída e não utilizasse esses produtos”, aponta DaMata. “Isso acontece desde o momento que existe um protetor solar com cor, mas não conseguimos achar a versão adequada para pele retinta. Ainda é uma dificuldade enorme para nós, mulheres negras, acharmos um protetor solar que não fique acinzentado na pele, com um aspecto esbranquiçado ou que tenha uma textura adequada”, aponta DaMata.
A falta de referência e sua consequência na construção de identidade é colocada, também, como ponto-chave desse debate.”Rebaixar a beleza negra traz impactos muito sérios na sedimentação da autoestima, assim como dificuldades afetivas importantes. Não ser reconhecida como bela e observar a ausência de mulheres negras na indústria da beleza desencadeia sofrimentos profundos que não devem ser minimizados”, acrescenta Julia Rocha.
É urgente, portanto, enfrentar essa questão. Não se trata de “apenas” mais um rótulo de cosmético. “As palavras não são palavras soltas“, diz Luana. Segundo ela, a esperança para um futuro melhor está na possibilidade de construção de novas narrativas, de novos referenciais de beleza, de novos protagonistas do que é ser belo, de narrativas multicêntricas e não só eurocêntricas. “A luta é que essas novas narrativas possam fazer com que as pessoas queiram cada vez menos embranquecer suas peles”, conclui.
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