Tutoriais de beleza podem mudar o mundo?

Foi-se o tempo em que a hashtag #MaquiaeFala englobava somente vídeos escapistas de beauté. A geração Z subverteu a fórmula e está usando o conteúdo do tipo "passo-a-passo" para pulverizar mensagens poderosas pelas redes sociais.


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Em julho do ano passado, a congressista estadunidense Alexandria Ocasio-Cortez, do partido democrata, realizou um discurso que viralizou devido à forma assertiva com que enfrentou assuntos espinhosos como misoginia, machismo e masculinidade tóxica enraizada na cultura política norte-americana. Pouco depois, o áudio já estava rodando todo o TikTok, rede social chinesa de vídeos que ganha cada vez mais adeptos, principalmente da geração Z, ao redor do mundo. As palavras de AOC, de repente, serviam de pano de fundo para tutoriais de maquiagem que, em sua maioria, ensinavam sua audiência a aplicar o batom vermelho matte que virou marca registrada da congressista.

O caso é só mais um dos sintomas da transformação que a corrente #MaquiaeFala tem sofrido nos últimos tempos. Se antes a hashtag reunía exclusivamente conteúdos escapistas do tipo “passo-a-passo” de make, agora, a geração Z percebeu que pode, com a ajuda desse formato facilmente “viralizável” pulverizar mensagens poderosas pelas redes sociais. Não à toa, aqui no Brasil, a jornalista e mestre em Políticas Públicas Manuela d’Ávila apostou na estratégia: usando a #MaquiaeFala, a ex-candidata a vice-presidência da república posta vídeos curtos em que manda mensagens objetivas e diretas sobre a política brasileira contemporânea.

De acordo com o professor e estrategista de cultura digital e futurólogo Felipe Teobaldo, para entender esse fenômeno, é preciso dar alguns passos para trás: “Houve uma explosão do ‘textão’ na internet de 2014. Em 2013, vieram as fotos com a expansão do Instagram. Em 2015, era a vez dos mais variados aplicativos. Em 2017, os vídeos tomaram conta das redes e, em 2019, a realidade aumentada virou tendência. Ou seja, estamos progressivamente vivendo uma sofisticação do uso da imagem para narrativas pessoais”, explica.

“A geração Z está usando esse recurso dentro das plataformas digitais para ir contra dinâmicas opressoras reforçadas pelo sistema dessas mesmas plataformas”, Felipe Teobaldo, professor e estrategista de cultura digital.

Não é novidade, mas, na internet, as grandes plataformas capitalizam em cima da atenção dedicada às redes sociais. Ou seja, o tempo que você passa rolando a timeline, o conteúdo que você busca e todas as suas ações nas redes estão intrinsecamente ligadas à economia da atenção. “O Google ganha dinheiro com a nossa atenção, o Facebook ganha dinheiro com a nossa atenção. Todo mundo ganha dinheiro com a nossa atenção”, lista. A geração Z, neste contexto, se destaca: são capazes de produzir conteúdos atraentes, carregados de informação e hiperconectados aos debates atuais. São esses jovens de 16 a 24 anos que dominam o TikTok. E mais: “A beleza é uma ferramenta política muito importante dentro da economia da atenção”, afirma o especialista.

Segundo Teobaldo, no entanto, essa lógica se distorce no TikTok ao entregar certa autonomia para o criador de conteúdo. “O algoritmo permite ao usuário ter mais voz dentro do aplicativo. Nessas, a geração Z aproveita para ampliar a visibilidade das pautas que, para ela, são fundamentais, urgentes”, comenta. O mais interessante é o quanto essas questões e demandas aparecem em vídeos que, à primeira vista, são “só” tutoriais de maquiagem. “Quando a Manuela d’Ávila aposta no #MaquiaeFala para dividir com seu público suas opiniões sobre política, nas entrelinhas, ressoa uma mensagem de que as mulheres podem gostar de beleza e, ao mesmo tempo, estarem muito bem posicionadas politicamente no cenário nacional. O mesmo vale para a Anitta que, com certa frequência, tem sua integridade questionada simplesmente porque gosta de rebolar.”

Isso posto, o tutorial de beleza argumentativo é uma subversão da economia da atenção. “A geração Z está usando esse recurso dentro das plataformas digitais para ir contra dinâmicas opressoras reforçadas pelo sistema dessas mesmas plataformas”, amarra Teobaldo. Vale lembrar que, há um ano, o The Intercept publicou uma reportagem expondo documentos internos da moderação do TikTok que continham orientações de cunho racista, elitista, machista e gordofóbico para o desempenho de conteúdos na rede. “É o segundo passo: primeiro nos encontramos para falar de maquiagem. Agora, a maquiagem é só mais um palco para a gente ser quem a gente é e se conectar ainda mais a partir de trocas genuínas.”

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