Morre, aos 91 anos, Elza Soares, uma das maiores vozes da MPB
Cantora faleceu de causas naturais. Em mais de 60 anos de atividade musical, em que influenciou gerações de intérpretes brasileiras, Elza teve sua trajetória marcada por altos e baixos, com sucessivas voltas por cima.
Uma das maiores intérpretes da música brasileira, Elza Soares morreu nesta quinta-feira (20.01), aos 91 anos, de causas naturais, em sua casa, no Rio de Janeiro. “Feita a vontade de Elza Soares, ela cantou até o fim”, diz o comunicado enviado à imprensa.
Altos e baixos se alternaram em 63 anos de atividade musical, em que Elza influenciou gerações de cantoras brasileiras. E as sucessivas voltas por cima tornaram ainda mais altiva uma trajetória que, em anos recentes, se pautou fortemente pela resistência feminista, antirracista e anti-homofóbica. O disco Deus é mulher, de 2018, tornou explícita a militância feminina, mas a veia lutadora era antiga e se esparrou, desde o início, por trabalhos suingados de títulos eloquentes como A bossa negra (1961), Somos todos iguais (1985) e Planeta fome (2019). As palavras de ordem de Elza jamais foram proferidas da boca para fora e foram emolduradas por um dos maiores vozeirões da história da música brasileira. Relembre a seguir fatos marcantes de sua trajetória:
Garrincha e Elza Soares, em 1970, na ItáliaFoto: Keystone-France/Gamma-Keystone via Getty Images
Planeta fome: Nascida na favela de Moça Bonita, no bairro de Padre Miguel (Rio de Janeiro), Elza casou-se pela primeira vez aos 12 anos. Tinha seis filhos, quando aos 21 anos, ficou viúva. Duas das crianças morreram de fome, segundo ela contava. Essa tragédia ecoaria numa das primeiras oportunidades que teve de se apresentar ao vivo, no programa Calouros em desfile, do mestre Ary Barroso, autor de “Aquarela do Brasil”. Mal-ajambrada em uma roupa simples e bem maior que seu corpo, Elza assustou Ary, que perguntou: “De que planeta você vem?”. “Do planeta fome”, ela respondeu, calando os risos de deboche da plateia. O espanto se repetiu quando começou a cantar, mas dessa vez por causa da voz que explodiu ao microfone.
Foto: Reprodução
Eu sou a outra: No início dos anos 1960, do alto de sua primeira fase de grande sucesso, Elza se apaixonou por Garrincha, que era legalmente casado e tinha nove filhas. O romance ganhou ares de escândalo, e a cantora, emaranhada nas artimanhas mercadológicas da gravadora Odeon, gravou o dramalhão explícito “Eu sou a outra”, de versos como “ele é casado/ e eu sou a outra na vida dele/ (…) eu sou a outra que o mundo difama/ que a vida ingrata maltrata/ e sem dó cobre de lama”. Elza foi execrada pela opinião pública, e o casal acabou por se exilar em Roma, na Itália. Garrincha já vivia as consequências do alcoolismo, que o mataria em 1983, aos 39 anos, em 20 de janeiro – mesmo dia da partida de Elza.
Elza versus Clara: Durante a ausência de Elza, ganhou relevo na Odeon e nas paradas de sucesso uma cantora de samba que ela própria apresentara à gravadora, a mineira Clara Nunes. De volta ao Brasil, Elza perdeu o contrato com a Odeon, ao mesmo tempo que Clara popularizava sambas de terreiro modernos como “A deusa dos orixás” (1975). Na pequena gravadora Tapecar, Elza abandonou o samba-jazz que a caracterizava até então e tentou se moldar às referências de terreiro e candomblé trazidas por Clara, em discos como o africaníssimo Elza Soares (1974), sem grande sucesso.
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Tina Turner brasileira: Após a morte de Garrincha e à deriva no meio musical, Elza cogitava abandonar o ofício de cantora até ser acolhida por Caetano Veloso numa participação especial e abrasiva na canção “Língua” (1984), que abriu caminho para a volta por cima do álbum Somos todos iguais (1985). Ali, pela primeira vez, ela teve a liberdade de experimentar e misturar, sem pudores ou purismos, gêneros como samba, jazz, blues e o rock’n’roll de Cazuza. Era tempo do estouro pop de Tina Turner, e Elza foi alçada à versão brasileira da estrela estadunidense, com as pernas à mostra e uma vasta peruca de inspiração black power. O novo voo foi abatido pela morte do único filho que teve com Garrincha, num acidente automobilístico, aos 9 anos, em 1986.
Língua
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Dura na queda: Um tombo de um palco de dois metros de altura em 1999 trouxe consequências que se prolongaram até sua morte, atrapalhando a mobilidade da antes elétrica performer. O acidente serviu de inspiração para mais uma volta por cima, o álbum Do cóccix até o pescoço (2002), orientado pelo erudito compositor Zé Miguel Wisnik. A faixa de abertura, “Dura na queda”, era um samba torto composto para ela por Chico Buarque, em versos sarcásticos de superação: “Bambeia, bamboleia/ é dura na queda/ custa a cair em si/ largou família/ bebeu veneno/ e vai morrer de rir”. O mesmo disco contém “A carne”, de Marcelo Yuka e Seu Jorge, que abriu a trilha desbravadora da Elza Soares dos anos 2000, a partir da denúncia racial de que “a carne mais barata do mercado é a carne negra”. Do combate a essa constatação, nasceram canções-símbolo dos anos 2010, como “Deus é mulher” (2018) e “Maria da Vila Matilde (Porque se a da Penha é Brava, imagina a da Vila Matilde)” (2015), um ataque frontal à violência feminicida: “Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”.
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