Amor, paixão e capitalismo em quadrinhos
Autora de "A origem do mundo", a quadrinista sueca Liv Strömquist investiga os relacionamentos amorosos contemporâneos em sua nova HQ, "A rosa mais vermelha desabrocha".
“A rosa mais vermelha desabrocha” foi o verso que a poetisa estadunidense Hilda Doolittle (1886-1961) usou para descrever sua paixão repentina e não correspondida por um rapaz que viu apenas uma vez, aos 74 anos, enquanto estava internada em um sanatório. Hoje, seria possível dizer que Hilda foi apenas tomada por uma avalanche de reações neuroquímicas que a fizeram acreditar que estava apaixonada ou que ela estava com problemas de autoestima quando resolveu se encantar por alguém sem ser correspondida. A paixão e o amor perderam o status de força mágica e misteriosa e passaram a ser explicados, quantificados e, muitas vezes, repelidos no mundo contemporâneo. É disso que se trata a nova HQ da sueca Liv Strömquist, A rosa mais vermelha desabrocha: O amor nos tempos do capitalismo tardio ou por que as pessoas se apaixonam tão raramente hoje em dia, lançada este mês pela Companhia das Letras.
Refletindo sobre histórias da mitologia grega, os vários romances de Leonardo DiCaprio com modelos, músicas de Beyoncé e estudos de especialistas sobre o capitalismo contemporâneo, Liv demonstra como o amor está cada vez mais ligado à uma lógica de consumo. “Tudo se torna mercadoria, inclusive, os relacionamentos. Por exemplo, é comum perguntarmos ‘quanto estou dando para essa pessoa e quanto ela está me oferecendo em troca?’ e usar termos financeiros como ‘investir’ na relação”, diz à ELLE. “Os aplicativos de paquera também são como um grande mercado, com opções que você analisa superficialmente. Eu gostaria de dizer que os relacionamentos entre pessoas são muito diferentes das relações econômicas”, explica a quadrinista, que é formada em ciência política.
Liv também é autora da HQ A origem do mundo: Uma história cultural da vagina ou a vulva vs. o patriarcado, em que se debruça sobre as desinformações e tabus relacionados à vagina, publicada em mais de 20 países, incluindo o Brasil. No novo trabalho, ela busca aplicar um olhar sociológico para os relacionamentos amorosos, sobretudo, entre casais, embora reconheça que novos formatos sejam cada vez mais debatidos. “Acredito que pensar nos aspectos emocionais e abstratos do amor, que também aparecem no livro, é aplicável a qualquer tipo de construção”, diz.
Capa do livro de Liv StromquistFoto: Divulgação
Na HQ, a autora também defende que a formação de uma espécie de mercado do amor é algo inédito para a espécie humana e cria novas formas de poder dentro dos relacionamentos. “Há 200 anos, cada pessoa conhecia, em média, outras 300 ao longo da vida. Era muito difícil conhecer alguém e nunca mais vê-lo. Hoje, num aplicativo de relacionamentos, vemos centenas de pessoas por dia e marcamos encontros com quem nunca mais vamos ver de novo.” Nesse cenário marcado por relações líquidas (senão, gasosas), surgem fenômenos como o “ghosting”, em que uma pessoa decide se retirar de um romance sem dar explicações. “Levar um ghosting produz muitos sentimentos ligados à rejeição, temos que estar constantemente preparadas para esse tipo de sofrimento. E as mulheres também fazem o mesmo com os homens. Para mim, é um prejuízo não ter relações profundas, de cuidado, em que as pessoas realmente buscam se conhecer.”
Na edição atual do Big Brother Brasil, os comportamentos de um casal que se formou no reality causou comoção na internet: enquanto Carla Diaz não media esforços em demonstrar sua paixão em rede nacional, Arthur Picoli parecia manter um certo distanciamento e até menosprezar os afetos da participante. Liv dedica um capítulo inteiro para esse fenômeno – mulheres que parecem amar demais, enquanto homens parecem amar de menos –, ao refletir sobre o que seria uma “masculinidade de sucesso” hoje. “Os homens já não conseguem exercer tanto poder em várias áreas da vida social, como no trabalho, por exemplo. Então, uma dos aspectos em que eles buscam exercer poder são as relações românticas, sendo distantes, frios.”
Página de “A rosa mais vermelha desabrocha”Foto: Divulgação/Companhia das Letras
Para a autora, enquanto o distanciamento é uma forma de os homens ditarem o ritmo e intensidade das relações, as mulheres estão expressando cada vez mais os seus desejos. E o mal estar gerado por essa disparidade de comportamentos pesa mais sobre elas: “Existe o estereótipo da ‘mulher louca’, aquela que ‘ama demais’, mas não temos uma expressão equivalente para o ‘homem louco’, apesar de ser muito comum que os homens percam a cabeça, tenham ciúme, persigam garotas.” Mesmo que as mulheres reproduzam o distanciamento masculino, não conseguem exercer uma sexualidade completamente livre por conta do machismo, defende Liv. “No mercado dos relacionamentos, homens têm mais chances de se divertirem, enquanto a mulher tem que estar sempre preocupada com a violência. Para elas, não é como viver em um playground ou coisa do tipo. Ainda existem injustiças estruturais”.
Liv havia escrito há dez anos The feeling of Prince Charles, em que aborda relações românticas como resultado de pressões sociais e culturais e, desde então, vem pesquisando sobre o assunto. “No novo livro, estava interessada em entender como o amor funciona dentro da nossa sociedade, em que tudo é muito controlado, calculado. Para mim, parece um esforço muito grande combinar a lógica racional moderna com o envolvimento em relações amorosas em que não se pode controlar tudo”, diz. “Por exemplo: você pode estar apaixonado por alguém que persegue nas redes sociais, sem conseguir se relacionar com a pessoa, de fato, ou você pode estar dentro de uma relação, desejar estar apaixonada, mas não consegue”, explica a autora, que se apoiou em muitas ideias do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han (autor do livro Sociedade do cansaço) e da socióloga marroquina Eva Illouz (de O amor nos tempos do capitalismo).
Foto: Divulgação
Pandemia
Segundo Liv, para que as relações sejam menos machistas, os homens precisam estar engajados: “Seria melhor se a masculinidade incorporasse mais os valores associados às mulheres, de sensibilidade, de cuidado com o outro, que são importantes para os relacionamentos, de modo geral”. A pandemia, que confinou muita gente dentro de casa, deixou ainda mais evidente a importância das tarefas do cuidado e, para Liv, isso pode afetar as relações de diferentes formas. “Temos mais pessoas focadas na vida doméstica, cuidando dos filhos, sem fazer viagens. Claro que também tem sido um momento muito ruim em relação à violência contra mulheres e crianças, mas podemos esperar efeitos no futuro”, diz. Já quem tinha uma vida feliz de solteiro antes da pandemia, talvez não esteja vivendo um momento tão divertido agora, por não consegue sair e conhecer pessoas, argumenta.
Tudo indica que se apaixonar está cada vez mais fora de moda. Então, o que podemos aprender com esse sentimento que nos faz sentir inseguras, expostas e até um pouco ridículas? Para Liv, talvez a resposta esteja precisamente em aceitar a vulnerabilidade: “Eu estive apaixonada poucas vezes e quando aconteceu, me senti completamente impotente. Às vezes, você se apaixona por alguém e aquilo não funciona muito bem, mas você continua desejando a pessoa e se sente culpada por isso. Numa perspectiva de vida, você pode aceitar e até celebrar esse sentimento extremamente intenso e não apenas se sentir mal. Você não precisa ser uma ‘girl boss’ em todos os momentos da vida”, diz a sueca.”É preciso ter coragem para viver essa experiência.”
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