Documentário sobre Rita Lee mostra a cantora leve e feminista
"Ritas", que teve participação da compositora, abre o festival É tudo verdade, com forte presença feminina.

A presença feminina é uma das marcas desta 30ª edição do É tudo verdade – Festival Internacional de Documentários, partindo do documentário sobre Rita Lee (Ritas, de Oswaldo Santana e Karen Harley) e sobre a atriz Marília Pêra (Viva Marília, de Zelito Viana), que se alternam na abertura e encerramento do festival em São Paulo e no Rio de Janeiro. Além delas, Bruce David Klein revisa a trajetória da atriz e cantora estadunidense Liza Minelli em Liza – Uma história verdadeiramente incrível e absolutamente verídica; a inglesa Carmen Chaplin retrata seu avô Charlie em Chaplin – O espírito do vagabundo; e o diretor eslovaco Marek Sulik perfila a líder política Zuzana Čaputová, que governou a Eslováquia entre 2019 e 2024, em Sra. presidente, todos inéditos no Brasil.
O elenco de diretoras que exibirão seus filmes no festival inclui Bárbara Paz (em Rua do Pescador, nº 6, que documenta a destruição causada pelas enchentes de 2024 no Rio Grande do Sul), Carine Wallauer (Copan, coprodução Brasil-França sobre o edifício paulistano projetado por Oscar Niemeyer) e Najiba Noori (Escrevendo Hawa, que acompanha o processo de emancipação de uma mulher afegã alfabetizada após 40 anos de um casamento arranjado). A programação apresenta mulheres documentaristas de Brasil, Alemanha, Armênia, Irã, Chile, Argentina, Peru, Quênia, Irlanda e Estados Unidos.
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Voltando a Rita (1947-2023), o feminismo displicente da cantora é celebrado com Ritas, que, depois de exibições no festival, chegará aos cinemas em 22 de maio, dia de Santa Rita de Cássia e que a cantora, que nasceu em 31 de dezembro de 1947, escolheu como seu “novo aniversário”. O documentário seduz com uma profusão de imagens da pioneira do rock feminino brasileiro, dentro e fora dos palcos – e a maioria das cenas transborda um frescor de ineditismo ou, no mínimo, um sabor de raridade. Santana é diretor estreante e montador de filmes como Bruna Surfistinha (2011), e Karen é uma das diretoras de Lixo extraordinário (2010), documentário de Vik Muniz.
Rita participou ativamente do início da produção, há sete anos, abrindo sua casa, fornecendo imagens íntimas e dando uma entrevista que é um dos fios condutores da narração protagonizada pela artista. “A produção começou em 2018 com a gravação de uma longa e exclusiva entrevista que norteia o filme. Após isso, iniciamos a pesquisa de imagens, que durou quase até o final (da finalização do longa), tamanha a riqueza e volume de momentos incríveis encontrados”, conta Santana. “A FamiLee sempre esteve por perto. Eu compartilhava a evolução da pesquisa e montagem com eles. Existiu uma troca intensa de desejos e caminhos que podíamos seguir. Eles foram sempre generosos nisso.”
Rita participou ativamente do início da produção, há sete anos, abrindo sua casa, fornecendo imagens íntimas e dando uma entrevista que é um dos fios condutores da narração protagonizada pela artista
Ritas apoia-se exclusivamente em imagens de acervo captadas em shows, programas de TV e no conforto caseiro (inclusive em divertidos vídeos de celular gravados pela própria artista). Sem depoimentos de outros nomes gravados exclusivamente para o filme, a produção compõe um painel rico ao empilhar imagens raras de alguns dos pares da artista, como o marido e parceiro Roberto de Carvalho, Elis Regina, Gilberto Gil, João Gilberto, Maria Bethânia, Hebe Camargo e o ex-marido e colega de Mutantes Arnaldo Baptista.
Sem grandes compromissos históricos ou cronológicos, o documentário atravessa a história de Rita com suavidade, mas sem deixar de registrar as mágoas acalentadas contra os Mutantes (“sofri muito, não queria sair”) ou com sua primeira gravadora em carreira solo, a Philips (“claro que fui expulsa”).
A influência de Bowie
Ritas é esclarecedor em várias passagens. Deixa evidente a influência direta e aguda de David Bowie sobre a brasileira – a certa altura, ela mostra um hilariante quarto de badulaques onde convivem um boneco do E.T. e uma multidão de santos católicos, entre eles uma Nossa Senhora embelezada com a maquiagem glam de Bowie em Aladdin Sane. Certas cenas escancaram os cruzamentos musicais improváveis que Rita promoveu, do rock com a bossa nova e, quem diria, com o samba. João Gilberto, ela diz, a legitimou como “bossanoveira”.
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A certa altura, Rita manipula uma pilha de papéis com letras de suas músicas, todas carimbadas como vetadas pela censura da ditadura. Também soam espantosas as cenas em que a cantora, aos 65 anos, é presa em Aracaju, durante sua turnê de despedida, depois de solicitar “uma salva de vaias para a polícia”. Ali, fica transparente como ela sempre se pautou pela rebeldia, pela afronta e pela desobediência, desde os primeiros anos até os atos finais de sua trajetória musical.
Em contraponto, vários flagrantes primam pela leveza e por um humor de veludo, outra de suas características mais constantes. Mostrando seus tesouros íntimos, Rita exibe para a câmera seus cães e gatos (e até uma jaguatirica) e faz gargalhar quando exibe uma foto em que enfeitou os quatro Beatles com batom, cílios postiços e maquiagem pesada. Ao contar como decidiu mudar o cabelo de loiro para ruivo (nos anos 1970, em imitação literal do ídolo Bowie), expressa como se sentiu feliz ao longo das décadas, por ostentar “o sol na cabeça” – uma citação à música “O trem azul”, do Clube da Esquina. Adiante, acariciando a cabeleira já totalmente grisalha, Rita produz a imagem oposta e complementar: “O cabelo branco me dá uma lua na cabeça”, diz.
Fica transparente como ela sempre se pautou pela rebeldia, pela afronta e pela desobediência, desde os primeiros anos até os atos finais de sua trajetória musical
A cena que resume Rita por inteiro é aquela em que ela conversa com a neta adolescente, ambas fuçando na internet e comentando diferenças entre redes sociais, ao som de um funk proibidão em uma voz feminina, que a pioneira do rock brasileiro ouve com prazer. Num crossover de gerações, confirma-se uma vez mais o feminismo pop que Rita exerceu com força a partir do disco Fruto proibido (1975) e cujo bastão passa despretensiosamente para funkeiras cariocas e outras netas.
É tudo verdade: de 3 a 13 de abril. Confira aqui a programação.
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